21 agosto 2010

VOU-TE CONTAR: 22. Flagrantes da vida real

Como com muitas outras coisas, só me dei conta disso quando comecei a circular fora de casa e pude comparar a minha realidade com a de outros.
Na minha casa mais antiga havia-os por todo o lado: estantes, mesinhas de cabeceira, pousados em cima do autoclismo ou esquecidos pelas cadeiras ou bancos dos quartos-de-banho que eram sempre de cor branca. Na casa que o meu pai construiu depois também os havia em todos os andares, aqui em maior quantidade, talvez por que a passagem do tempo permitiu o seu acumular por compra, por oferta, por herança. O maior quinhão enchia duas estantes na sala da lareira, depois havia-os no escritório e, lá em cima, no primeiro andar, nas duas estantes do hall, na prateleira encastrada na parede do quarto dos meus pais, no meu quarto, no quarto das minhas irmãs, nas mesinhas de cabeceira, esquecidos sobre o autoclismo e os bancos ou cadeiras do quarto de banho que eram sempre de cor branca... Até na cave, amontoados numa estante envidraçada que era um crime estar ali; na despensa, na companhia de torradeiras ou espremedores de citrinos que já não funcionavam; num guarda-vestidos naftalínico ao qual se abria uma porta e escorregava um para fora duma pilha esbarrondada como um queijo maduro de mais.
E na casa dos meus avós maternos a mesma coisa: livros por todo o lado. Concentrados nas estantes do escritório do meu avô Heitor, arrumados com uma disciplina que não mais tornei a ver senão em bibliotecas. Estantes catalogadas, livros com etiquetas personalizadas onde constava o seu número, a origem e a estante onde deveriam ser arrumados depois de consultados. O homem tinha livros que se fartava e, não satisfeito com o que tinha, escrevia mais alguns.
Havia ainda as revistas. Em casa dos meus avós sobretudo Civilização, Selecções do Reader’s Digest e National Geographic Magazine, esta última muito apreciada pelos netos do sexo masculino dado que era frequente trazerem uma reportagem ilustrada sobre uma tribo exótica cujas mulheres, pesasse embora os discos de madeira que lhe deformavam os lábios ou os ossos de tarambola que lhe atravessavam narizes, se passeavam nuas pelas redondezas, a maior parte das vezes usando minúsculas saias de palha ou, com sorte, completamente nuas! Era a única fonte que eu e os meus primos tínhamos desse tipo de material, para além daquele que se escondia nos livros médicos do meu pai, esse amiúde frustrante pois ver uma mulher nua que só se sustém de pé perante o fotografo porque tem uma pilha de livros onde assentar o pé da perna mais curta é um tanto desanimador.
Em casa dos meus pais, para além das Selecções já citadas, havia Paris Match e o Courier da Unesco, dado que o meu pai não se aguentava mais de um mês sem coscuvilhar as novidades sobre o que se tinha passado em Luxor e no Vale dos Reis nos últimos cinco mil anos.
Mas, como dizia no princípio, só quando comecei a sair do lar me dei conta que não era assim em todo o lado: havia casas onde só se quedava uma única e humilde estante, outras onde os únicos livros que se viam eram os de cozinha e, com boquiaberto espanto, vi um dia uma estante onde às obras completas de Shakespeare só era necessária a lombada, como se tudo aquilo fosse cenário de teatro!
Até aos sete ou oito anos, apesar dos esforços da minha mãe, não me interessava por livros sem imagens, olhava-os com tédio e todo o meu interesse ia para os álbuns do Tintim, que os meus primos possuíam em grande quantidade. Uma manhã, numa das minhas crises amigdalinas, fui visitado no quarto pelo meu pai que, antes de sair, passou a dar-me uma fogachada com merthiolato nos estreptococos. Deixando-me com os olhos rasos de água e antes de sair, perguntou o que queria que me trouxesse à hora da fogachada vespertina, um novo raid sobre os estreptococos que de manhã se tinham refugiado sob as estalactites das criptas amigdalinas.
“Traga-me um livro do Tintim...”, pedi em voz roufenha.
E, por entre sumos de laranja naturais, supositórios imaculados e termómetros que escorregavam da axila e só revelavam a febre à segunda tentativa, sonhava com os desenhos claros, semelhando aguarelas, da banda-desenhada a vir. Que não veio! À noite, em vez do embrulho grande, fino e de capa dura que era obrigatório a um livro do Tintim, o meu pai pousou sobre a cama um embrulho atarracado, grosso e mole. Abri, desgostoso, e percorri-o com aversão: ali quase só havia letras e, para além da figura da capa, encontrei meia-dúzia de desenhos a preto e branco! O homem que tinha escrito aquilo chamava-se Enid Blyton, o livro chamava-se Os Cinco Na Ilha do Tesouro. Deixei o livro abandonado sobre a coberta e, após o jantar, enquanto esperava que a minha mãe me viesse apagar a luz e entalar as quatro camadas de cobertores, peguei no livro e, reticente, concedi-me ler o primeiro parágrafo. Nessa noite, com uma mal disfarçada satisfação que me fez desconfiar que aquela compra tinha sido uma conspiração contra mim, a minha mãe viu-se aflita para me arrancar o livro das mãos; disse:
“Ah, afinal gostaste...! Eu não te dizia? O melhor está aqui,” continuou batendo um dedo na minha testa quente, não está nas figuras... Vá, agora deita para baixo, amanhã lês mais.”
Escassos anos depois descobri a utilidade prática desse dedo na testa, pois nessa época não havia muito que se pudesse ver ao vivo ou onde a gente se pudesse inspirar para deambulações erotizantes. A televisão, fenómeno recente, era a preto e branco e não se ia longe com os decotes subidos dos vestidos, austeros e pesados como reposteiros, de Lady Marianne, a eterna noiva de Robin dos Bosques. Não havia internet, clubes de vídeo, dvd, downloads piratas, scanner a cores, nem sequer máquinas de fotocopiar em gamas de cinzento... Só nos restavam mesmo as revistas e os livros.
Assim, a nossa atenção pairava como uma águia sobre tudo o que nos passava à frente dos olhos e, ainda mais, sobre o que nos era ocultado. Nas aulas de português, por exemplo, na eternidade e no tédio dos dez Cantos dos Lusíadas não nos passava despercebido o nervosismo e o modo abreviado com que era referido o Canto IX. Mas, sentado na retrete, o calhamaço pousado no banco branco arrastado até à proximidade dos meus joelhos, rapidamente me apercebi ser a linguagem demasiado simbólica e que o perder-me no seu decifrar era quase tão prejudicial à manutenção de um certo limiar de entusiasmo como o súbito bater na porta e o trovejar de um:
“Estás aí quase há uma hora! Sai, preciso usar o quarto-de-banho!”
Tudo melhorou com o novo escritor predilecto da minha mãe, o brasileiro Jorge Amado, a quem ela gabava com entusiasmo a prosa inventiva e, em conversas com as minhas tias, referia em voz baixa ter passagens bem “picantes”. É claro que esses livros não estavam à superfície das estantes, eram cuidadosamente escondidos em sítios insuspeitos e mantidos sob rigoroso controlo. Mas a minha capacidade para encontrar fosse o que fosse que tivesse sido oculto era espantosa, tornou-se, até, tão lendária em minha casa que a minha própria mãe pedia, em desespero de causa, que lhe tentasse reencontrar riquezas que tinha escondido de nós mas não se lembrava onde...
Falei dos livros, resta-me referir essa outra fonte de material estimulante da imaginação que eram as revistas; essas, por definição, mais ilustradas. Todos nós humedecíamos o dedo e batíamos conscienciosamente as páginas de tudo quanto circulava ao nosso alcance, trocávamos informações sobre o assunto nos intervalos das aulas ou, mesmo, durante as próprias aulas. Uma das minhas descobertas mais apreciadas nesse mercado negro foi um anúncio a um produto chamado Señobel, cuja finalidade era conseguir “um busto invejável”. Na diminuta fotografia via-se o perfil a cores de uma mulher aplicando no peito uma espécie de ventosa com o formato de um tupperware cónico. A crer pelo resultado, ela devia ser uma fervorosa e incansável praticante do método.
No mês seguinte, logo que chegou à caixa do correio um novo número das Selecções do Rider’s Digest, senti chegado o momento de substituir aquele material por outro, pois sentia que o manuseio do Señobel tinha atingido o seu limite - uma pausa far-me-ia apreciá-lo de novo mais tarde. Meti o exemplar na pasta e levei-o para o liceu.
Como nem toda a gente assinava ou comprava a revista, não faltaram candidatos e, depois de escolher um que me parecia seguro e com um bom produto para troca, confiei-lhe a revista com as recomendações do costume, onde a mais vincada era a de que ma devolvesse sem páginas coladas.


© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, 2010; (2) Pedro Serrano sobre fotograma de Inland Empire, de David Lynch, 2010/2007.

18 agosto 2010

VOU-TE CONTAR: 21. Agora a gente já não tinha medo

Aposto que nunca ninguém a tratou pelo nome, talvez com a excepção de umas enjoadas colegas de trabalho e, já se sabe mas isso não conta, as professoras do liceu. Nem a mãe dela, a minha tia Olinda, estando furiosa, lhe conseguia gritar em termos de:
“Maria Leonor, se não paras imediatamente de rir levas com o batedor de tapetes...” 
É que Leonor, embora nome nobre e belo, é de pronúncia insuportável no dia a dia; a língua embaraça-se no “nor”, a mente não espera que a seguir à majestade de um “Leo” nos tenhamos que acomodar a um “nor” que confere ao nome um ressentimento de amoníaco. Das outras variações (Leonilde, Leopoldina,  Leocádia, etc.) nem é bom falar...
De modo que a minha prima Leonor foi reconvertida em Nunu como aliás aconteceu com todas as Leonor minhas conhecidas, que se transformaram em Nônôs, Norzinhas ou Nunus e (mas mais num ambiente média-luz) em Nus.
Nunu e eu na casa mais antiga (algures no final dos anos 50, fotógrafo desconhecido)
Pois esta minha prima, um ano mais nova do que eu, morava numa casa igual á minha, siamesa da minha casa mais antiga, e representou um importante papel na minha infância e adolescência.
Desde pequenitos tivemos muitas coisas em comum, uma das quais foi a primeira inclinação profissional, pois ambos sonhávamos ser peixeiras. Nessa época, embora se praticasse a ida à mercearia e a outras lojas abastecedoras, o mais comum era, durante a manhã, assistirmos ao tocar da sineta do portão e vermos desfilar até á porta da cozinha o padeiro, a leiteira, a biscoiteira, o marçano e, profissão que ultrapassava todas as outras em prestígio, a peixeira. 
Para além de falar alto e sem uma sombra de pestanejamento, a peixeira tinha,  por sobre as várias camadas de saias, um avental preto cheio de bolsos e por baixo deste uma bolsa escondida onde acamava notas em grandes quantidades. E depois, quando tirava o pano molhado aos quadrados que cobria a canastra e revelava o que trazia... Eles eram cavalas, eram fanecas, sardinhas e, mais próximo do topo da hierarquia, o belo badejo, a bela pescada, o fino linguado... E a minha mãe, olhando de cima, atenta, a apontar o dedo:
“E as mílharas, são frescas? São mesmo de pescada, não serão de bacalhau...?”
“Ó, Dona Manuela, pela minha saúdinha, que são uma riqueza! Então eu ia lá impingir à senhora ovas de bacalhau!”
A Nunu e eu, calados e fascinados, seguíamos aquelas negociações complexas com toda a atenção, retínhamos na memória a gíria e nas retinas as atraentes ventosas do polvo, o furta-cor das lulas, as escamas prateadas, os olhos saídos e brilhantes daqueles peixes todos; mirávamos, aterrados, o peixe-espada e o tamboril imaginando o que seria um encontro com um peixe daqueles quando tomássemos banho na Praia dos Beijinhos. Achávamos que poderia ser mesmo pior do que um rendez-vous com o temível e tão publicitado peixe-aranha!
Quer eu quer ela, enquanto preparávamos os nossos tabuleiros cheios de folhas de diferentes dimensões e brilhos, cobertos com um pano da cozinha molhado, entretínhamos conversas em torno de como guardaria a peixeira toda aquela peixaria em casa. Eu tinha a certeza que a casa dela era revestida, em todas as divisões, com armários de gavetas sobrepostas onde ela guardava o peixe, gavetas em tudo semelhantes àquelas onde o senhor Gonçalves Oliveira, da Fergoliv (a retrosaria da esquina), acondicionava as gravatas.
“Achas que ela come do peixe que vende ou compra-o a outra peixeira?”, perguntava a Nunu enquanto aspergia de água umas folhas de hidranja indistinguíveis de besugos. 
Eu não sabia, distraído a dispor as minhas folhas de agapanto como vira serem acondicionados os peixe-espada; a pensar em que tipo de gaveta ela guardaria os polvos e se as manteria, para maior segurança de quem dorme, fechadas com cadeado. Sobre a peixeira, a única coisa que dava como certa era que o marido seria pescador e que nunca comiam peixe às refeições para terem sempre mercadoria para os fregueses.  
“Agora eu já não era peixeira”, comunicava eu, vendo os irmãos dela a aproximarem-se, “agora vamos trabalhar para o Subterrâneo...”
“Vou-vos lá vender peixe daqui a um bocado e depois eu era a cozinheira...”
O tempo passou, a Nunu cresceu, durante uns anos afastamo-nos um pouco. Até ao dia em que na saída do liceu das raparigas dei por ela e reparei como tinha tantas amigas interessantes. Por outro lado, o Renato, o meu melhor amigo no liceu dos rapazes, também a achou muito interessante a ela e isso aproximou-nos outra vez, de tal modo que a Dona Aninhas Pinto, a gentil avó materna dela, na sua voz esganiçada, inquiriu a minha tia:
“Ò Olinda, tu não achas que a pequena e o primo andam demasiado juntos...?”
 Nenhum de nós, nem sequer os nossos pais, ligou demasiado a isso e a Nunu, que atravessava uma fase muito estranha, continuou por mais uns bons anos obcecada em lavar as mãos até esfolar a pele de tanta limpeza e a cair das cadeiras abaixo de tanto se rir sem conseguir parar. Uma vez, o meu pai até a ameaçou que lhe dava um par de lamparinas se ela continuasse naquilo, mas o máximo que ela conseguiu foi sair da mesa de jantar aos tropeções... Outra ocasião íamos no eléctrico, do liceu para casa, sentados um em frente ao outro naqueles bancos de palhinha que havia à entrada e à saída, e eu apontei-lhe um tipo com uma cara mesmo ridícula que seguia pendurado na pega entre nós, e ela, quando olhou para cima e o viu, desatou a rir de tal maneira que se mijou e tivemos de sair à socapa na paragem seguinte e fazer, entre gargalhadas incoercíveis, o resto do caminho a pé.
Hoje em dia, ela já tem um par de filhas muito mais velhas do que nós éramos nessa altura e é casada com um engenheiro que trabalha nos transportes públicos do Porto, pois o mundo é maravilhosamente redondo.   

PS: “Agora a gente já não tinha medo” é uma frase universal da infância. Mas houve um senhor, chamado Francisco Buarque de Hollanda, que a fixou para a eternidade numa canção chamada “João e Maria”. Aqui fica para os (improváveis) que possam não a conhecer.



Chico Buarque/Nara Leão: "João e Maria" (Sivuca/Chico Buarque), 1977.

14 agosto 2010

VOU-TE CONTAR: 20. Um calhau com dois olhos

                                              Oh minha alma: não aspires à vida imortal,
                                                         mas esgota o campo do possível.
                                                                         Píndaro (A.C. 518-438)


Eu próprio tive um pequeno Mito de Sísifo, privado... Pergunto-me até que ponto isso terá ajudado a moldar o meu temperamento existencialista. 
Mas, deixem, antes de avançar, que gaste um punhado de palavras a explicar, em gentileza aos meus ouvintes mais distraídos, quem era este Sísifo.
Sísifo foi, talvez, o maior malandro da mitologia grega, um mestre a meter os pés pelas mãos, tão habilidoso que conseguiu enganar, para além da mulher, a Morte, duas vezes, e os Deuses ainda mais do que isso. O homem era mortal e gostava de andar cá por baixo, pela Terra, era tudo quanto conhecia, de modo que tentava esgotar o campo do possível. Mas os Deuses não acharam grande graça a serem desconsiderados por um mortal e Zeus condenou-o a passar a eternidade no transporte de um grande bloco de mármore até ao cimo de uma montanha. Quando estava mesmo a chegar com a pedra ao topo, esta fugia-lhe das mãos e resvalava por ali abaixo até ao sopé e lá tinha Sísifo de recomeçar tudo de novo. E todos sabemos como a eternidade costuma ser longa.
Na casa mais antiga havia dois quintais, o da frente, conhecido pelo jardim, e o de trás, conhecido como o quintal. O da frente, virado a Norte e algo sombrio, era exíguo, pois a casa estava praticamente construída em cima da rua, e da janela do meu quarto eu via o passeio do lado de lá quase na vertical; o de lado de cá só o via pelos interstícios da grade do portão.
É certo que os metros minguam à medida que crescemos, mas, mesmo assim, o quintal de trás era enorme. Começava no terreiro, atapetado de saibro, do lado Sul da casa, onde havia a olaia e eu me sentava a fazer bolos de terra. Contígua, havia uma área ajardinada, com canteiros de dálias e amores-perfeitos e caminhos entre os canteiros, e depois uma zona relvada de transição onde ficava o coradouro, o poço, o tanque da roupa e duas árvores, uma minha outra da minha irmã mais velha pois o meu pai plantava uma árvore quando um de nós nascia. A dela era uma oliveira, a minha um eucalipto que por ter sido posto ao lado do poço cresceu tanto que se via à distancia de quilómetros e competia em pujança com a torre da Igreja dos Capuchinhos, da qual era vizinho.
Além das duas árvores ficavam as cordas e as molas da roupa e o quintal selvagem, estendendo-se em horta e árvores de fruto até ao muro que o separava do terreno da Fábrica dos Curtumes. Encostados a este muro, tinham sido edificados os restantes redutos da casa mais antiga: a garagem e o canil do Foguetão, o nosso Serra da Estrela cinzento.
O Renault Dauphine do meu pai (anos 50, fotógrafo desconhecido).
Que extensão, em metros, teria o quintal? Não sei, tenho receio de exorbitar, vou tentar escapar com uma resposta de tipo qualitativo, mas sempre vos digo que, se chovia, devíamos usar guarda-chuva aberto para percorrer a avenida e alcançar a garagem onde era guardado o Renault Dauphine, tão longe da casa que, logo que passaram ao meu pai os excessos por o carro ser novo, ficava simplesmente estacionado perto da rampa do portão.   
Em largura, esta era a suficiente para que a avenida principal (onde ainda agora passaram os guarda-chuvas a caminho da garagem) tivesse uma transversal, conhecida por todos como a Rua do Castelo e meu domínio, pois a minha irmã mais velha praticamente só se interessava por ir espreitar casamentos à igreja, pernas e sapatos.
A Rua do Castelo era uma álea sem saída, conduzindo ao muro de divisão do quintal, onde, do lado de lá, havia outra Rua do Castelo, pertença dos meus primos Manel e Heitor que moravam na casa ao lado, cópia siamesa da minha casa. Por junto, eles e eu possuíamos extensa propriedade, cuidadosamente repartida em termos de instalações e actividades: do lado de lá do muro ficava o baloiço, suspenso na estrutura de fero da ramada, e do meu lado o Subterrâneo, que no ferro da ramada tinha suspensa a corda do balde com que tirávamos a terra cavada cá para fora.
Com o Subterrâneo dávamos corpo, tal como com o Laboratório, às ideias de aventura e descoberta que nos ocupavam a mente o dia todo, mesmo se sentados nas carteiras da escola primária. Por requerer grande esforço de planeamento e execução, o Subterrâneo era uma actividade predominante das férias de Verão. Demorou temporadas até que descobríssemos os princípios,  fundamentos e técnicas do escoramento de terras, pois logo que atingíamos com as nossas escavações uma profundidade que nos ocultava os joelhos aquilo desatava a aluir... Mas éramos persistentes e gastávamos a grande fatia diurna dos nossos dias a escavar; para não perder tempo eu, sempre que o conseguia, dormia vestido, de botas e tudo. Na casa pegada, os meus primos tentavam um trajar semelhante.
Quando o Subterrâneo estava pronto, e muito poucas ocasiões o esteve, cabíamos os três lá dentro, de pé. Raramente deixávamos entrar a minha prima Nunu, irmã dos meus primos mineiros; a função dela era ficar por ali a tomar conta das coisas ou a cozinhar. Quando pronto, o Subterrâneo era um quadrado no chão, tapado com uma placa de folha de flandres, de interior algo assustador pela escuridão e intenso cheiro a terra que reinava. Sistematicamente, num dia em que ainda estando bom tempo chegávamos da escola e corríamos à Rua do Castelo, encontrávamos a ausência no local do Subterrâneo. Com toda a simplicidade, com toda a facilidade, alguém atulhara meses de trabalho, fazendo parecer que nunca tinha existido; a folha de flandres encostada a um canto parecendo muito mais uma placa de folha de flandres do que o telhado-cobertura onde, sob uma caveira e duas tíbias, alertávamos os estranhos para os perigos de uma intrusão.
PROIBIDA A ENTRADA!
Para além do “filho da puta” definitivo que dedicávamos ao Mendes, o jardineiro Neandertal que morava na Ilha do Bravo ao fundo da rua, não nos passava pela cabeça outra forma de reclamar ou, sequer, invocar um qualquer poder oculto que invertesse a situação. No Verão que se seguia, e em muitos verões seguintes, recomeçávamos do zero o Subterrâneo. Nunca conseguimos que nos deixassem lá dormir, mas passámos várias meias-horas sentados no seu chão de terra alisada a comer sardinhas de conserva à luz da lanterna.   


10 agosto 2010

VOU-TE CONTAR: 19. Azul pintado de azul

A memória mais antiga que tenho, o que me parece a mesma coisa que dizer: a primeira vez que me dei conta de que o mundo exterior existia, é a de estar sentado no chão do quintal sentindo as pernas nuas em contacto com o saibro quente, o sol forte a ferver-me a cabeça e com isso a coagular-me o fluxo de pensamento, a fazer-me concentrar num único feixe de consciência: bolos de terra. 
O gradeamento é pintado a esmalte preto.
Para lá das minhas costas é o terreiro da parte de trás da casa mais antiga, em cujo centro há uma olaia que dá uma espécie de vagens e onde, passados uns anos e logo que domine a técnica de subir a uma árvore, faremos a casa-da-árvore. As portas da casa por onde as minhas costas estão a ser vigiadas são as da cozinha e as da sala-escritório, a janela observatório é a do quarto das criadas, onde também se passa a ferro, o gradeamento dessa janela é pintado a esmalte preto e tem pendurado a secar o filtro de pano de coar o café.
Estou a fazer bolos de terra. A carga simbólica que se pode atribuir seja ao que for na infância é desmesurada, tudo pode ser transformado em quase tudo pelo pensamento, basta o esquisso de um facto e juntar água. Os bolos de terra são simplesmente terra amassada com água, assim como a futura casa em cima da olaia não passará de um estrado tosco, sem paredes ou telhado; uma casa só com soalho e mais nada, mas não deixará de ser uma autêntica casa. 
Esta terra que estou a usar é terra negra que fui buscar a um dos canteiros, pois o saibro onde estou sentado não é bom para fazer bolos, não ganha coalescência quando é molhado, dissolve-se. É seco e não passa de pó pousado, escorre entre os dedos como areia de uma ampulheta, ao contrário da terra dos canteiros, sobretudo aquela parte que está à sombra e encostada aos muros, que é húmida e espessa e se deixa moldar. O inconveniente é que, sendo apropriada para fazer bolos, ao meterem-se as mãos pelo chão dentro para a recolher encontram-se muitas roscas, cascas vazias de caracóis, às vezes uma tromba cega de minhoca viva; vemos também muitos bichos de conta a fugirem alarmados para trás dos caules das plantas ou, no limite do desespero, a fecharem-se sobre si. Não se pode ter o melhor de dois mundos.
Sei que dali a bocado, quando descobrirem o que estou a fazer na parte da frente das minhas costas, me vão puxar assimetricamente por uma mão, me vão descompor em timbre agudo enquanto me lavam no bidé e me tem de pôr roupa nova. Mas por agora estou sentado, concentrado no que tenho nas mãos, o meu pensamento solto foi intersectado pela luz forte do sol que aquece os ossos da minha cabeça e condensa-o na atenção que dedico ao que faço e, simultaneamente, amolece esse pensamento dentro de uma forminha qualquer e, quando solidificar, permanecerá e transformar-se-á na memória mais antiga de que me lembro.
Retrospectivamente, consigo ajuizar, pela comparação com outro momento e à custa de um rádio, que eu devia ser mínimo na época desta minha primeira memória. O momento com que comparo consiste na minha segunda memória. O rádio a que me refiro existia em casa dos meus primos Pinto Figueirinhas que moravam em Antero de Quental numa casa a uma meia-hora a pé da casa dos meus pais, mas que, na época, era distante como outro planeta, de tal modo que se me deixavam aí por o tempo de um lanche eu fazia disso uma tragédia lacrimejada, atingido por lancinantes saudades da minha “casinha branquinha”.
Porto, Naná (sax alto) e eu. Fotógrafo desconhecido.
Nessa casa, hoje em dia transformada numa residencial, havia uma sala interior, decorada com cortinados de veludo, sofás de palhinha e begónias, onde pousava, tal peça de mobiliário, um móvel-rádio, daqueles muito em uso nos anos 50, grandes, envernizados e lacados, tipo aparador de sala de jantar, os mais sofisticados deles com gira-discos incorporado e muitos escaninhos para guardar discos. Lembro-me de três rádios desses na minha infância: um em casa dos meus avós, um na casa dos meus pais e este terceiro em casa da Gita, esta minha prima de Antero de Quental, a dona da casa.
Esses aparelhos demoravam a aquecer depois de ligados, não produziam logo música, à semelhança dos computadores de hoje em dia que demoram algum tempo até que a gente se possa servir deles e aceder ao que está lá dentro. Não se carregava no botão e ouvia-se logo música, era preciso esperar que as válvulas aquecessem e havia, geralmente na linha média do móvel e por baixo do visor onde se escalonavam as estações de rádio, perto das teclas branco-de-marfim onde se programava o comprimento de onda desejado, uma espécie de nível-de-água que se acendia e ganhava o máximo de intensidade e estabilidade quando o aparelho estava apropriadamente quente e a estação bem sintonizada. Esses dispositivos indicadores da sintonia eram conhecidos por olho mágico e tinham cores maravilhosas. O da casa da Gita, quando estava no seu pleno, mostrava uma cor impossível, um azul fosforescente de licor de hortelã-pimenta importado de Marte.
Uma noite, estávamos todos na sala de jantar da casa de Antero de Quental, uma sala grande que dava para uma marquise sobranceira ao quintal traseiro e chegava-nos música pela porta aberta. De repente reparei que os adultos se precipitavam porta fora, como se acometidos de súbita loucura. Contagiado, rolei atrás deles e fui parar à saleta do rádio, onde se acotovelavam em volta do rádio-móvel. Furei entre eles, encostei-me ao aparelho para melhor ouvir a música que saía pelo pano-cru que cobria o altifalante, os meus olhos ao nível da bolha de licor de hortelã-pimenta. 
Ouvia-se o grande sucesso desse Verão, Domenico Modugno cantava “Volare (nel blu di pinto di blu )” e eu estava tão extasiado como os meus pais, tios e primos mais velhos a ouvir aquilo pela primeira vez, o olho mágico incendiando-me a retina e coagulando uma memória definitiva.
Vejo hoje, no Google, que “Volare” é uma composição de Modugno e estourou nos charts no Verão de 1958, isto é, tinha eu cinco anos à justa, o que condiz com uma altura dessa idade e com um par de olhos sequiosos ao nível de uma ampola mágica de licor azul-marciano.


Domenico Modugno: "Volare" (1958)

05 agosto 2010

NO VERÃO FICO SEMPRE MAIS NOVA

Neca, um mecânico de automóveis, e Tino, estudante de Filosofia, discutem recorrentemente se, numa canção, o mais importante é a música ou a letra.
Nas horas vagas, os dois, juntamente com Romeu (que monta placas de pastilha de azulejo), Berto, Júlio e Gasparinho, ensaiam o repertório de Os Capuchinhos & o Lobo Mau, uma banda que anima bailes populares na cidade do Porto.
Um dia, sem suspeitar que esse passo vai modificar a sua vida, Romeu aceita executar um serviço obscuro em Viana do Castelo. Ali conhece Diana e Leny, alunas do liceu local.
No Verão Fico Sempre Mais Nova é um romance musicado e de mistério, mas, mais do que isso, é a história de como um amor se pode tornar eterno sem se dar por isso.
O livro (386 páginas) pode ser encomendado à Amazon, onde foi publicado para as Edições Variância. Para comprar clique aqui.





No verão fico sempre mais nova
Ao clicar sobre a capa do livro terá uma amostra do seu conteúdo e poderá ler todo o primeiro capítulo.









Já aqui por baixo pode ouvir aquelas que são (ao ler o livro perceberá o porquê) as duas composições musicais mais marcantes desta história. Uma é uma música, a outra uma canção; uma é de amor, a outra de morte.



"Minor Swing", Django Reinhardt (1937).                  "Guarda Che Luna", Marino Marini (1959).                     



Informação sobre o livro ou a sua banda sonora podem ser pedidas para aqui.

VOU-TE CONTAR: 18. A costureirinha da Sé

A minha mãe, dona de casa e poetisa, dirigia o mundo da sala de estar. 
Era ali que a encontrávamos com maior probabilidade se, a meio ou ao fim da tarde, chegávamos a casa e a procurávamos para dizer “olá, mãe, cheguei”.
A sua poltrona, forrada a veludo azul-giz-taco-de-bilhar, de costas altas e com orelhas laterais, escondia-lhe a figura se espreitávamos da porta. Virada para a lareira e para as largas portas de vidro que deitavam para o lado poente do jardim, estava separada do maple do meu pai por uma das duas mesinhas de apoio que havia naquele canto da sala: numa delas pousava um candeeiro de abat-jour de linho-cru e na outra um velho Telefunken, com a parte posterior aberta, válvulas e condensador à vista. Sempre que o rádio dessintonizava, o som se embrumava ou surgia qualquer outro percalço radiofónico, ela interrompia o crochet e introduzia uma das agulhas de metal nas entranhas eléctricas do aparelho, esgravatando por ali até que a situação normalizasse.
Geralmente a situação resolvia-se e todos nós ficávamos boquiabertos com o duplo milagre do compor da avaria por meios mágicos e por ela nunca ter sido electrocutada no processo. Era esta a sua filosofia de abordagem das coisas em geral, pois vivia distraída a imaginar rimas, enredos ou a construir teorias de explicação e estratégias para controlo dos acontecimentos do seu mundo restrito. 
A minha mãe (fotógrafo e data desconhecidos).
Ser dona de casa naquela época era um destino natural para as mulheres, tal não significando que não fosse condição dura, uma insularidade, como ainda o é hoje em dia para as poucas mulheres que optam por essa condição. O que resta a uma pessoa cuja única ocupação é lidar com a casa, cujas fronteiras mais constantes são as quatro paredes do lar, senão dedicar-se intensamente a esse aquário de marido e filhos? Ou, dizendo melhor, ao pedaço de marido e filhos que lhe sobra, que lhe chega a casa, no caso dos filhos cada vez menos à medida que o tempo se escoa...
A minha mãe tinha uma imaginação considerada demasiado fértil, característica que nos dava muito jeito quando éramos pequenos e, esgotado um assunto de brincadeira, corríamos do quintal, atravessando a soleira da porta de uma outra sala de estar, essa sem lareira e virada a sul, pedindo:
“Mãe, a que havemos de brincar agora?”
Isto foi antes de ter aprendido a ler, pois logo que o fiz ela ensinou-me que um livro era a melhor companhia de todas, ainda mais fiel na nossa vida do que a companhia das pessoas, o que incluía nós próprios. Mas nesses dias pré escola primária, antes da invenção dos infantários, ela mirava-nos com intensidade, sugeria:
“Porque é que não desenham uma história de aventuras, com personagens?”
E passados uns minutos, no meio de um silêncio em que o ruído mais saliente era o entrechocar das agulhas da malha, lá estávamos nós sentados em diversos recantos da sala, de língua a rondar entre os lábios ou roendo pontas de lápis, aplicadamente a desenhar durante horas, numa página dividida em quadrados, heróis de elmo e armadura de malha metálica vagamente semelhantes ao D. Afonso Henriques.
“Mãe, acha que está bem?”
“Tia, de que cor hei-de pintar o castelo?”
E ela, numa tranquilidade calculada, amarrando-nos ao seu projecto de nos fazer amar os livros, respondia:
“Muito bonito! Agora deviam juntar essas histórias e coser tudo num caderno, fazer uma revista...”
Mas não dava ponto sem nó e, por vezes, aproveitava a calmaria do rebanho para nos fazer sentar pelo chão em volta da cadeira dela e nos ler um contozinho que acabara de escrever. A história-tipo era a da pobre costureirinha que, num sotão acanhado e mal iluminado, de olhos pisados pela concentração e pelo cansaço, cosia até de madrugada, os dedos picados de agulhas, enquanto lá fora, numa qualquer esquina granítica da Sé a sua pobre filha ceguinha tentava vender caixas de fósforos a quem passava, para que não morressem à fome e pudessem dispensar umas migalhas do escasso pão à andorinha de asa quebrada que vivia no beiral...
Não me lembro do pormenor, mas diz a minha prima Nunu que nós, as crianças, ouvíamos aquilo muito suspensos e quietos, lágrimas silentes rolando-nos pelas faces. Calculo que seríamos uns excelentes barómetros do efeito que ela pretendia provocar num futuro leitor.
Espinho, 1946 (fotógrafo desconhecido).
Só bastantes anos depois percebi que ser dona de casa não era o projecto de vida da minha mãe. Sonhava seguir o caminho dedicado às letras e à literatura do pai, do avô, gente com obra que se podia encontrar nas montras das livrarias: romances, poesia, peças de teatro, edição de revistas e almanaques... E parecia-lhe que a Universidade, um curso superior em Letras seria um bom começo nessa senda onde amadores tinham vingado: o meu avô materno era banqueiro de profissão e o pai dele, médico e avô preferido de minha mãe, tinha, ainda em pleno século XIX, chocado os lentes com uma tese de licenciatura sobre Neurastenia, coisa só ultrapassada em termos de escândalo por um tio, também médico, que ousara apresentar uma tese sobre O Beijo. Mas, infelizmente, todo este arrojo era exclusividade de macho e que podia fazer uma pobre rapariga com pais a quem a ideia de uma menina seguir a Universidade significava um potencial risco de perda nesse mundo perigosamente mundano que seria o Porto dos anos 40 do século passado? Poderia até prejudicar-lhe o futuro e o casamento com esse príncipe que, entretanto, catava volfrâmio em tronco nu para pagar os estudos médicos e havia de aparecer um dia nos areais de Espinho. 
Fez o que pôde, a minha mãe sonhadora. Casou-se, teve três filhos, educou-os, deixou-os voar para fora de casa com uma linha (invisível como as de pesca) inocentemente amarrada a uma ponta de dedo, e manteve-se poetisa nas horas vagas. Discretamente, sem mostrar o que fazia a ninguém, quero dizer, para além das cobaias...

04 agosto 2010

SUA BELEZA É UM AVIÃO

Peter, Paul & Mary: "Early Morning Rain" (Gordon Lightfoot)


Nota: O título deste post foi tomado de empréstimo à letra de "Triste", composição de António Carlos Jobim.