A minha mãe, dona de casa e poetisa, dirigia o mundo da sala de estar.
Era ali que a encontrávamos com maior probabilidade se, a meio ou ao fim da tarde, chegávamos a casa e a procurávamos para dizer “olá, mãe, cheguei”.
A sua poltrona, forrada a veludo azul-giz-taco-de-bilhar, de costas altas e com orelhas laterais, escondia-lhe a figura se espreitávamos da porta. Virada para a lareira e para as largas portas de vidro que deitavam para o lado poente do jardim, estava separada do maple do meu pai por uma das duas mesinhas de apoio que havia naquele canto da sala: numa delas pousava um candeeiro de abat-jour de linho-cru e na outra um velho Telefunken, com a parte posterior aberta, válvulas e condensador à vista. Sempre que o rádio dessintonizava, o som se embrumava ou surgia qualquer outro percalço radiofónico, ela interrompia o crochet e introduzia uma das agulhas de metal nas entranhas eléctricas do aparelho, esgravatando por ali até que a situação normalizasse.
Geralmente a situação resolvia-se e todos nós ficávamos boquiabertos com o duplo milagre do compor da avaria por meios mágicos e por ela nunca ter sido electrocutada no processo. Era esta a sua filosofia de abordagem das coisas em geral, pois vivia distraída a imaginar rimas, enredos ou a construir teorias de explicação e estratégias para controlo dos acontecimentos do seu mundo restrito. ![]() |
A minha mãe (fotógrafo e data desconhecidos). |
A minha mãe tinha uma imaginação considerada demasiado fértil, característica que nos dava muito jeito quando éramos pequenos e, esgotado um assunto de brincadeira, corríamos do quintal, atravessando a soleira da porta de uma outra sala de estar, essa sem lareira e virada a sul, pedindo:
“Mãe, a que havemos de brincar agora?”
Isto foi antes de ter aprendido a ler, pois logo que o fiz ela ensinou-me que um livro era a melhor companhia de todas, ainda mais fiel na nossa vida do que a companhia das pessoas, o que incluía nós próprios. Mas nesses dias pré escola primária, antes da invenção dos infantários, ela mirava-nos com intensidade, sugeria:
“Porque é que não desenham uma história de aventuras, com personagens?”
E passados uns minutos, no meio de um silêncio em que o ruído mais saliente era o entrechocar das agulhas da malha, lá estávamos nós sentados em diversos recantos da sala, de língua a rondar entre os lábios ou roendo pontas de lápis, aplicadamente a desenhar durante horas, numa página dividida em quadrados, heróis de elmo e armadura de malha metálica vagamente semelhantes ao D. Afonso Henriques.
“Mãe, acha que está bem?”
“Tia, de que cor hei-de pintar o castelo?”
E ela, numa tranquilidade calculada, amarrando-nos ao seu projecto de nos fazer amar os livros, respondia:
“Muito bonito! Agora deviam juntar essas histórias e coser tudo num caderno, fazer uma revista...”
Mas não dava ponto sem nó e, por vezes, aproveitava a calmaria do rebanho para nos fazer sentar pelo chão em volta da cadeira dela e nos ler um contozinho que acabara de escrever. A história-tipo era a da pobre costureirinha que, num sotão acanhado e mal iluminado, de olhos pisados pela concentração e pelo cansaço, cosia até de madrugada, os dedos picados de agulhas, enquanto lá fora, numa qualquer esquina granítica da Sé a sua pobre filha ceguinha tentava vender caixas de fósforos a quem passava, para que não morressem à fome e pudessem dispensar umas migalhas do escasso pão à andorinha de asa quebrada que vivia no beiral...
Não me lembro do pormenor, mas diz a minha prima Nunu que nós, as crianças, ouvíamos aquilo muito suspensos e quietos, lágrimas silentes rolando-nos pelas faces. Calculo que seríamos uns excelentes barómetros do efeito que ela pretendia provocar num futuro leitor.![]() |
Espinho, 1946 (fotógrafo desconhecido). |
Fez o que pôde, a minha mãe sonhadora. Casou-se, teve três filhos, educou-os, deixou-os voar para fora de casa com uma linha (invisível como as de pesca) inocentemente amarrada a uma ponta de dedo, e manteve-se poetisa nas horas vagas. Discretamente, sem mostrar o que fazia a ninguém, quero dizer, para além das cobaias...
Este é um dos melhores episódios que já escreveste!
ResponderEliminarbjs
Susana
@ Susana: Thanks! Como vês já vai em 18 e qualquer dia preciso de um mapa para me orientar na coesão do todo. bjs
ResponderEliminarMuito doce e terno. Parabéns à tua mãe e a ti que a tiveste!!!
ResponderEliminar@ Aninha, obrigado pelos meus parabéns; os dela mandei pró Céu...
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