Maciel
ia mantendo a conversa enquanto dispunha uma espreguiçadeira sobre a relva,
apontava-me outra.
“Estava
a pensar em quatro dias, é tudo quanto tenho de férias...”
“Quatro
dias...? É pouco...”, respondi tentando acomodar o paraíso que lhe aconselhava para
aquele período de tempo tão curto. “Bem, daqui a Atenas, com escala, faz umas
cinco horas; mais duas para transportes e uma para o barco até à ilha... Ficas
com dois dias limpinhos... É curto, mas mesmo assim vale a pena.”
Ele
não respondeu, já deitado na cadeira, um braço dobrado sobre a testa e a cabeça
levemente voltada na minha direcção, único sinal de que ainda me seguia o
discurso.
Agora
o cenário é já outro, naquela sem cerimónia dos sonhos que nunca se incomodam
com transições e sequências lógicas. Havia um extenso relvado e gente disposta
por ali, em pequenos grupos, como se todos aguardassem por um picnic. Eu fora
colher erva-príncipe para o chá colectivo e voltava com um grande arbusto,
empinado nos braços, e todos os sentados seguiam com admiração o meu percurso
tacteante e a majestosa magnificência do exemplar que arrancara pela raiz.
Quanto a mim, seguia absorto e descalço, tentando manter o porte vertical ao
arbusto, mas, pelo canto do olho, tomando nota de que Piero trepava pelo
limoeiro acima em direcção aos limões. O limoeiro era árvore altíssima, o
italiano pairava acima de nós já uns dez metros, e eu a considerar que o
esforço tinha algo de disparatado, pois a erva-príncipe tem um aroma de limão, de modo que para quê tal esforço. Todavia
era bonito ver aquele entusiasmo, quadrava com o tremente das folhas da minha
planta.
No
relvado, as pessoas continuam à espera, sem pressa, algumas seguem Piero lá no
alto, outras passeiam por ali. Mimi e uma amiga passam por mim, com a pose
curiosa de turistas. Abraçado à minha árvore, pergunto se já foram espreitar
junto do gradeamento de ferro que fecha o relvado no limite que dá para a
cidade. Eu próprio estivera lá momentos antes (ou seria depois?) e ficara
deslumbrado com a visão. Que miríade de pormenores, que vista da cidade... No
primeiro plano, um gigantesco penedo, formado por três corpos que se fundiam
harmoniosamente num só, imenso, cor de pedra, cinzento brilhante, esfumando-se.
E só após deixar os olhos habituar-se se percebia que a mole não era mais do
que as costas altaneiras de uma catedral que ali esperava, fechada sobre si na
paisagem.
Elas
aceitaram a sugestão, fiquei a vê-las afastar-se em direcção ao gradeamento,
sem urgência ou preocupação de que o chá pudesse arrefecer. Reparei então nas
descomunais medas de feno, de cor amarelo-maduro, quase avermelhado, que tinham
surgido e ocupavam quase todo o prado. No cimo de duas delas andava já gente a
explorar aquilo. Pudera, como era tentador pensar em subir, apreciar as vistas
dali, sentado ou deitado no acolhedor daquele material fofo, seco e perfumado!
Estou sentado no cume, entretenho-me com a cabeleira loura de alguém deitado
logo abaixo de mim e de quem reconheço vagamente as feições, mas não o
suficiente para lhe conseguir dar o nome. Se lho desse, seria o reconhecimento.
“Amor”,
escuto dizer. Fico sem a certeza de a palavra ter relação comigo ou me ser
dirigida. Deixo-me estar, mas, um minuto passado, a cabeleira loura pronuncia o
meu nome. Sinto-me extasiado, é um lado de lá; o dia tornou-se perfeito como se
estivesse sentado no topo do mundo.
Mariano
aparece em minha casa, já não o via, nem lhe falava, há uns dez ou quinze anos.
Percorre a casa, detém-se na sala a observar os livros e os CD.
“Tens
muito mais livros e discos do que antigamente...”
“Achas?”,
pergunto, algo espantando que se note, mas compreendendo ser lógico tendo em
consideração o tempo decorrido.
Mas
ele já se distraiu de mim e conversa com o meu filho sobre coisas várias,
põe-se a par, como se o que o meu filho lhe pudesse contar fosse informação
mais curiosa ou fidedigna. O meu filho está a explicar-lhe que o pai só se zanga
mesmo quando está debruçado a escrever e alguém, sem aviso, se chega e o
interrompe.
“Até
estremece”, diz rindo-se. Mariano ri também. Confirmo, mas tento justificar:
“É
que eu não estou lá...”
© Fotografias (de cima para baixo): 1. Torreira, 2017; 2. Urgeiriça 2016; 3. Praia da Areia Branca, 2016.