África Minha (esboços e retratos africanos)



C A B O  V E R D E



1. PRIMEIRO BEIJO
"Dor di Nha Alma", cantado por Lucy, © filmado por Pedro Serrano, Praia (Santiago), Dezembro 2011. 
Também disponível no U-Tube.

2. SONHO AZUL



Sonhei com o farol da Prainha
Em Santiago
Com águas que se alisavam
Feito um lago.
Sonhei com o farol da Prainha
Muito aprumado
Branco como um lenço de assoar
Todo debruçado ao rés do mar
A luzir, a acenar, a espreitar
Como se alguém pudesse chegar
Com olhos sequiosos a enxugar
Marejados, regressados,
Da ausência resgatados.


3. A SUA COISA É TODA TÃO CERTA

Dando como adquirida a minha competência em cooperação internacional, ao aproximar-se o primeiro fim de semana que passámos em Santiago, a Ana C. perguntou-me se conhecia algum cabeleireiro na cidade.
Que não, respondi, que até já tinha cortado o cabelo em La Habana e em Tóquio, mas nunca em Cabo Verde. Sugeri-lhe que se aconselhasse com as doutoras que trabalhavam na Cooperação portuguesa, sempre tão incansáveis a dar resposta às nossas mais diminutas necessidades logísticas. Ela assim fez e na sexta, à hora de jantar, apareceu com um look todo envernizado, encheu-me de novidades e aproveitando, cheia de malícia, a brecha que eu lhe proporcionara ao dizer que se o cabeleireiro fosse bom talvez recorresse aos seus serviços, pois precisava de cortar o meu remanescente cabelo:
“O senhor tem de lá ir... O salão chama-se Beleza Pura e o cabeleireiro Elvis...”
Previdente, a Ana C. trouxera um cartão onde, para além de se esclarecer que o tal Elvis tinha salões em Santiago e em S. Paulo, constavam os telefones. Marquei apontamento para Sábado às três da tarde e, máquina fotográfica a tiracolo para o que desse e viesse, parti à aventura, ciente de que um salão que escolhera para nome uma canção do Caetano Veloso só podia ser recompensador.
Consegui cortar o cabelo, mas nunca disparar a máquina fotográfica, pois, pelo menos, seis pares de olhos femininos nunca mais me largaram desde que a minha silhueta se recortou na porta de entrada, um deles propriedade de Nancy, a recepcionista brasileira. Quanto a Elvis, também ele brasileiro, esse tratou-me invariavelmente por “querido” sempre que me interpelou, fosse para indagar se a água estava suficientemente morna ou para saber se desejava que me aparasse as sobrancelhas.
À saída, enquanto pagava e por continuar sem abertura para poder usar a máquina fotográfica, fui circunvagueando o olhar pelas paredes, tomando conhecimento do catálogo de serviços do Beleza Pura, que incluía fortalecimentos capilares e extensões, mas também préstimos de qualquer tipo de depilação íntima, desde aquela que tem por única finalidade ajudar a respeitar as fronteiras da parte inferior de um bikini, à poda mais radical.
Estava uma tarde de sol inspiradora e, sabendo que dali a meia-hora estaria a trabalhar, fiz o caminho de regresso a pé, para gozar daquela sensação de leveza que um céu azul e um cabelo recém-aparado proporcionam. Como as coisas tinham mudado desde a minha juventude... Onde, no meu tempo de rapaz, seria possível um gajo ir cortar o cabelo a um cabeleireiro de senhoras? Ou ser servido por um barbeiro chamado Elvis que nos trata por “querido”? E a depilação íntima... No meu tempo não havia disso, elucubrava rua abaixo baseado quer na experiência pessoal quer na observação fortuita das revistas masculinas (Playboy, Penthouse ou Lui), onde as modelos ostentavam, conforme os fenótipos com que a mãe-natureza as brindara, uma vegetação ora estépica ora luxuriante e com o atrevimento migrante da vinha-virgem. Era o reinado soberbo da variedade! Mas agora, e apercebia-o como uma perda, parecia que todos os cabeleireiros do mundo se tinham juntado em congresso para discutir prejuízos e descobriram, por sugestão inspirada de um congressista brasileiro, o filão da depilação generalizada como garante do seu futuro económico. E decretaram a ditadura dessa moda de toda a mulher trajar um adorno púbico esquálido, preciso e similar, o que recuperou o viço financeiro dos salões de beleza e dos apicultores e entristeceu os clássicos.
E, no meio dessa tarde azul, dei comigo a trautear o “Você É Linda”, outra canção do Caetano Veloso em que, louvando a beleza das diversas partes da sua musa, ele se refere a isto mesmo cantando, em voz melosa e sonhadora: “a sua coisa é toda tão certa...”  

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Goa (Índia), 2011; (2) Lisboa, Jardins do Instituto de Higiene e Medicina Tropical 2012.

4. AS NOITES BRANCAS DO SENHOR DA ROSA

Quando a Luz nos deixou ao portão da embaixada eram quase quatro da tarde! No trajecto até à porta dos nossos apartamentos estripei a gravata, disse à Ana Cristina:
“Vou fazer a mala e esticar-me um bocado em cima da cama, estou roto. De outro modo vamos passar mal logo à noite...”
Dali a meia-dúzia de horas teríamos de estar no aeroporto e uma exposição de objectos, dispersos pelo apartamento ao longo de três semanas, esperava ser enfiada numa mala que, mirando-me do canto do quarto, já se ia recusando a acumular dentro de si tanto despojo.
Na hora seguinte abri e fechei portas de armários, indaguei fundos de gaveta, decidi que era um disparate transportar comigo o que restara do sabonete que comprara no Kalu & Ângela, o pacote de bolachas torradas. Escrevi um bilhete à Ita, a agradecer as limpezas, as doses generosas de toalhas novas, deixando dito que podia levar as maçãs do minibar, os iogurtes, o pacote de bolachas.
Depois, com a sensação de ter tudo sob controlo, semicerrei os estores e estendi-me na cama para a sesta antes do jantar, a acumular uns átomos de sono que seriam preciosos na dissipação das horas de espera no aeroporto, na noite, sempre mal dormida, a voar sobre o Saara. E em Lisboa, que estavam menos de dez graus, um frio de rachar!
Eram agora cinco e meia. Para o que desse e viesse, configurei o telemóvel para  despertar às sete: teria assim o tempo necessário para me vestir, deixar as malas no apartamento da Ana Cristina, chegar a horas ao jantar com as ministras e os outros importantes todos. Fechei os olhos.
De imediato, desfilou na tela interior dos meus olhos a cerimónia de encerramento do Curso, o discurso do Paulo, as fotografias de despedida com os alunos – a Domingas como fotógrafa –, o almoço volante no andar de cima do Centro de Formação... Que bem se tinha comido: apesar do calor que reconfortante aquela sopa de farinha de milho grosso com pedacinhos de peixe a flutuar, o atum assado, o ensopado de cabrito (não falta nunca cabrito aos almoços especiais de Cabo Verde) e, soberbos, o doce de papaia com queijo de cabra e...
“Já provou o pudim de coco, Ana Cristina?”
“Estava a preparar-me agora para isso”, respondeu, “estou apenas indecisa entre o de coco e o de queijo...”
“Ah!, não hesite”, esclareci, veemente, “vá pelo de coco, está divino! Sabe o que é divino?!”
Garantiu-me que sabia, afinal é católica praticante.
As pálpebras descaíram um pouco mais, a mente deslizou por entre imagens soltas, o sono começou a invadir-me como uma névoa benévola... Foi então que o telemóvel tocou.
“Professor? Aqui José da Rosa. Hoje à tarde não tive a oportunidade de me despedir convenientemente... Tinha muito gosto em convidá-los para ir tomar uma bebida ao meu bar...”
(Em África toda a gente nos chama ‘professor’, já desisti de explicar que, embora passe parte razoável do tempo a dar aulas, não sou um académico encartado).
O Dr. José da Rosa, médico e solteirão inveterado, foi nosso aluno no Curso Internacional de Especialização em Saúde Pública, ao qual chegava, diariamente, levemente atrasado, nada de muito grave, nada que o impedisse de participar empenhadamente no decorrer das sessões. A mim, ele lembrava-me sempre um daqueles personagens que aparecem nas telenovelas brasileiras, passadas nos anos 30 ou 40 em cidades do interior; aquele senhor muito delicado, impecavelmente vestido, com uma pose entre o tímido e o esquivo, solteirão pétreo que vive com uma mãe idosa para não ser asfixiado por alguma mulher mais perigosa. Para além de todas estas virtudes, o Zé da Rosa toca violão, canta, tem um bar (gerido pela irmã) com o seu nome numa das ruas principais do Plateau, bar onde, em noites inspiradas, se fecha a porta e se fazem serenatas... O Jorge Amado poderia inspirar-se nele, no jeito pausado de articular as palavras, de acentuar as sílabas como se as declamasse num português sul-americano que ecoa a toada do castelhano cubano; de iniciar a resposta a qualquer questão, ainda que de sentido afirmativo, com um “não”.
Sim, era verdade, o Zé da Rosa não se despedira convenientemente de nós. Chegara um pouco atrasado à cerimónia de encerramento do Curso e desaparecera, misteriosamente, durante o almoço; quando saímos não o conseguimos encontrar para dizer um adeus.
“Ah, não se preocupe, professor”, atirou a Luz, com o seu ar de menina travessa, “deve ter ido por aí fazer alguma visitinha...”
Desliguei o telefone, sentei-me na borda da cama, cocei a cabeça.
“Ana Cristina”, disparei mal ela abriu a porta, “o Zé da Rosa quer que a gente vá ao bar dele, ver a Noite Branca no Plateau...”
“Agora?!”, exclamou ela, arregalando os olhos ensonados.
Foi ela que ligou ao homem, a esclarecer a coisa, tentando dissuadi-lo, pois tínhamos pouco mais de três quartos de hora para todo o programa proposto: chegar ao Plateau, ir ao bar, ver a Noite Branca, estar no jantar de gala às oito em ponto. Mas o Zé da Rosa achou toda aquela argumentação pouco impressionante, garantiu-nos que havia tempo para tudo, dentro de dez minutos estaria à porta da embaixada à nossa espera.
Aproveitei os dez minutos e fui ao meu quarto buscar a mala, transbordei-a para o apartamento da Ana Cristina. Depois, olhei uma última vez o meu quarto, verifiquei que não esquecera nada e bati a porta com a chave lá dentro, que são as regras de quem parte.
“Dr. Zé da Rosa, acha mesmo que temos tempo de ir lá em cima?”, disparei mal nos abriu a porta do jipe, “não era melhor ficarmos aqui pelo Poeta?”
“Não, temos muito tempo; em cinco minutos estamos lá em cima...”
“Olhe que, às oito em ponto tenho de estar no hotel Praia-Mar...”
“Não, professor, não vai haver problema, às oito deixo-o lá...”
A cidade da Praia, capital da ilha de Santiago e do arquipélago de Cabo Verde, também se recorta em colinas e a nossa vida por lá consistia em descer do morro da Achada de Santo António, onde se situa a embaixada de Portugal, e subir até ao Plateau (como o nome sugere, a parte alta da cidade), onde ficava o nosso local de trabalho. Entre colinas, tem-se o mar aos pés e, no cimo delas, uma vista cheia sobre o Atlântico, em azul, verde ou prateado conforme as horas.
O trânsito começou a emperrar no começo da subida para o Plateau e o meu sentido do tempo fez-me mover, inquieto, no assento, enquanto, ao volante, o Zé da Rosa falava da vida de Cesária Évora, que morrera nessa tarde. Andámos mais uns metros e começou a ouvir-se o som profundo de tambores, uma massa de som como o dos nossos Zés Pereiras, mas com uma batida que lembrava a do carnaval brasileiro. Abri a janela, senti entrar o cálido da noite, esqueci o tempo e perguntei:
“Afinal o que se passa no Plateau?”
“Não”, respondeu o nosso guia, “são as festas da cidade, a Noite Branca...”
Dei-me então conta que o homem estava vestido de branco... Pensei em neve...
“Mas tem a ver com o Natal? É uma tradição de Dezembro?”
“Não, tem a ver, sim, com o Natal, mas é a primeira vez que as festas se fazem na cidade; estão a assistir a isto pela primeira vez”, respondeu ele, extasiado por estarmos a assistir com ele ao nascimento de um fenómeno.
A culpa daquilo tudo era do novo presidente da Câmara de Santiago. Nós já tínhamos reparado que, nos últimos dias, uma azáfama especial se apoderara calmamente da cidade: muros estavam a ser caiados, passeios reconstruídos a alta velocidade; ao lado da esplanada do Morabeza nascera uma feira do livro que se espraiava pela rua pedonal, palcos eram carpinteirados...
“Não, o homem teve uma ideia genial e cada local do Plateau vai ter uma animação, toda feita pelo povo: numa praça vai dizer-se poesia, noutra faz-se teatro, noutras ruas vai ter música... E foi pedido que toda a gente saísse vestida de branco.”
E era tudo isso, com uma passagem rápida pelo Bar José da Rosa, que ele nos queria mostrar entre as sete e meia e as oito.
O nosso guia estacionou o carro num sítio meio proibido e deslizámos por entre gente vestida de branco. A cada cinquenta metros uma pessoa cumprimentava o Dr. José da Rosa e, a cada cem, ele parava para nos apresentar alguém com quem trocava saudações de Natal, com quem comentava que linda e animada estava a cidade. E até a nós, olhos recentes no Plateau e em Santiago, tudo nos parecia transfigurado. Na praça vizinha da loja de discos, um tipo fazia um monólogo cómico em crioulo, para logo passar a apresentar um coro que tomou conta do palco e da noite a cantar clássicos de Natal.
Começou a apetecer-nos abrandar o passo, ficar a olhar o que se passava e agora era o próprio Zé da Rosa que olhava pelo nosso relógio. Avançámos e na rua principal, mesmo ao lado do mercado, um palhaço interpelava um cacho de miúdos pequenitos a imitar os gestos e as vozes de animais: gatos, galinhas, cães e, suspense maior, o rugido e o avançar perigoso de um tigre. Em volta, pais e mães sorridentes, gargalhavam, batiam palmas. Mais à frente, já não distante da esplanada do Morabeza, uma roda compacta de assistentes não deixava ver o que se passava no seu centro, apenas nos chegava um batucar incessante. Furámos, esfuracámos entre cabeças e ombros até termos um vislumbre do miolo: eram batucadeiras, algo que já ouvira em CD mas nunca vira. Um rancho de mulheres sentava-se em círculo com um pequeno tambor entre as pernas e produzia um som contínuo que nos atingia directamente no plexo solar. No meio da roda, seis ou sete mulheres dançavam ao ritmo da percussão. De tempos a tempos, as instrumentistas aceleravam o ritmo para uma batida frenética e as dançarinas acompanhavam o frenesi sonoro com um movimento de corpo vizinho próximo da possessão, mexida que contagia quem vê, e passei a sentir o coração bater directo na garganta.
“Temos de ir...”, soprou a Ana Cristina a meu lado, depois de se conseguir arrancar daquela visão e ter olhado o relógio.
Regressámos ao carro, o olhar ainda preso nas manifestações que se desdobravam em cada canto, na multidão passeando-se de lá para cá numa festa de Natal que tinha algum tempero das celebrações dos santos populares portugueses.
“Ainda bem que insistiu para que viéssemos, Dr. José”, a Ana Cristina dava corpo ao que era exactamente o meu pensamento nesse momento.
“Não, tenho pena é de não termos podido passar pelo meu bar, mas, de facto...”
De facto já eram oito menos cinco e o jipe ainda gincanava entre gente, mas porque estávamos em pleno milagre de Natal o José da Rosa, guiando de forma algo destemperada, conseguiu pôr-nos no nosso destino à hora marcada.
© Fotografias de Pedro Serrano, cidade da Praia (Cabo Verde), 2011.

5. SAUDOSAMENTE

Como todas as mulheres cabo-verdianas, a Ministra Adjunta e da Saúde é uma mulher bonita, particularmente quando lhe é permitido relaxar da pose fechada dos momentos oficiais e nos brinda com um sorriso expressivo e um olhar inteligente e incisivo.
A senhora chama-se Cristina Fontes e aquele ‘Adjunta’ que antecede o  cargo de ‘Ministra da Saúde’ quer dizer que é também adjunta do primeiro ministro do país. Mas, afinal, que é isso para quem já foi Ministra da Reforma do Estado e da Defesa ou seja, para quem já mandou em todos os homens armados do arquipélago?
No dia 17 de Dezembro, enquanto por aqui se batia o dente, a cidade da Praia amanheceu azul e quente e, ainda não batiam as dez da manhã, já eu suava em bica, estrangulado pela gravata de cerimónia que o encerramento do Curso, de que era um dos responsáveis, aconselhava e a presença de duas ministras e meia (duas da Saúde, mais o tal acrescento de ‘Adjunta’) tornava obrigatório.
Durante a tarde soubemos da morte de Cesária Évora e pensei até que o jantar para que a Ministra, gentilmente, nos tinha convidado poderia ser cancelado perante tal desgosto nacional e a perspectiva de três dias de luto.
Quando a Ministra chegou ao hotel onde decorreria o jantar, meia-dúzia de portugueses comentavam o emblemático e recém-cometido gesto do Futebol Club do Porto: no início do jogo dessa noite fizera-se um minuto de silêncio no Estádio do Dragão e as dezenas de milhares  de pessoas que enchiam o recinto puseram-se de pé e entoaram o “Saudade”. Juntando-se ao pequeno grupo, a Ministra ouviu a história e vi, pela sua expressão e pelo pedido de repetição de alguns detalhes, que a homenagem portuguesa a tinha impressionado.
Mais tarde, já durante o jantar, o grupo musical que abrilhantava o fundo sonoro, tocou o “Saudade” e a Ministra, mal eles terminaram a canção, pediu o microfone ao cantor e falou o que lhe ia na alma. Sobre Cesária, fundamentalmente, e o que ela acabara por ser ao tornar-se, pela música, embaixatriz de Cabo Verde no mundo. Não deixou, como eu sabia que aconteceria, de referir o que se tinha passado, escassas horas antes, num estádio de futebol português e o quanto isso lhe fora grato conhecer.  Encaixado entre benfiquistas e sportinguistas, que os meus comparsas portugueses no jantar eram todos do Sul, senti o quentinho que subia em todos nós daquela salva de palmas e, adjunto, um suplemento de brilho pela iniciativa mais bonita daquele dia ter brotado em gente da cidade onde nasci.

6. O TÁXI HUMANO

Aqui, na cidade da Praia, vou todos os dias tomar o pequeno-almoço ao Pão Quente, um café-pastelaria de índole fortemente caseira, onde me sento e peço, em português sonolento, a uma das empregadas de turbante cor-de-laranja: "Queria uma carcaça com queijo, sem manteiga, e um Ucal de chocolate fresco..." No estrangeiro, melhor do que isto, é difícil de imaginar, não?
Pois o Pão Quente do Plateau, aquele que frequento de manhãzinha antes de começar o trabalho, está pujante e abriu agora duas filiais na cidade: uma no Palmarejo, lá para os lados do Palácio do Governo, e outra na Achada de Santo António, mesmo em frente aos nossos apartamentos da Cooperação Portuguesa.
Hoje, que é Sábado, fui lá tomar o meu pequeno-almoço tardio e, enquanto esperava, fui reparando que, por cima da caixa, havia uma fotografia emoldurada de um velho senhor sorridente, na qual, como legenda, se lia "DÁTI, Táxi humano". Curioso, como sou, não demorei a perguntar quem era e porque ali estava aquele retrato. 
A moça do turbante cor-de-laranja de serviço aos trocos explicou que Dáti era um homem que transportava, fosse o que fosse, de um local para qualquer outro local, cobrando sempre a quantia de 2$00 escudos (cerca de 17 cêntimos), independentemente da distância percorrida e da carga ser um bidão de água, uma bilha de gás ou um saco de cimento.
Dáti morava numa casinha modesta, situada no local onde agora inauguraram o Pão Quente da Achada de Santo António, e, embora já falecido, continua a ser um personagem querido na zona.
"Ah, então foi uma espécie de homenagem que vocês lhe resolveram fazer..."
Ela abanou o turbante afirmativamente e fechou a gaveta da caixa registadora sobre o troco que pousara na palma da minha mão.

7. A PASSARINHA

Não há moeda cunhada, nota impressa, mais bonitas do que as de Cabo Verde. Que empenho em relação à monotonia do esverdeado dólar norte-americano, à burocrática uniformidade do euro ou ao aspecto amarrotado e pouco higiénico do kuanza angolano.
Em Cabo Verde é um prazer olhar para a divisa, há mesmo uma nota (a de 2.000 escudos) que nos dá a conhecer um poema sobre o martírio do amor, cuidadosamente caligrafado sobre o fundo azul e rosa de uma flor de cinco pétalas! Quanto às moedas, uma é atravessada por um veleiro pensativo, noutras se homenageiam plantas locais ou pássaros do arquipélago.
Um das aves cunhadas é  o Halcyon leucocephele, mais conhecido por Passarinha. Ao invés do que o nome pode fazer suspeitar, a passarinha é mais uma passarona e, em tamanho, rende cinco ou seis pardais dos nossos.
Aqui, no hotel onde estou, há uma que reina no pedaço de jardim que tem por sul o mar e por fronteira a piscina, e a passarinha passa a luz do dia a mergulhar do telhado para o relvado vizinho, a bicar algum insecto ou verme que percepciona lá do alto com o seu olhar agudo, bichito que pinça com o bico poderoso, a fazer lembrar o do melro, e engole em pleno voo, mesmo antes de pousar no intrincado tecido de uma ramagem de palmeira ou se empoleirar, triunfante e breve, no vértice carnudo de uma folha de cacto.
Mas o que emociona, o que transcende a biologia e, talvez, a tenha feito merecer a eternidade da prata gravada é a plumagem azul que reveste o terço inferior do corpo da ave e, quando ela levanta voo, faz empalidecer de inveja o brilhante anil do céu africano, ofuscado pela aparição de um azul-cobalto desdobrado de fresco no arco-íris de um país das maravilhas.


8. QUAL É, QUAL É?

Bem que desconfiei, mas, àquela distância, não podia ter a certeza... Qual poderia ser a nacionalidade de um tipo que, hóspede de um hotel de bom nível, enfiado na piscina até ao pescoço, conversava animadamente com o operário que, de cócoras na tijoleira adjacente, picava metodicamente o chão? Parecia até que o tal hóspede, a crer nos gestos que fazia, estava até a dar alguns conselhos avulsos ao trabalhador. O que era certo é que o operário estava a gostar da intromissão e aproveitava o entusiasmo do banhista para parar as marteladas e conceder uma pausa a si próprio sob a torreira implacável das duas da tarde.
Inglês, belga ou holandês? Huumm, não me cheirava; acho que alguém dessas bandas e com o padrão colonial que lhes é conhecido, não se dignaria a tal deferência e, se tivesse sugestões a fazer, optaria por as apresentar na ponta de uma chibata. Americano? Huumm, também não apostaria em tal; esses talvez que até se dirigissem oralmente ao espécime-em-vias-de-desenvolvimento, mas para comunicar a denúncia de um contrato que, assinado em cinco cópias, não estava a ser cumprido nos prazos estabelecidos.
Tive de aguardar, sentado na esplanada sobre a piscina como um sáurio camuflado no meio dos nenúfares, que o dito hóspede tivesse sede, emergisse das águas, se aproximasse, se sentasse na mesa a seguir à minha e encomendasse ao empregado do bar "uma cervejinha bem gelada e, à falta de tremoços, um pratinho de amendoins..."

9. NATAL EM PLENO VERÃO

Dei-o por barato aquela primeira vez; ia sair-me caro.
Deixava o Pão Quente, um café com padaria onde todos os dias ia procurar pequeno-almoço e o tomava com as idiosincrasias só possíveis em Portugal: carcassa com queijo flamengo, Ucal de chocolate, fresco, “ai, acabou-se? então traga-me um Sumol de ananás fresco”.
Vi-o pelo canto do olho, fingi que não, continuei a andar enquanto ele se punha ao nosso lado, marchava ao nosso ritmo, como se fosse um de nós. Pediu uma moeda, quis saber se estávamos mesmo bons…
“Estávamos”, respondi sem mover a cabeça, “até que apareceu aqui um mosquito…”
“Em Cabo Verde não há mosquitos”, respondeu prontamente, “costumava haver mas já não há…”
E foi-nos bombardeando com frases bem humoradas nos cem metros que nos separavam do nosso destino, de tal modo contente, inspirado e envolvente na insistência que, antes de entrar a porta, lhe dei os 100 escudos (cerca de 90 cêntimos de euro) que nos tinha pedido no princípio.
“Vais trabalhar, agora?”, perguntou.
“Vou”, respondi, olhando-o de frente pela primeira vez. Era magro, alto, vestia roupa amarrotada, não cheirava como um anjo, e não teria mais que catorze ou quinze anos.
“Bom trabalho”, desejou, dando meia-volta, “vemo-nos por aí…”
E vimos. No dia seguinte, pelas oito da manhã, quando saí do taxi à porta do Pão Quente encontrei-o, encostado à montra, vestindo, por cima da mesmíssima camisa amarrotada da véspera, um casaco vermelho de Pai Natal, orlado de pelinho branco e tudo.
“Então, meu amigo”, saudou-me com um grande sorriso, “vais tomar o pequeno-almoço antes de trabalhar?”
Depois confessou que ainda não tinha tomado o dele, que até se sentia mareado…
“Safas-te com isto?”, perguntei, metendo  a mão no bolso e estendendo-lhe 100 escudos.
“Claro”, agradeceu, os dentes todos expostos à magnífica luz da manhã e dando-me uma espécie de abraço conscientemente pouco apertado, como convém entre gente que se conhece pouco, “vemo-nos por aí…”
À hora do almoço, a meio do caminho para o Casa Grande, o restaurantezinho-tasca onde íamos sempre almoçar, apareceu, saudando efusivamente do lado de lá da rua:
“Hoje não te vou pedir mais dinheiro, já me deste 100 paus de manhã”, disse, mostrando que tinha uma ética pessoal, “só te peço que me ofereças um prato de arroz, não como nada desde manhã”.
Tínhamos chegado à porta do restaurante. Parei, convidei-o:
“Está bem, então, pago-te o almoço”, e abri a porta, convidando-o a entrar.
“Dá-me antes 300 paus”, propôs, “vou comer a outro sítio que conheço, a ti sai-te mais barato – esse restaurante onde vais é caro”.
Pegou nas moedas que lhe dei, tranquilizou-me:
“Não te preocupes, quando acabares de comer já estarei aqui à tua espera...”
No dia seguinte, não o vi de manhã, à porta do Pão Quente, mas encontrei-o à hora do almoço, descalço e com um ar preocupado.
“Descansa que não te vou pedir dinheiro, és meu amigo e tens-me dado de comer, só te peço se me ajudas a comprar uma havaianas... Fui à praia, tomar banho no mar, e quando voltei tinham-mas levado...” E, olhando, desolado, para os pés, como se fosse vergonhoso andar assim pelo cimento quadriculado quente: “Olha só...”
“E quanto custam umas havaianas?”
“Podia arranjar umas por 300 paus nos chineses, mas são uma porcaria – iam desfazer-se logo, era o mesmo que não comprar nada”, respondeu, pensando em alternativas válidas: “Por 600 escudos compro uma coisa boa”, concluiu, rápido.
Meti a mão ao bolso. Entre as abundantes notas de 2.000 e 1.000 escudos que lá tinha saquei discretamente uma nota de 500.
“Toma...”
“Não percebeste bem, eu disse 600...”
“Eu sei, mas não tenho mais que te possa dar...”
Pegou na nota e, num ápice, já estava no outro lado da rua, sossegando-me em voz sonora e satisfeita:
“Não te preocupes, vou arranjar os 100 paus por aí!”
Já estava eu a dobrar a esquina com a rua Andrade Corvo, apareceu-me, como caído pela chaminé do céu quente da tarde, para informar:
“Amanhã trago-te as havaianas novas, para veres que as comprei...”
E, de facto, na manhã seguinte, nem eram bem oito, lá estava, encostado à montra do Pão Quente, sorridente e descalço, um saco de plástico azul-bebé a tiracolo, fazendo contraste com o vermelho intenso do casaco de Pai Natal.
“Amigo, olha”, recebeu-me com o sorriso resplandecente, e extraiu do saco um par de sapatilhas de lona de um belo azul-escuro e solas de borracha branca.
“Consegui-as por 500 paus e ainda mais isto...”, esclareceu, levantando as bainhas esfiapadas das calças e exibindo uma espécie de polainas em borracha, uma coisa com ar de acessório de surfista.
Último dia na Praia, ilha de Santiago. Chego ao Plateau, a zona da cidade em que estou a trabalhar e onde reina o meu jovem amigo, com a ideia de lhe tirar uma foto, saber-lhe o nome, confirmar a idade. Não o encontrei de manhã, mas, à hora do almoço, saído do nada e como por milagre, apareceu-me já eu ia em plena rua Miguel Bombarda, a rua do restaurante Casa Nova.
“Onde está o teu casaco de Pai Natal?”, inquiri, algo desiludido, “gostava de tirar-te uma fotografia com ele...”
“Nunca uso casaco a esta hora, é muito calor! Só o uso para dormir no carro, e de manhã, quando ainda está frio...”
Depois reparou no blazer azul que eu trazia vestido, emendou a mão:
“Tu tens de usar casaco, és um senhor de posição; mas eu não...”
E logo arranjou uma solução:
“Não te aflijas, vais trabalhar e, quando acabares, procuras-me na montra do Pão Quente, vou estar lá e levo o casaco vestido...”
Quando, pelas três e meia da tarde cheguei à montra do café, vi-o sair de um carro, estacionado na berma do passeio, um automóvel já sem pneus e vidros nas janelas, com o ar arruinado e triste dos carros abandonados.
“É ali que moras?”
Era. Antes de lhe tirar as fotografias perguntei-lhe a idade, o nome, e para que não me esquecesse apontei-os num canto do cabeçalho do jornal que levava comigo. Ele seguiu atentamente a minha escrita, foi soletrando as letras à medida que eu as desenhava: o meu Pai Natal tem 15 anos e chama-se Nixon. Nixon Rodrigues Pedrigues, como fez menção que ficasse registado. 
© Fotografias de Pedro Serrano, Praia (Cabo Verde), Abril 2011.

10. SEM EIRA NEM BEIRA

Chama-se Nixon, anda pelos dezasseis anos e quando o conheci morava num Nissan abandonado na rua Andrade Corvo, mesmo em frente à porta da confeitaria-padaria Pão Quente.
Isto de o conhecer passou-se em Abril e nessa altura ele usava um daquelas casacos de pai Natal, vermelho-vivo, com debrum de pelinho branco e tudo. Embora o clima seja invariavelmente quente em Cabo Verde, as noites podem arrefecer e as manhãs fazer estremecer quem dorme num carro abandonado que foi sendo defenestrado de vidros e pneus.
Apesar disso, morar ali tinha algumas vantagens para ele, pois estava mesmo à porta do trabalho e podia saltar directamente do carro para competir com os outros dois pedintes que param por ali, um deles com uma capacidade de amolecer porta-moedas superior à do Nixon, pois falta-lhe metade de uma perna e arrasta-se sobre canadianas.
De facto, apesar de trabalhar em casa, o rapaz tem a desvantagem de ser novo, mas, infelizmente, não tão novo que possa ser olhado pelo caleidoscópio da criancinha ramelosa e faminta que estende os dedinhos à caridade. O Nixon não era rameloso, ranhoso, nem tinha um ar famélico, mostrava até um ar bem tratado, alegre e um tanto provocador, qualidades fatais num pedinte!
Nas proximidades não gostavam dele, as empregadas do Pão Quente vinham cá fora com frequência descompô-lo, pois batia nos vidros da montra para chamar a atenção de alguém, empurrava a porta para dizer uma piada e fugia; pegava-se com a concorrência, mas escapava com grande rapidez da canadiana em riste do manquinho...
Bem, foi no princípio de Abril que conheci o Nixon e, para quem estiver interessado em mais detalhes, descrevo esse começo de relação num texto a que chamei Natal em pleno Verão, texto que fez algum sucesso entre os meus ouvintes que, de vez em quando e sobretudo se regressava de um salto a África, me perguntavam por ele como se o conhecessem!
Em Junho voltei a Cabo Verde, o Nissan continuava assapado sobre as jantes no mesmo sítio, mas de Nixon nem sinal nas consecutivas manhãs em que, antes de ir trabalhar, fui tomar o pequeno-almoço ao Pão Quente. E, assim, regressei a Portugal sem hipótese de informar os curiosos e algo apreensivo pelo que poderia ter acontecido ao rapaz, o que, face ao contexto, poderia não ter sido nada de bom. Na realidade, nesta realidade, que futuro espreita um rapazito de quinze anos vivendo à solta no meio de uma cidade, sem família ou escola que o amparem e ajudem minimamente a formatar?
Agora, anteontem, voltei à rua Andrade Corvo e ao meu pequeno almoço no Pão Quente, o manco a coleccionar as moedas que dantes costumava dar ao Nixon. Para além do mais, o Nissan desaparecera da zona, o seu local preenchido por um jeep de rodas altas, com ar de novo em folha. Rais parta, Nixon, o que te terá sucedido?
Ontem, às oito da manhã, tinha já empurrado a porta do café para entrar quando ouvi um berro atirado às minhas costas:
“Amigo, amigo...”
Não olhei para trás, mas entrei no café com um sorriso e subi até ao primeiro andar onde me sentei numa das mesas que permitem uma vista ampla da rua. E lá andava o Nixon, a fintar os outros pedintes, a atirar pedidos a quem entrava no café, escorropichando um pacote de sumo e mancando, arrastando desgraçadamente uma perna quando se movia.
Antes de sair, no fim do pequeno-almoço, acrescentei à conta um pacote de Compal Tutti-frutti e saí para o tremendo calor matinal. Claro que ele estava à minha espera, um tremendo sorriso de orelha a orelha, um teclado inteiro de piano faiscando na manhã.
“Amigo, ao tempo que não te via! Nunca mais apareceste!”
“Eu? Eu apareci, tu é que te sumiste...”,
dei por mim em explicações, estendendo-lhe o pacote do sumo.
Acompanhou-me rua fora. Cresceu, em seis meses ficou mais alto do que eu, tornou-se um rapaz bonito, de olhos grandes e vivos, orelhas bem destacadas da cabeça, mas que lhe dão personalidade ao perfil. Este tipo não passa fome, é nítido; é suficientemente habilidoso e competitivo para cuidar dessa parte sozinho.
“Que te aconteceu?”, perguntei, apontando o andar arrastado.
“Fui apunhalado...”
“O quê?!”, a minha expressão deve ter manifestado uma tão grande incredulidade que ele, prontamente, baixou as minhas já conhecidas calças de fato de treino e mostrou, a meio da coxa esquerda, uma ferida, buraco fino com a espessura de um prego, mas fundo e onde o rosado da carne e de uma ferida ainda longe de fechar era bem nítido.
“Apunhalaram-te como? Quem te apunhalou?”
“Uns gajos, com um arame, enfiaram-mo aqui!”
“Mas porquê...?”
Encolheu os ombros, como se o motivo não interessasse para nada, era coisa já deitada para trás das costas.
“E foste ao hospital tratar disso?”
“Sim, fui logo...”
“E que te fizeram lá?”, tentei perceber, avaliar o risco que ele ainda poderia correr por causa daquilo.
“Trataram a ferida, deram-me uma injecção contra a infecção...”
“Há quanto tempo foi isso?”, perguntei ainda, para aquilatar se o incidente teria já ultrapassado a zona de risco de um tétano ou a ferida poder estar ainda em risco de outra infecção severa.
“Há mais de quinze dias, já estou quase bom, só me falta andar normal...”
E como se achasse que a conversa, o interesse em torno dele, estava a ser em demasia, olhou para mim, que media os meus passos pelos seus, e quis saber:
“E você, como está? Está tudo bem consigo, amigo? Agora vai trabalhar ali, não é?”
“Tudo bem comigo”, disse, estendendo a mão.
E por ali ficámos um momento a balançar as mãos num daqueles bacalhaus à africana, longos, demorados, em que se vai chocalhando e se mantém presa na nossa a mão do outro durante todo o tempo que dura a despedida, um sinal de apreço pela pessoa que encontrámos ou de quem nos vamos separar.
“Eu encontro-te por aí”, rematou ele virando as costas e, na sua ética muito pessoal, não  pedindo nada, pois eu já lhe oferecera um presente nesse dia.
Sim, continuo apreensivo em relação ao futuro daquele rapaz sem eira nem beira, acho que não tem onde cair morto, afinal ele é um malandro. Mas, definitivamente, não um malandro como outro qualquer.
© Fotografias de Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde), 2011.

11. ENTRETANTO EM CABO VERDE

O avião aterrou suavemente no asfalto com uma pontualidade britânica: meia-noite e meia-hora por aqui, duas e meia da manhã por aí.
Cá fora a noite bafejava um beijo cálido e no céu, de um negro aveludado, a lua espreguiça-se a caminho de cheia. Qual será o meu trevo, e quantas folhas terá, que me faz ter sempre lua-cheia quando por aqui venho?
À minha espera, com o sorriso que se reserva para quem já se conhece, o Manuel da Luz e o Oswaldo, o primeiro entusiasmado com as novidades das recentes eleições presidenciais, o outro, silencioso ao volante como é de seu jeito.
“Acham que podemos parar aí nalgum canto para comprar água?”, pedi.
Oswaldo parou a carrinha à porta de uma churrascaria e o Manuel da Luz desapareceu pela esplanada dentro a comprar-me a água, pois ainda não tenho um tostão que fale este crioulo. Depois pago, sem pressa.
O Manuel da Luz regressou com um saco de plástico onde, gentil e premeditadamente, coabitavam duas garrafas grandes: uma de Água do Luso e outra de Trindade, uma água local.
À despedida, feita à porta do meu apartamento na embaixada de Portugal, o Manuel da Luz sugeriu:
“O Oswaldo passa a buscá-lo na segunda, às oito? Assim tem tempo de tomar o pequeno-almoço no Pão Quente...”
Pareceu-me perfeito e dormi como um santo sobre isso. Agora é um início de tarde abrasador, pelas portas largas do meu quarto vejo o mar coruscar em azul e deixo o convívio de vassuncês para ir ali ao Poeta comer umas linguicinhas e apaladar um queijo de cabra, itens nos quais desatei a remoer mal acordei e percebi onde estava.


© Fotografias de Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde), Setembro de 2011.

12. MINHA PÁTRIA É A LÍNGUA À PORTUGUESA








© Fotografias de Pedro Serrano, Praia (Cabo Verde), Março 2011.




13. OS TRÊS PRATOS

Durante a estadia em Cabo Verde cuspi para o ar um ou outro mail com fotos anexas de manjares que tinha comido nesse dia, umas vezes enviados só para partilhar a sensação, outras para provocar a quem andava pela vil tristeza de comer pescada cozida com nabo ou escouceava de pé numa manjedoura urbana enquanto rilhava febras panadas com esparregado de pacote.
Quando regressei, fui recebido com entusiasmo ou acusado de sadismo por causa dos meus apontamentos gastronómicos, mas entrevi um denominador comum no entrecruzar dos comentários: inveja, uma inveja babada de "conta lá como isso foi", vogais e consoantes sibilantes nadando em saliva... Para todos esses e para os demais ouvintes, aqui ficam algumas fotos comentadas. Seguindo as regras severas da tradição em que fui educado, começo-a de cima para baixo e pelos preliminares, que há quem, com certa brutalidade, apelide de entradas.
Sobretudo na ilha de Santiago, as linguicinhas são postas em cima da mesa mal a gente se senta num restaurante, habitualmente na companhia de pão e desse lendário queijo de cabra de que voltarei a falar mais para o final deste apontamento.
Como dizê-lo? Uma linguicinha é, como o nome indica, uma linguiça pequenininha, não ultrapassando o seu tamanho a cabeça de um dedo; dedo mindinho ou dedo indicador, que nunca a cabeça do polegar... Mas, neste caso, tamanho não é sinal de felicidade e, depois, aquilo vem sempre numa série de uma meia dúzia e, mesmo depois de engolidas, sobra o prazer do molho que restou, divino em pão discretamente arrastado pelo prato. Resta tentar descrever o seu efeito sobre a língua, o qual deixa a milhas o sabor de uma linguiça à portuguesa. Em termos de nobreza gustativa a linguicinha estará mais próxima do salpicão do que da linguiça que conhecemos, sobretudo graças à consistência das carnes e ao tempero, numa leveza picante que se vai acumulando num desfrute perfeito para o desdobrável que se segue.
Eu já tinha comido cavaco anteriormente, jamais no continente, onde nunca o lobriguei, mas nos Açores, onde nos é servido sempre mais ou menos clandestinamente, pois parece estar em vias de extinção. Mas, uma noite, reconheci-os na montra de um restaurante da ilha do Sal (Americo's), na sua inesquecível roupagem de lagosta pré-histórica. Entrei, subi as escadas, sentei-me e, ao olhar para a ementa, tive a inspiração de perguntar ao empregado, entre as opções de "cozido" e "grelhado", o que era aquilo de "à cabo-verdiana". Agradou-me a explicação e, passada a necessária meia-hora, chegou-me uma fumegante panela onde numa cama de cebola, pimentos verdes e vermelhos, repousava o maravilhoso crustáceo, sabendo a mar como só certos seres que vivem na reclusão e longe da luz estão aptos a revelar-se.
"Então?", perguntou o empregado, satisfeito com o meu conhecimento prévio do bicho e o meu apetite.
"Divino", respondi, a língua ainda percorrendo os lábios em busca de um sabor remanescente, mas resolvi especificar:
"Melhor do que lagosta..."
"Eu também acho...", confessou ele, como se não tivesse oportunidade de fazer tal comentário com frequência. 
No que concerne a sobremesas de Cabo Verde, podia estar aqui a discorrer longamente e começar por explicar, por exemplo, a iguaria que são as farófias de banana com mel-de-cana, um adoçar de boca que se encontra, por exemplo, no Ká-di-gá, um restaurante na cidade da Praia que só serve entradas.
Mas prometi a mim próprio que, em honra da tradição, me ficaria pelo retrato estrito de três pratos, os que, usualmente, constituem a refeição completa. Assim, singelo, termino com a menção à transcendente fusão que resulta do doce de papaia com queijo de cabra. Encontramo-lo em duas opções distintas: a tradicional, que junta no mesmo prato uma compota de papaia de tez brilhante e atijolada ao branco leitoso do queijo; ou o requintado doce de papaia-verde, uma papaia ainda não madura, a que se que conserva a casca, laminada, e docemente macerada pela infusão em açúcar. É difícil preferir entre ambas, mas, numa ou noutra versão, a degustação tem algo similar: como numa hélice de ADN, as moléculas doces da compota entrelaçam-se num bailado com os átomos salgados do queijo e a gente não sabe se há-de chilrear de felicidade ou se chorar por mais.

14. ASSENTO ORTOGRÁFICO





15. HOJE HÁ COMPAIXÃO C/ TODOS

No degrau mais baixo da escada, da escala; no tom menor do denominador comum, há uma semelhança crassa entre todos os animais. 
Não sei se já viram uma criança com uma desnutrição grave, provocada ou por não ter que comer ou porque o ambiente na barraca onde mora é tão negligente e desatinado que a deixam sem comer ou a alimentam de modo inconsequente em termos de quantidade, periodicidade e equilíbrio do que come? 
De habitual, é uma criança com menos de dois anos (morrem antes de ter tempo de obter mais idade), pesando 4 ou 5 kg quando deviam pesar o triplo ou o quádruplo; o cabelo, originalmente negro, ganhou um tom avermelhado e quebradiço; a pele é seca, espetada por ossos, e, por toda ela, há feridas pequenas e circulares que parecem queimaduras de cigarro. Não são, são chagas que não curam, escarradas na pele por um sangue que não faz chegar oxigénio renovado suficiente, nutrientes suficientes. A criança bem tenta renovar-se, por isso a respiração é apressada e o peito, como um fole roto, no seu arfar chupa a pele entre as costelas
Mas, o mais impressionante desta crucificação lenta, é a atitude, é o olhar. São crianças que não choram se estendemos o estetoscópio para as auscultar, se lhes mexemos para as palpar: algumas gemem apenas e olham-nos com olhos apavorados – essas são as que estão no melhor desse pior estado. Outras exprimem no magoado do olhar o desconforto de estarem a ser perturbadas no seu direito a uma dor global e, finalmente, aquelas que morrerão em poucos dias miram-nos de um olhar fundo, indiferente, mais velho do que o mais espetado dos cristos, um olhar de onde se evaporou há muito a confiança, o brilho, o risonho da infância. Se é que alguma vez lá morou alguma dessas bênçãos.
Na ilha do Sal, os gatos que rondam as mesas dos restaurantes não se roçam nas pernas dos clientes – estão habituados a ser escorraçados; não miam alegremente para chamar a atenção das nossas migalhas – olham-nos com um olhar fixo, onde a angústia se mistura com a vigilância permanente de poderem ter de fugir para salvar a pele. Mesmo depois de se lhes atirar o primeiro nico do que comemos eles não sossegam e, quando estendemos o braço no balanço de uma segunda oferta, eles saltam para trás, assustados com o movimento. Já experimentaram o sabor de muita porrada à solta.
Os gatos do Sal são maioritariamente listrados, seriam bonitos não fora as costelas espetadas na pele, o pelo que lhes sobra e escorre da barriga como um tapete a secar numa corda; não fora a falta de brilho na pelagem e a ponta das orelhas corroídas por feridas que não saram e as moscas petiscam... E o olhar, aquele olhar onde não luz esperança em ninguém e o medo espreita.
Uma tarde quente e de céu azul, ao mudar-me da piscina para a esplanada do restaurante sobre a praia, ouvi um miar tão plangente que parei para ver de onde vinha e que aflição o provocaria.
Na esquina de uma das entradas para o restaurante, num pequeno canteiro, espetava-se um coqueiro e, a meio do seu tronco, um gato, em jeito de trepar por ali acima, miava, o pescoço virado no sentido do solo. Aproximei-me um pouco, espreitei. No chão, quase perdido nos chorões que atapetavam o canteiro, um minúsculo gatinho, olhava para cima, o corpo tremendo como varas verdes.
No tronco, a mãe continuava a miar para ele e ia subindo pelo coqueiro, como que incitando-o a fazer o mesmo. Mas o gatinho não se decidia, talvez, fosse demasiado pequeno ou demasiado fraco para o tentar. Desesperada, a mãe desceu o tronco, aproximou-se da cria, empurrou-o com o focinho. Tudo quanto conseguiu foi que o bichinho se metesse entre as suas pernas e desatasse a mamar uma barriga chupada de fome. Ela deixou-se estar uns minutos, voltou a escalar o tronco, miando à cria num tom plangente que parecia descrever as consequências de ele ficar em terra rasa: e os cães, que lhe chamariam um figo? E os outros gatos machos, que o despedaçariam por questões de clã? E os homens, que, com excepção das crianças, torciam o nariz a gatos em resorts?
“Trepa, inútil!”, parecia ela miar numa ansiedade que já me contagiava:
“Trepa, inútil...”, pensei.
E o gatinho lá acabou por saltar para o tronco, estatelando-se, logo a seguir, sobre os chorões; teimoso, voltou a tentar e, esgadanhando desajeitadamente o coqueiro, lá progrediu um esforçado metro. Satisfeita, a mãe subiu ainda mais no tronco e, chegada ao nível conveniente, saltou para o telhado adjacente, onde ficou a miar e a olhar para baixo, dizendo:
“É isto que eu quero que faças, inútil; aqui estás a salvo de todos os perigos...”
O gatinho manteve-se na árvore uns minutos, primeiro tentando trepar, depois, por muito cansado do esforço, acachapado numa imobilidade trémula. Por fim, voltou a cair na terra do canteiro.
“Inútil!”, rosnei para mim mesmo. E fomos comer.
Já sentado, enquanto esperávamos pela salada de polvo com pimentos e pela omeleta de cogumelos, roubei às entradas duas fatias de queijo de cabra e fui ver no que paravam as modas no coqueiro. Fiz a abordagem de muito próximo, pois apenas um murete separava a parede da entrada do restaurante do canteiro e quando a minha cabeça surgiu no cenário, a mãe-gata foi surpreendida pelo meu aparecimento súbito. Rápida como um raio, trepou o tronco até ao meu nível e brindou-me com um bufar assanhado como saudação.
“Está calada, estúpida de merda”, respondi, “não vês que te trago comida?”
Ela percebeu rapidamente, regressou ao chão e devorou em segundos os pedacitos de queijo que lhe ia lançando, não resistindo eu próprio a rilhar um  ou outro, tal o apetite dela estimulava o meu. Regressei à mesa.
Perto do fim da refeição, usando a mesma aproximação interna, regressei ao cenário do canteiro com um pedaço de omeleta e umas rodelas de polvo embrulhadas num guardanapo. Desta vez, ela não desatou a soprar como uma cobra enfurecida, limitou-se a olhar-me com aqueles olhos alucinados onde cabia toda a fé pela dureza do mundo.
Enquanto a mãe engolia os pedaços de polvo, o gatito, encostado a ela, mirava tudo, continuando a tremer como varas verdes nas duas da tarde escaldantes. Coitadito, era tão pequenino que ainda nem mastigar conseguia, era ainda um bichito de mama. Isto foi o que pensei até atirar o pedacito de omeleta, que, por má pontaria, caiu em frente ao focinhito minúsculo. O gatinho cheirou-o com todo o cuidado e, pressentindo que aquilo eram proteínas interessantes, desatou a mamar nos ovos como se fossem uma teta felina. Perto, em atenção total, a mãe deixou-o fossar, não esboçando a menor tentativa de lhe desviar a comida ou de a utilizar ela em proveito da sua fome pessoal. Finalmente, quando o gatito se fartou de mamar na matéria amarela, a mãe aproximou-se e engoliu o que restava.
Regressei á piscina, apliquei uma nova camada de protector solar, inclinei o chapéu de palha sobre os olhos, abri o Alguns Morrem de Mágoa (do Saul Bellow) na página onde o tinha deixado e pensei que, talvez, todo aquele queijo, toda aquela omeleta, se volvessem rapidamente em leite e que o gatito pudesse, talvez, vir a conseguir o salto de meio metro que, subido o tronco, o separavam do telhado e, assim, sobreviver até amanhã.
Embalado neste pensamento reconfortante, adormeci com o livro pousado no colo.

16. BRUMA SECA

Daniel era, principalmente, motorista de táxi, um Toyota com uma suspensão um tanto arrombada, e foi assim que o conhecemos. Mas, como todos os chauffeurs de táxi das redondezas, acumulava com a competência de guia turístico.
No dia em que nos foi buscar ao hotel para uma visita completa à ilha (coisa que se consegue numa manhã se a ilha é árida e tem uma dúzia de km de comprimento por meia-dúzia de largura), criticou asperamente o copo-de-leite de cabeça rapada e mochila às costas que encabeçava o destino de uma trintena de turistas que o seguiam como carneiros pela rua principal de Santa Maria:
“Olha p’rá’quilo! Veio três vezes ao Sal e já acha que conhece a história de Cabo Verde... E pagam-lhe!”
Apesar de só ter dois turistas à disposição nessa manhã, Daniel revelou-se um guia especial, do subtipo condutor de homens. Levou-nos onde muito bem entendeu e todas as sugestões que lhe fizemos, e que não constavam do seu esquema mental, foram soberbamente ignoradas. Assim, não fomos visitar a estação de dessalinização da ilha nem experimentar a moreia frita à cidade de Espargos.
Mas teve o cuidado de nos demonstrar que não era um guia ignorante do colorido local, como o branquela que víramos ao sair do hotel, e, dado o nosso interesse pelo tratamento da água, levou-nos a ver um depósito de água e o respectivo camião-cisterna, uma esquadra de polícia, e o club desportivo de Palmeira. O momento especial, no entanto, guardou-o como revelação para um trecho do trajecto entre Olho Azul e Pedra de Lume. De repente, sem qualquer aviso, fez sair o Toyota da estrada e, sem abrandar a velocidade, pôs-se a percorrer um trilho de terra, levantando atrás de nós um tornado de poeira, ao mesmo tempo que, como um prestidigitador que prepara a audiência, nos advertia:
“Estão a ver, não se vê nada aqui, pois não? Não há nenhuma água de um lado nem do outro, pois não?”
Confessámos que não, que não se via ponta de água: no chão só terra calcinada, no ar só poeira fina, no céu só azul e nem esperança de uma gota de chuva; daquele ponto nem o mar se enxergava.
Daniel continuou a guiar durante um km ou dois, perguntando-nos, a cada 200 metros, se víamos outra coisa que não deserto, aridez, bruma seca. Depois, aparentemente realizado com o nosso derradeiro “não”, fez com que o Toyota descrevesse um pião e apontasse o para-brisas para a sarça ardente que acabáramos de percorrer.
“E agora?”, perguntou, controlando as nossas expressões por um retrovisor onde se reflectia uma fiada de dentes felizes.
À nossa frente, bruxuleando na torreira do meio-dia, uma aprazível toalha de água azul cobria a terra, pareceu-me até ver uma ou duas palmeiras no horizonte.
“Ah... é uma miragem”, exclamei.
Quando lhe expliquei que também tínhamos daquilo em Portugal, pareceu pouco interessado e não descansou enquanto não tirámos uma ou duas fotografias ao local, pedindo para espreitar o visor da máquina, assegurando-se que a nitidez era suficiente para a posteridade que aí vinha.
Sorridente, abriu o guarda-luvas e tirou de lá um pano, após o que abriu a porta do carro e saiu para a inclemência. Algo incrédulos, vimo-lo dar a volta ao carro e limpar cuidadosamente os vidros das portas traseiras, dando especial atenção à borracha que lambe a folha de vidro quando o mecanismo eléctrico de abrir as janelas é accionado. Dando-se conta do nosso espanto, informou em voz que se ouvisse através dos vidros:
“É para que não fiquem cobertos de pó quando abrirem as janelas...”
Esmagados por aquele zelo, não dissemos palavra na meia-hora seguinte e eu fiquei mesmo sem saber se a imagem de uma vaca que vi surgir do nada, atravessada na paisagem, seria animal de carne e osso ou simplesmente o holograma de um bovino miraculoso.  


© Fotografias de Pedro Serrano, ilha do Sal (Cabo Verde), Abril 2011


Este texto foi publicado no jornal Público de 4 de Agosto 2012.


17. INTENSO LUAR

Quando amanhã, pelas dez da noite, o Zézinho me vier buscar completar-se-ão as três semanas em que deambulo por Cabo Verde, misturando trabalho e férias de um modo tão harmónico que ninguém saberá quem começou o quê. 
Em pouco mais de dez minutos, o Zézinho deixar-me-á no bonito e eficiente aeroporto da Praia onde, pelo meu pé e sob intenso luar, vou atravessar o asfalto da pista até às escadas do avião que, depois dos sacolejos de um autocarro apinhado, me vomitará na Portela e nesse deprimente país que tentei esquecer durante estes dias. Mas não foi fácil, pois apesar de nunca ter, sequer, ligado a televisão nos três quartos diferentes onde estive, esta gente não faz outra coisa senão ver TV portuguesa! E não me refiro à RTP-África, mas sim à RTP1, à SIC e à TVI, canais que têm sintonizados em permanência, como se isto fosse Portugal ou uma qualquer adjacência. Na noite (só para sublinhar o que digo) em que o Futebol Club do Porto ganhou não sei que taça muito importante era ver os cortejos de carros apitando na noite e os cachecóis do Dragão a flutuarem janelas fora! Sublinhe-se que o glorioso FCP é apenas o segundo club mais amado no arquipélago, sendo o Benfica o primeiro, e o Sporting o terceiro, mas, como me confidenciou o Daniel, o nosso guia na ilha do Sal, o despertar do Braga está a causar enorme espanto...
Depois destes anos todos, há um qualquer affaire muito estranho entre eles (incluo também os angolanos no fenómeno) e nós, relação que não sei explicar mas que não nos causa estranheza alguma, embora deixe boquiabertos outros ex-colonizadores, como ingleses ou franceses, ou os neocolonialistas americanos, que se perguntam como é que restos de migalha como nós têm tanto peso em África. Enquanto eles se interrogam e tentam perceber o busílis, os nossos governantes continuam o sono dos justos, abrindo de vez em quando um olho para fitarem aterrorizados o Norte.
Adiante. Ontem, quando o avião levantou do Sal, havia intenso luar lá em baixo, espelhado no mar, desenhando os contornos da ilha, e a lua reverberava descarada pelos postigos adentro, mantendo o interior da aeronave prateado mesmo durante a escuridão de segurança da descolagem. Suponho que amanhã estará parecido, pois o céu mantém-se intoxicado de azul e a lua-cheia, graças a Deus ou ao bigbang, dura mais do que uma solitária noite.
Reclinado na esplanada sobre a piscina, aviava umas linguicinhas e picava quadradinhos de queijo de cabra do Fogo, enquanto imaginava tudo isto que escrevi e ia decidindo que tornaria tudo mais saboroso se desse ao meu texto um título em crioulo. Eis que a empregada se aproxima com o meu descafeinado Delta e eu, confiante no seu ar vivo, lhe pergunto:
“Como se diz luar em crioulo?”
“Como?!”, perguntou ela, com ar de não ter percebido bem a questão.
Luar”, repito, desdobrando a explicação, “sabe, como quando está lua-cheia e fica tudo claro e iluminado por ela...?”
“Luar!”, respondeu-me, levantando levemente os ombros e as sobrancelhas para sublinhar o ponto de exclamação.

© Fotografias de Pedro Serrano, Cabo Verde, Março e Abril 2011.
18. ALL INCLUSIVE

Quando pediu a terceira caneca de cerveja, a empregada, uma mulata de olhos castanho-claro, perguntou:
“É all inclusive?”
Carlos levantou o braço, exibiu a pulseira de plástico vermelho:
“Podes falar-me em português! É, é tudo all inclusive, não vês a anilha?"
Ao ritmo de uma coladeira, Ângela dançava sozinha na pista de dança, na órbita do Luís e da Leonor que rodopiavam felizes como piões. Dava inveja, o modo como a cunhada e o marido, casados há mais de sete anos, se davam bem, como pareciam preferir a companhia um do outro a outra companhia qualquer.
Ele e Ângela, pelo contrário... Carlos tinha os nervos à flor da pele, fora uma coisa que herdara do pai, e Ângela uma mania de ver tudo cor-de-rosa num mundo que era mais cinzento do que outra cor. E aquela pachorra dela... irritava-o. Ainda há bocado... Tinham combinado com os cunhados encontrar-se às oito no Salinas, o restaurante  mais categorizado do resort; era a Noite Tropical, jantar ao som de música ao vivo, seguido de baile.
“Oito em ponto, lá”, assinara o pacto à porta do quarto, depois de chegarem da piscina, “se não arriscamo-nos a apanhar uma mesa de merda...”
Pois, Senhor, apesar disto, apesar de ter ouvido perfeitamente a combinação, Ângela demorara-se ainda a telefonar ao pai e à mãe, a descrever tudo quanto tinham feito durante o dia, o que tinham comido, a T-shirt rosa com I Love Cabo-Verde que tinha comprado para a Bebiana, a sobrinhita que ficara em Rio Tinto com os avós; o carago a quatro! Depois, enquanto ele tomara um duche e se vestira em dez minutos, ela fechara-se no quarto de banho durante mais de meia-hora donde saiu toda nua, a cara besuntada de creme, o cabelo enrolado dentro de uma toalha de banho! E ele, estirado na cama, já a começar a ferver, folheando o prospecto das excursões à ilha sem conseguir fixar uma palavra...
“Ângela, não sei se já reparaste: são oito menos quatro...”
E ela a tirar cruzetas do armário, a perguntar:
“Achas que leve o azul ou o preto?”
E ele:
“Leva o que quiseres, mas vê se te despachas..., o Luís e a tua irmã já devem estar à nossa espera lá em baixo...”
E ela, encostando os vestidos ao corpo em frente ao espelho, com cabide e tudo:
“Oh, isso é o que tu pensas – a Leonor ainda é pior do que eu a arranjar-se...”
E ele:
“Está certo, pode ser que sim, até podia ser paralítica, problema deles; mas nós combinámos às oito. Enquanto esperamos podemos ir tratando da mesa..."
(a espumar por dentro).
Quando saíram do quarto eram oito e trinta e dois e Carlos tinha dado a noite como estragada; empurrou com ódio a tentativa de abraço de Ângela, ignorou o sorriso contente dela, a pergunta:
“Estou bonita...?”
Quem, sem pergunta nenhuma, acabara por responder à pergunta fora o Luís que, ao entrarem na recepção, a brindou com um:
“Mas olha só que princesa! Já viste a tua irmã, Leonor?”
Apesar do restaurante estar bastante cheio, tiveram a sorte de arranjar mesa para quatro perto da pista de dança, pois o cunhado, que metia conversa com toda a gente por onde passava, fizera amizade com uma empregada que ás vezes também estava nos pequenos-almoços, uma mulata gordinha e de imponente cagueiro, dona de uns belos olhos castanho-claro.
E agora estava para ali, a olhar o palco, infeliz por não fazer parte do que nele se passava, mas honrando a zanga que começara no quarto. Carlos deu um gole na caneca, a cerveja soube-lhe a azedo, perdera o gás e a graça. Dali a três dias estariam outra vez lá, na bicha de trânsito para a Circunvalação, ele a atender telefonemas impantes de assinantes estúpidos que não sabiam sequer usar o telemóvel topo de gama que tinham comprado; ela a impingir vestidos na Lanidor a gajas que mal cabiam dentro deles.
Olhou a pista. A música tinha acabado, começara uma de ritmo lento e Ângela fizera menção de regressar à mesa, deixando a irmã e o cunhado a dançar agarradinhos. Mas eles não deixaram, a irmã passou-lhe o braço pelo ombro, o cunhado fechara o anel e faziam agora um trio dançante.
Carlos emborcou o resto da caneca. Logo a seguir sentiu qualquer coisa estalar e ceder dentro dele, aquelas putas daquelas mornas tinham um efeito estranho, mesmo sem perceber as palavras a música acendia nele uma nostalgia por algo de bom que, embora passado para sempre, sem remédio, se deseja de volta. Levantou-se, atravessou o espaço até ao palco em passo inseguro, tocou no ombro de Ângela, perguntou em voz pastosa:
“Dá-me a honra desta dança...?”
Ela acenou um sim húmido, abriu-lhe os braços e incluiu no pacote o mesmo sorriso que lhe arreganhara quatro anos atrás quando, pela primeira vez, a convidara para dançar no salão dos Bombeiros de Rio Tinto.
© Fotografia de Pedro Serrano, Mumbai (Índia), 2011.

19. ESFREGOU A LÂMPADA, PEDIU: GÊNIO, MANDA-ME UM TÁXI

© Fotografia: Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde), 2011.


20. NÃO ESTÁ HABITUADA!

          Quando você gritou Mengo!
          no segundo gol do Zico
          tirei sem pensar o cinto
          e bati até cansar.
          Três anos vivendo juntos
          e eu sempre disse contente:
          minha preta é uma rainha...
           João Bosco/Aldir Blanc ("Gol Anulado", 1976)

O jornal mais popular em Cabo Verde é o Expresso, um diário apregoado desde manhã cedo nas ruas. O número de 6 de Abril, uma quarta-feira cheia de sol, trazia uma reportagem intitulada Violência baseada no género: sociedade ainda não está habituada e, da sua leitura, colhi estranhos ensinamentos no texto do inquérito levado a cabo junto das mulheres cabo-verdianas.
Por exemplo, os inquiridores consideraram violência moderada o “deu-lhe pontapés”, o “bateu-lhe a soco com qualquer objecto que podia cortar” e o leitor só vem a perceber a razão desta categoria de agressão ser considerada moderada quando mergulha na descrição dos itens da violência física severa, onde constam joias comportamentais como: “ameaçou-lhe com faca” ou “tentou estrangular-lhe ou queimar”.
Finalmente, na violência sexual, para além do clássico “forçou fisicamente a ter relações sexuais”, encontra-se um enigmático “obrigou-lhe a praticar outro tipo de actos”, item que deixa em polvorosa as imaginações mais prodigiosas.
© Fotografia de Pedro Serrano, Mumbai (Índia), 2011.
21. SOME LIKE IT HOT

© Foto de Pedro Serrano, ilha de Santiago (Cabo Verde), 2011.
O grogue, a bebida que deu origem à expressão "tá completamente grogue", é feito com cana do açúcar, a qual, depois de devidamente triturada por processo mecânico, é destilada em alambiques artesanais. Teor alcoólico: 40º 

22. AND IT STONED ME


  And it stoned me to my soul

  Van Morrison ("It Stoned Me")

A sensação que tenho sempre é que são elas que me encontram.
Não faço colecção de pedras, não faço o género colecionador. Mas há pedras tão especiais que as levo comigo para onde moro. Não é uma mania, é porque algumas, raras, de entre elas concentram em si uma beleza, uma suficiência, uma perfeição que me leva a pegar nelas e a levá-las.
Tenho em minha casa, espalhadas pelos locais onde acabam por fazer ninho e ficar bem, uma meia-dúzia. A mais antiga, encontrei-a na Noruega, na margem de um riacho de fiorde, rumorejando batida pela corrente, uma pedra de um verde profundo, sarapintada de pontos negros – faz lembrar, pela textura, pela macieza escorregadia e fria, pelo padrão, a pele lisa de um peixe sem escamas. Ocupa metade da palma da minha mão. 
Achei outra num chão recamado de pedras da mesma espécie, amareladas e polidas; esta era também amarelada e polida mas tinha uns veios avermelhados que assemelhavam as linhas de uma rede de Metro enlouquecida – arte moderna pura, achada na Serra da Leba, no sul de Angola, a uma altitude estonteante.
Depois há uma pequenina, redondinha, de um cinzento desmaiado, delicado e seco; não fora a aridez e poder-se-ia tomá-la por ovo de codorniz. Uma outra, marmórea, em forma de coração, não o coração das cartas de jogar, mas o anatómico – cabe na palma da mão. Já não sei onde me encontrou. E, finalmente, há aquela, extraordinária, que no meio tem uma depressão que imita de tal modo uma impressão digital que o meu polegar cabe lá dentro, inteiro, ajustado como se tivesse sido produzida por encomenda.
Hoje encontrei outra dessas, especiais. Caminhava, olhando em frente, sobre um chão vulcânico, visitava a Cidade Velha da ilha de Santiago, em Cabo Verde, onde as ruínas são do século XVI e as pedras naturais estão por ali há milhões de anos.
De repente, num chão onde havia milhares semelhantes, ela olhou-me, individualizou-se, eu fiz o costume quando isso me acontece. Inclinei-me, peguei-a com o cuidado de quem colhe uma flor, fechei a mão sobre ela e senti na palma da mão a passagem de força que este tipo de pedras sempre transmite.
A Teresa L. e a Isabel A., que me ladeavam no percurso, repararam de imediato na sua singularidade e beleza mal a mostrei, e de tal modo se sentiram incompletas que desataram a procurar gémeas pelas redondezas. Claro que não encontraram nada que as preenchesse, bem as avisei que estes acontecimentos são únicos e dirigidos a um só destinatário; a vez delas chegará noutro local, noutra ocasião. Esta encontrou-me a mim, segue comigo para onde eu vá. Poderei, durante umas breves temporadas contar a sua história; um dia estará por cá sem ter quem a explique, mas mantendo intactas as suas qualidades silenciosas. Sobrevivem-nos as pedras e a luz do sol. 

© Fotografias de Pedro Serrano, ilha de Santiago (Cabo Verde), Abril 2011.




A  N  G  O  L  A



1. BAIRRO DA BOAVISTA

© Fotografia de Pedro Serrano, Angola 2007.
O tempo dos comentários sobre os episódios do dia tinha-se esgotado e cada um seguia esparramado no seu canto do jeep, esmagado pelo calor e pelo cansaço de uma jornada de trabalho que começara demasiado cedo.
A meu lado, M’Bila, o nosso motorista, aproveitava a nesga de silêncio para sorrateiramente sintonizar o rádio numa estação de música brasileira melosa. 
Apesar de apenas 60 Km separarem o Caxito de Luanda, a paisagem muda entre as duas cidades como a da Terra para a da Lua e as verdejantes manchas de mangueiras e goiabeiras do Bengo, os troços de água faiscando à luz, tinham ficado para trás e, por entre embondeiros altivos como elefantes perdidos da manada, rolávamos já na zona árida e poeirenta que prenuncia os arredores de Luanda e onde vão alastrando a perder de vista, como uma nódoa de cimento por rebocar, os bairros descarnados dos realojados.
Um pouco mais à frente o jeep perdeu o ritmo dançarino com que vinha ziguezagueando entre camiões de carga e com que ultrapassava, ora pela esquerda ora pela direita, as amolgadas carrinhas azuis e brancas dos candongueiros, atulhadas de gente tão espapaçada como nós, mirando-nos do lado de lá dos vidros com olhos baços de desinteresse. Empancávamos outra vez na interminável fila de trânsito que diariamente pontua as saídas e entradas da capital e M’Bbila empanturrava primeiras umas atrás das outras, enquanto ia pescando línguas de gato da embalagem que jazia pousada entre nós dois.
Mas, de repente, o cenário animou-se ao nosso alcance e percebemos, por entre os vidros cerrados e as portas trancadas do carro, um alarido de pessoas movendo-se a poucos metros de nós. Como abelhas deixando apressadas uma colmeia atiçada pelo fumo do apicultor, uma camioneta de passageiros fumegante, parada no meio da estrada, deixava escapar por todas as saídas praticáveis uma multidão de fugitivos não totalmente espavoridos.
Agora mesmo ao nosso lado, a camioneta continuava a fumegar e todos pareciam temer ou desejar o que nós temíamos: que labaredas irrompessem e tudo se transformasse num churrasco de gente, borracha e metal carbonizado. Sem poder fazer mais do que observar, os meus olhos rodavam em ânsia dos últimos que deixavam o veículo para a multidão que se acumulara de um lado e do outro da estrada e observava com gáudio o espectáculo: as fugas desajeitadas pelas janelas, os vidros ainda presos aos caixilhos mas transformados num granizado opaco sob os golpes infligidos por prisioneiros aflitos ou por passageiros que, simplesmente, tinham aproveitado a deixa para pecarem contra o património alheio. 
O nosso lado da fila moveu-se de novo e M’Bila, um tanto distraído como todos os outros, teve que travar de súbito para não atropelar um recém proprietário que, no meio daquele caos de oportunidade, atravessava a estrada com uma enorme vidraça de contornos arredondados encaixada debaixo do braço, um inesperado lucro no final daquela tarde que, como sucede nas tardes de África, caía abrupta como um pano de cena. 
Olhei pela janela, seguindo com os olhos o homem que se perdia no meio das barracas com o seu vitral roubado. Lá ao fundo, para além da borda da estrada, dos esgotos correndo ao ar livre, das piras de lixo a arder, o sol, vermelho e vibrante como a gema de um ovo que vai ser estrelado, preparava-se para se afogar feliz nas águas da baía.    
                                    (Agosto, 2006)

2. A NATUREZA DELAS


Vivi, © fotografia de Pedro Serrano, Luanda (Angola) 2006.

Menaíto era incrivelmente pontual. Incrivelmente, tendo em conta não só o trânsito infernal das manhãs de Luanda mas também o contexto de um país que ainda se guia mais pelo nascer e pôr do sol do que pelos ponteiros do relógio. Para ele, que tinha por hábito confirmar a hora estabelecida repetindo as coordenadas da encomenda, 9 e 10 da manhã eram 10 minutos depois das 9, não outra coisa qualquer, sujeita a desconto ou acrescento.
Já no que se refere à Teresa, a minha companheira de missão, o seu conceito de pontualidade não era decalcado daquele pelo qual se guiava o nosso motorista. Ela era pontual, claro, e tinha o pequeno-almoço tomado à hora certa, mas necessitava sempre de um tempo extra para um derradeiro pormenor antes de arrancarmos de vez. Menaíto tinha uma maneira de ser calada à qual se ajustava como uma luva uma discrição a toda a prova e jamais comentara essa diferença na partida, esses cinco ou dez minutos desde a hora combinada até ao momento em que deixávamos o hotel. Mas uma manhã, no átrio do Hotel Trópico, quando o saudei e informei que devíamos aguardar ainda uns minutos pela Dr.ª Teresa, pois que se iria demorar um pouco mais, ele resumiu a sua reflexão sobre a constância do facto, dizendo:
É da natureza delas...”
E ali ficámos sem trocar outra palavra sobre o assunto, olhando o tráfego que se engarrafava do lado de lá dos painéis de vidro da fachada.
No último dia dessa missão, à despedida no aeroporto 4 de Fevereiro, ofereci a Menaíto duas lembranças que me pareceram adequadas aos seus gostos: a minha mais impecável gravata, pois que ele as usava diariamente, e umas cassetes que fomos escolher a uma discoteca, uma vez que parecia não viver sem música. Na viatura que conduzia era certo escutarmos música, fosse ela românticas e dolentes canções ou energéticos cânticos religiosos da igreja a que pertencia. Geralmente, de manhã cedo, ao entrarmos no jipe em que nos transportava, Menaíto punha a rolar em alto volume uma cassete com cantos religiosos que ouvia incessantemente durante todo o trajecto matinal. Mas à hora de almoço, durante a tarde ou ao anoitecer, a música que nos acolhia era outra: acelerados, contemporâneos e animados ritmos africanos ou intemporais baladas românticas.
A Teresa, baseada nas observações que coleccionara e no flagrante contraste entre os dois tipos de música, tinha construído uma teoria comportamental:
“Acho que ele é um atormentado e que os cânticos que ouve de manhã são para se penitenciar dos pecados que cometeu durante a noite…”
Eu não tinha tantas certezas, mas, a ser verdade, acho que conseguia adivinhar a fonte da tentação no modo como o olhar oblíquo de Menaíto seguia certas silhuetas que, gráceis como corças, altivas como impalas ou insinuantes como panteras, se atravessavam à frente do jipe e correspondiam às suas gentis travadelas de cedência de prioridade com um polegar espetado frente ao pára-brisas ou um sorriso fugidio.
Ganhei afeição a Menaíto e foi sentido o abraço que trocámos no final dessa estadia em que contei com os seus serviços como motorista.
Depois disso voltei a Angola várias vezes, mas nunca mais o encontrei. Tentei até ligar-lhe para o telemóvel, mas nada nem ninguém atendia do lado de lá. Perguntei aos sucessivos motoristas que me couberam em sorte e que trabalhavam para a mesma firma que o contratava, o que era feito dele, mas as respostas foram sempre um tanto imprecisas e uma delas, a de que estaria “muito doente”, pareceu-me mais um aperitivo para me entreter do que algo real.
Em Novembro de 2006 regressei a Luanda e no aeroporto, nas vedações de metal da saída, por trás das quais se aglomera quem espera pelos viajantes, vi um funcionário do ministério da saúde ostentando um papel com o meu nome impresso. Ao lado dele, aguardando no seu ar compenetrado e aristocrático, reconheci Menaíto.
E assim, por entre música romântica e cânticos religiosos, retomámos os nossos trajectos por Luanda, pontuados por breves trechos de conversa, invariavelmente ateados por mim, pois era raro que tomasse a iniciativa. A rotina era sempre a mesma: eu quebrava o silêncio com um comentário ou com uma pergunta, Menaíto, como se lhe tivesse interrompido um sonho, repetia a questão com o fito de precisar a minha intenção e depois respondia com precisão, numa voz pausada e bem articulada em que os ‘rr’ eram sempre empregues aos pares mesmo nas palavras em que um seria suficiente. Do lado de fora das portas trancadas, roçavam-se por entre as filas de carros os enxames de vendedores ambulantes, empunhando, pendurando ou erguendo sobre a cabeça tudo quanto se possa imaginar: óculos, bolas de naftalina, relógios, veneno para ratos, leitores de DVD, tapetes para automóveis, bebidas, despertadores, pão, canetas, lanternas, cruzetas, pilhas, chocolates amolecendo ao sol tropical; a listagem seria infinita, mas – em suma – tudo o que é capaz de garantir a satisfação do bem-estar moderno.
O Volvo em que viajamos agora tem um leitor triplo de CD e pergunto a Menaíto quem é aquele cantor de voz potente que tão bem se move cantando Angola, enquadrado num sofisticado arranjo jazzy de piano e saxofone.
“Ah! Este cantorr? Euclides da Lomba”, respondeu de imediato, dobrando o ‘r’ e sublinhando a partícula.
“E há discos dele à venda por aí?”, quis saber. 
“Tem discos sim, deve ter lá na discoteca onde o doutor e eu fomos verr as cassetes”, informou, recordando aquele momento passado mais de dois anos antes. 
A minha curiosidade seguinte foi interrompida pelo toque do telemóvel de Menaíto. Atendeu e num tom de voz alto e rápido desbobinou uma língua onde apenas reconheci uma ou duas palavras francesas. 
“Que língua é essa que você estava a falar?”, perguntei-lhe no final da conversação. 
“Ah, essa!, é Kimbundu, doutorr...” 
E Menaíto estava tão visivelmente contente com a chamada que, descíamos de Alvalade em direcção ao Prenda, me resumiu o seu significado. Duas ou três semanas antes transportara uma senhora em avançado estado de gravidez e, tendo em consideração o formato e dimensão do ventre, Menaíto previra-lhe o nascimento de gémeos. 
“Se assim suceder te darei uma xara”, prometera a senhora, satisfeita com a profecia. 
“O que é uma xara”, quis saber, “é uma espécie de gasosa?”

Menaíto riu um pouco da pergunta e, sobretudo, da minha comparação com a gasosa, a gíria angolana usada para designar uma gorjeta ou um suborno.

“Uma xara, doutorr? Uma xara, sim, é uma gratificação…”

“Bem, mas se ao fim deste tempo todo ainda não caiu, talvez que já não caia…”, alvitrei.

Rolávamos agora na Samba e em frente a nós erguia-se o obelisco em honra de Agostinho Neto, uma abstracção fálica e descomunal com a altura de um prédio de 50 andares, construída pelos soviéticos nos bons velhos tempos do marxismo ortodoxo. Rezava a lenda que aquilo era alto e pesado de mais para os alicerces e que a qualidade da construção deixava a desejar, de tal modo que o terreno aluíra com o peso e era elevado o risco do monumento ruir a qualquer instante. Lenda ou não, o certo é que, durante anos, não se vira uma única construção num sensato raio de muitas dezenas de metros! Agora andavam em obras, remendando aquilo e construindo uma série de equipamentos urbanos por ali, mas Menaíto achava que, um dia, aquilo ia cair e matar um monte de gente, provocar uma desgraça. 

“Vai cair, doutorr, pode não ser hoje ou amanhã, mas um dia vai cair e provocar uma desgrraça…”

Contei a Menaíto da torre de Pisa, da circunstância similar de se ir afundando sobre as fundações e, apesar disso, se aguentar assim nesse estado periclitante há uns séculos. Menaíto interessou-se pela torre italiana, quis saber um encadeado de detalhes sobre ela. No final do meu esforço histórico, concluiu:

“Um dia essa torre vai cair e provocar uma desgraça! Pode não ser neste século, pode não ser no seguinte, mas um dia vai cair…”

Rápido, o tempo escoou-se, é noite cerrada e estamos de novo no aeroporto 4 de Fevereiro, onde vou apanhar o avião de regresso a Lisboa. Menaíto ajuda-me a tirar os meus pertences da mala do carro e, como se de repente se tivesse lembrado de algo, correu ao interior do carro. Voltou com uma cassete, que me estendeu – é música angolana, uma recordação para eu levar para casa. Despedimo-nos com um longo aperto de mão e um abraço rápido e Menaíto corresponde ao meu “tenha cuidado consigo” com a despedida elegante e natalícia que os angolanos usam para desejar boa noite a alguém:

“Feliz noite, doutorr.”

                                     Dezembro 2006 (À Teresa Ventura)

3. MÃO MORTA

Mão morta, mão morta
       vai bater àquela porta…

1
O médico inclinou-se na segunda fila de assentos do cockpit e espreitou pelo espaço cavado entre os ombros do comandante e do co-piloto. O avião picava, descendo em espiral para ludibriar a mira de eventuais ataques da artilharia e lá em baixo estendia-se uma língua de terra vermelha, assemelhando-se demasiado a um lenço de bolso para que um Hércules C-130 ali pudesse aterrar. Mas ao contrário do inglês da Companhia, sentado a seu lado de mãos fincadas nas coxas, ele estava suficientemente familiarizado com a sensação de aterrar em pistas que não vêm no mapa para se sentir ansioso.
À força de travões, o avião imobilizou-se e uma tempestade de poeira vermelha, mantida no ar pelo rodar das quatro poderosas hélices, evolou-se do chão. A seu lado, com um sorriso aliviado ma non troppo, o inglês passava a ponta da língua pelos beiços ressequidos e perguntava se aquilo era normal.
“The dust? Yes…”, hesitou um momento à procura de como raio se diria ‘laterite’ em inglês, “it’s from the lateraite, the mineral red powder the track is made of…” E juntou à frase um “you see”, a compor um pouco a macarronada que sentia ter despejado sobre o outro.
Porém, o inglês estava desvanecido em demasia para se dar conta do embaraço linguístico do português: era a sua primeira viagem fora do circuito disciplinado dos aviões de carreira e aterrar no meio do nada num avião que parecia ter caído sobre a pista como uma folha de Outono fizera-o afrouxar a compostura fria que o médico conhecera nos escritórios da Companhia, entrincheirado na importância que confere um cargo visto das paredes envidraçadas de um prédio alto de Luanda.
Em volta do bojo escancarado do Hércules afadigava-se a trupe de filipinos e moçambicanos que tinham viajado acocorados sobre a carga e a quem competia agora tratar do desembarque – o avião vinha ajoujado como um ovo de Páscoa. Com as pontes dinamitadas, as estradas esventradas e de bermas pontilhadas por minas, sob a ameaça permanente dos raids da Unita, o único modo de chegar às Lundas em relativa segurança era por ar. E, então, tudo se transportava por via aérea: as pessoas, a comida, os medicamentos, até os sacos de cimento!
Medicamentos – avulso ou a granel – eram moeda conhecida do médico, mas sacos de cimento passaram, de súbito, a integrar a sua agenda de interesses logo que rubricara o contrato para supervisionar a reconstrução do hospital. Assinado um tanto à pressa, reconhecia agora, mas garantira-lhe, para além de um bom salário, a permanência no país por mais um ano, talvez dois se a guerra continuasse a bom ritmo e as coisas se atrasassem como era costume… Há cinco anos que vivia em Angola e, embora o não confessasse à própria sombra, o mês de férias que passava anualmente em Portugal espicaçava-lhe a vontade de regressar, não havendo nada de mais fraudulento do que o encolher de ombros e o 
“Tenho de voltar, é o meu ganha-pão…”
com que respondia às preocupações dos amigos, com que se despedia da família contristada.
Portugal, porra, que marasmo! Aliás, quem tinha nascido em África como ele, como outros como ele, dificilmente se habituava àquela paisagem de bonecas. Fizera, era tradição, os últimos anos da licenciatura na metrópole, mas sempre com a ideia de voltar um dia às serranias da Huíla e às planuras do Namibe, mandioca ladeando um lado do caminho e do outro uva moscatel. Entretanto estourara a revolução dos cravos e com ela a hemorragia do retorno, a multidão que, empurrando-o na chegada, lhe intimidava o desejo de regresso; depois foi atacado por uma zanga absurda com o país onde nascera e as memórias roubadas, à qual se adicionava o desencanto com o país provisório. E fugiu até onde pôde de mais longe, até Macau, mas acabou por não se dar naquela latitude oblíqua, nauseado com a neurose dos portugueses que se acotovelavam nas pizzarias de pescoço esticado enquanto seguiam a lacrimejar o Natal dos Hospitais via satélite. Aguentara-se três anos por lá, mais um vegetando na metrópole e, depois, surgira aquela hipótese de voltar e ir ser médico no mato ao serviço duma ONG finlandesa. A sua parte da missão correra bem: apurara a clínica e a mão, ficara habilitado a fazer um pouco de tudo no reger da batuta entre a vida e a morte; e na sombra larga da varanda da sua vivenda fumava demorados havanos, emborcava prateleiras de copos de rum velho na companhia dos cubanos que andavam por ali. Mas a ONG acabara por falir, pois os indígenas tinham aderido evasivamente ao dispendioso projecto pedagógico da escola que se propunha, de uma só vez, ensinar as virtudes do desenvolvimento sustentado e o finlandês como segunda língua. 
E já o assombrava de novo o espectro do Infante e da longínqua barra do Tejo, quando um tipo ligado à Unicef lhe trouxera notícias da Companhia… Ingleses, uma firma que conseguira fechar um contrato de exploração de diamantes com a Endiama, acenando como contrapartida com a recuperação do hospital local, escavacado pela metralha ao que constava. Agora andavam à procura de alguém para ir lá pôr a cereja do contrato… Não fora difícil, apesar do extenso formulário, da secura de iguana do inglês, conseguir o trabalho: em 1988 Angola quase não tinha médicos, importar um tipo que estivesse disposto a viver em guerra e no mato era – com excepção dos cubanos, mas esses não os queria a Companhia – proeza rara e dispendiosa. E, por fim, a sua experiência do país, o conhecimento da língua, ajudaram muito, designadamente a contornar o item ‘habilitações em gestão hospitalar’… Aqueles gajos eram de gozo! Gestão hospitalar, pensava, sorrindo para dentro, ao fitar a paisagem que lhe ia ondulando à frente dos olhos, distorcida pelo calor como um filme projectado numa tela mal esticada.
Passava pouco do meio-dia e os raios do sol de Março faiscavam impiedosos, atravessando como balas incandescentes a chapa do jipe em que seguiam a caminho da messe da Companhia. Estava programado que almoçassem por lá, depois visitariam o hospital – ou o que restava dele – numa primeira missão de reconhecimento e regressariam a Luanda. Nas semanas seguintes teria de apresentar um projecto de reconstrução à Companhia com todos os detalhes: desde os sacos de cimentos que se iam gastar, ao equipamento médico e ao pessoal necessário para voltar a pôr o hospital a funcionar. Finalmente, com a sua arca de roupa e livros, a sua maleta de médico, estabelecer-se-ia nas Lundas para mostrar, além dos sarrabiscos no papel, do que era capaz. Era bom que aproveitasse o dia e se atafulhasse em informações, pois aquilo não ia ser pêra doce. Fazer consultas aqui e acolá, reclamar, por telefone ou via rádio, do equipamento que não tinha ou que tardava em chegar era o máximo que fizera em termos de ‘gestão hospitalar’… 
Durante o almoço ficara, graças a Deus, longe do inglês que, camisa de manga curta com dobra de alfaiate e nó da gravata atrevidamente folgado, palrava com os seus engenheiros da delegação da Lunda, o que lhe permitiu ir tirando uns nabos da púcara sobre o hospital e sua situação actual.
Felizmente, parecia que o trabalho de reconstrução estrutural seria mais leve do que o que se imagina quando se pensa em guerra e metralha, pois, segundo um dos empregados que servia à mesa, casaco branco com galão dourado nas lapelas e nos punhos, o edifício fora mais saqueado do que propriamente destruído.
“Não”, dizia o mulato grande numa voz arrastada, “eles até que respeitaram…Está bom, está mesmo bom – mais vidros partidos, porta quebrada… E foram roubando colchão, depois cama, depois as outras coisas, já sabe como é… hospital vazio, sem patrão…”, acrescentou rindo como se tudo aquilo tivesse imensa piada.
O final do almoço foi interrompido por uma altercação nascida na porta do refeitório. Alguém tentava entrar, alguém a quem o corpanzil do mulato impedia acesso pleno. Contrariado, um dos engenheiros levantou-se e foi ver o que se passava. 
O médico parou de remexer o café quando viu todos os olhos da cabeceira da mesa cravarem-se nele. O inglês, regressado à pele de sahib, interpelou-o com um sorriso aguado que lhe levantava a ponta das sobrancelhas:
“Parece que, mesmo desactivado, o hospital já serve para alguma coisa, doutor: aparentemente tem lá um doente à sua espera…” 
Após uns segundos a remoer argumentos que não serviriam senão a si próprio – os ingleses miravam-no numa expectativa irónica e, da porta, dois pares de olhos fitavam-no com urgência – o médico engoliu o café com o facto de não estar ali para ver doentes e levantou-se da mesa.
No exterior, contrastando com a calmaria e a sombra condicionada do refeitório, impondo-se ao calor abrasador das três da tarde, reinava grande agitação num grupo de pessoas que aguardavam do lado de fora do portão das instalações da Companhia. Com uma cadência regular, um grito lamentoso elevava-se no ar.
“Quem são?”, perguntou a um dos homens cujos olhos o tinham arrancado ao café.
“São família, doutor. Quando souberam que ia chegar médico hoje trouxeram-na do mato, às costas, andaram seis horas…”
“Mas eu não vim para tratar ninguém”, explicou-se finalmente, “estou aqui por causas das obras do hospital; não trouxe nada comigo”.
“A gente sabe, doutor,” respondeu o homem mostrando os dentes num sorriso e incluindo nesse conhecimento o outro indivíduo que caminhava ao lado deles, “nós trabalhamos lá no hospital… Mas eles”, continuou fazendo um gesto para o grupo que os seguia dois metros mais atrás, “não sabem: apenas sabem que tem doutor aqui hoje”.
“Mulher prenha, doutor”, informou o outro. E achou por bem acrescentar com um esgar, como perante coisa que cheira mal: “quase morta…”

2

O hospital, uma construção quadrangular e atarracada com telhado de chapa de zinco, estava em absoluto silêncio. Os passos ressoavam nos corredores vazios a caminho da ala que, em melhores dias, fora a maternidade e onde, na única cama que restava, os dois guardiães do hospital tinham decidido deitar a mulher grávida. 
A cama era o típico leito de hospital em tubo de metal esmaltado, comido de ferrugem nos locais onde se lascara a tinta. No forro esgaçado, a cor de areia original do colchão de espuma sumira-se, substituída por uma tonalidade negro-avermelhada de sangue repassado. Mas aquele era um sangue antigo, não parecia pertencer à mulher que jazia na cama, a face e metade do corpo iluminados pelo charco de luz crua que penetrava na enfermaria através da cratera, talvez de rocket ou granada, com mais de um metro de diâmetro que esburacara o telhado de zinco e que, na ausência de electricidade, alumiava a sala sombria.
Aparentemente, a mulher não sangrava e de sangue só eram visíveis pequenos coágulos nalguns trapos caídos ao lado da cama, ainda húmidos de líquido amniótico e pasto de um rebanho ligeiro de moscas pequenas, onde refulgia o verde metálico e o porte maciço de uma ou outra varejeira. Havia moscas em todo o lado,  a debicar o corpo deitado, explorando o colchão, chupando os trapos, até pousando no médico de quem tinham farejado, de imediato, a aproximação transpirada. 
“Algum deles fala português?”, perguntou por cima do ombro ao olhar o baixo-ventre da mulher, uma vez sabido que ia precisar de respostas, de prestar esclarecimentos aos sete ou oito acompanhantes que, furtivamente, tinham penetrado na sala e se postaram a uma distância respeitosa, encostados à parede onde ficava a porta.
“Não, doutor, são Chokwe…”
O médico já o calculara pelo tipo de silêncio instalado, até mais do que pelos panos em que as mulheres se enrolavam e apesar das calças e camisas dos homens, provavelmente enfiadas à pressa para a vinda ao hospital.
“Então um de vocês vai ter de traduzir o que eu disser e o que eles responderem, certo? E vou precisar de água e… que tipo de material – ferros, pinças, tesouras, gazes, medicamentos – há por aí?”
“Ah, doutor, eu vou buscar, mas não há quase nada… Não há aparelho de tensão, termómetro, soro; nem seringa, nem estetoscópio de grávida…” prontificou-se um deles que, ficou a perceber pelo à vontade na gíria técnica, tinha uma vaga formação de enfermeiro.
O médico concentrou-se na mulher que, estendida na cama, o fixava com uns olhos estafados, mas onde luzia uma ansiedade. Era uma rapariga magra, longilínea, de pele clara e macia como percebeu ao pegar-lhe no braço num gesto de palpar o pulso e estabelecer um contacto.
O pulso estava rápido e fino, a testa e a cara perladas por um suor espesso e pegajoso, os lábios gretados e quase apagados de tão desidratados. Mas a exaustão ainda não dera lugar ao choque; estava estafada mas consciente, instalada na serenidade da resignação. Antes de lhe subir o pano grenat em que se envolvia descomposta, mas ainda assim resguardada de mais para uma palpação conveniente, o médico sorriu-lhe como que a garantir que tudo correria pelo melhor. As pupilas dela corresponderam um pouco, notou uma intensificação no brilho da superfície prateada.
Tinha dezoito anos e era o terceiro filho, a bolsa de águas rompera-se há mais de doze horas atrás, mas o trabalho de parto não se consumara, fora por isso que tinham pegado nela e atravessado toda aquela extensão de mata – sabiam que sozinhos não iam conseguir.
O médico foi conhecendo os detalhes a prestações – enquanto enunciava perguntas, ouvia as respostas e esperava a tradução – as mãos palpando o ventre com cautela e minúcia, apercebendo uma barriga mole como massa de pão, indiciando um útero atónico e em risco de rotura iminente.
O diagnóstico estava feito. Olhou uma última vez com apreensão a zona genital, onde, pela vulva, espreitava um braço de bebé e uma mãozita de dedos abertos roçava o colchão. Tocou, de novo, a pequenina mão: estava gelada e sem cor como os restantes dez centímetros de braço procidente, falando por si sobre a ausência de circulação e atestando a morte da criança, ocorrida já há um bom par de horas. Agora era preciso agir. 
Quando o enfermeiro chegou, dependurando em cada mão um balde de metal galvanizado, o médico deambulava pela maternidade tentando encontrar alguma espécie de meios, algo que ajudasse, nem ele sabia bem o quê. Mas o único equipamento que ali havia era, num cubículo separado do local onde estava deitada a rapariga por um tabique que não chegava sequer ao tecto, uma marquesa ginecológica desconjuntada, sem cobertura ou correias de contenção nas perneiras enferrujadas, e uma mesinha de cabeceira em cuja gaveta descobriu um pente sem dentes e uma caneca de esmalte invadida por bolores.
“É tudo, doutor”, informou o enfermeiro tirando do interior de um dos baldes duas embalagens de luvas cirúrgicas, um frasco de água oxigenada e uma tesoura de pensos. “E a água que pediu…”, acrescentou com um sorriso apontando o outro balde.
O médico pegou com um olhar esperançado na tesoura, chegou-a à luz do buraco no tecto. Gemeu de desconsolo: a tesoura tinha um dos ramos do bico partido – não cortaria nem água! 
E todas as suas opções, isto é, as duas alternativas que se ofereciam para tentar salvar a vida de uma mulher com um feto-morto atravessado no ventre passavam por algo que cortasse, uma tesoura forte… Uma delas consistiria em cortar o braço do bebé, para poder depois tentar extrair o resto do corpo. Mas era uma solução que não lhe agradava, insegura. Era trabalhar às cegas, não sabia o que se escondia por trás daquele bracito que tudo tapava, podia com muita facilidade perder o controle da situação.
“Não haverá por aí, seja lá onde for, uma tesoura?”, perguntou – baixando, desnecessariamente e por instinto, a voz – “uma tesoura que corte…”
O enfermeiro ficou a olhá-lo, emparedado entre a resposta ao pedido e a linha de raciocínio com que o clínico o contagiara ao enunciar tal pergunta.
O médico detectou o emperramento do outro, abanou-o com uma sugestão:
“Vá, enquanto pensas, dá aqui uma ajuda – vamos mudá-la para a marquesa.”
A rapariga era leve como um osso de ave e deixou-se transportar sem um queixume até à marquesa ginecológica. Tiraram-lhe o pano grenat pela cabeça e o seu corpo nu ficou em contacto directo com o metal, cada uma das pernas esguias pendendo frouxa das perneiras enferrujadas.
“Só se for o alfaiate…”
“O quê…?” O médico, absorvido na previsão de como poderiam vir a reagir as pernas dela quando lhe começasse a escarafunchar as entranhas sem anestesia e sem a contenção das correias de cabedal das perneiras, não captara a deixa do enfermeiro.
“ A tesoura, doutor. Tesoura afiada e forte, que consiga cortar braço…” 
“Não é o braço que vou ter de cortar!”, respondeu com brusquidão, mas, lá no fundo de si, aliviado por partilhar aqueles pensamentos ainda hesitantes.
O enfermeiro olhou-o, abismado. O médico apontou para cima, para o forro de contraplacado esburacado do tecto da sala, e voltou a espicaçá-lo:
“Anda lá, que daqui a pouco começamos a perder luz. Chama o teu colega aí de lado e diz-lhe que vá pedir emprestada a tesoura ao alfaiate. Eu preciso aqui de ti…” 

3

A tesoura demorou quase uma hora a chegar ao hospital, mas a espera que incomodava o médico prendia-se toda com o estado geral da rapariga e esse não piorara. O enfermeiro tinha trazido uns pacotes de açúcar e um saleiro da sua provisão pessoal e o médico, usando a tesoura de pensos de bico partido como colher, fabricara na velha caneca de esmalte um arremedo de soro que teve o efeito quase miraculoso de arrebitar o estado comatoso para o qual ela parecia começar a querer resvalar.
Aproveitara também a espera para explicar à família que o bebé estava morto, facto evidente para todos, e que para salvar a vida dela tinha que tirar o bebé cá para fora. Também isso não causou surpresa ou exaltação, uma vez que um morto a habitar o corpo de um vivo não é bom sob nenhuma circunstância ou em hemisfério algum. 
“E para isso”, acrescentou através do enfermeiro, “o corpo vai ter que sair aos pedaços e durante esse trabalho não quero ninguém aqui dentro”.
O renque de pessoas imóvel na semi-obscuridade, uns de pé encostados à parede outros acocorados na mesma linha, ouviu a decisão com gravidade e não ouviu nem choro nem soluços ou, sequer, um dos lamentos gritados que tinham acompanhado o cortejo na deslocação da Companhia até ao hospital. 
A tesoura chegou embrulhada em papel de jornal e o médico examinou-a detalhadamente à luz do buraco no tecto. Era um objecto possante, de metal escuro e brunido, com um encaixe moldado para o polegar e uma pega onde cabiam três dedos no lado oposto. Cortava bem até à ponta do bico, estava afiada e afeiçoada para cortar pano na perfeição. Satisfeito, o médico pousou-a sobre o tampo da mesinha de cabeceira que fora arrastada até junto da marquesa para servir de bancada de apoio à operação e onde, sobre um pano relativamente limpo, já estavam dispostas as luvas cirúrgicas, o frasco de água oxigenada e a caneca de esmalte com um nova dose de soro improvisado.
Foi ao pegar na embalagem que continha as luvas que o médico se deu conta que ambos os pacotes eram de tamanho 6½. E ele calçava 8! Mesmo assim começou a enfiá-las com todo o profissionalismo e cuidado, mas como eram demasiado pequenas e muito para além do prazo de validade, os seus dedos furaram tudo mal se começaram a encaixar nos da luva, surgindo nus e ridículos através da borracha esfarrapada. Com um “puta que pariu” todo espiritual arrancou aquela salgalhada e começou a tarefa de mãos nuas. 
Pousando a tesoura entre as coxas abertas da rapariga, o médico palpou mais uma vez o terreno onde ia trabalhar. Como um cego, precisava guiar-se o mais possível pelo tacto, pois a luz da tarde era já menos forte e a zona em que iria operar não teria, nem de longe, a iluminação incidente e potente de uma mesa cirúrgica civilizada. Não havia sequer um candeeiro a petróleo no hospital e não se podia dar ao luxo de esperar mais uma hora para mandar ir chatear algum vizinho do alfaiate!
O braço procidente do bebé não permitia acesso ao interior do útero, muito a custo conseguia introduzir a ponta do indicador direito e identificar uma superfície muscular tão exaurida de tensão que se moldava ao corpito morto como uma manga de borracha.
O médico sabia o que tinha a fazer, já o fizera uma vez, já o vira praticar várias, mas nunca em condições daquelas: sem meios, sem luz e com um braço que se interpunha, como uma rolha, entre a tesoura monstruosa e o pescoço inacessível do feto.
Com cuidado, mas aplicando toda a sua força, empurrou o bracito da criança para dentro: era preciso recolhê-lo, conseguir que recuasse e passasse por sobre o ombro até ficar pousado ao longo do tórax do feto. Só assim conseguiria ter acesso ao útero e ao pescoço. Durante a manobra sentiu o braço estalar, como quando se parte um osso de frango, e as mãos da rapariga agarrarem-se com força à parte lateral da marquesa.
O médico respirou fundo e esticou o corpo, dorido de estar ali em pé, de permanecer todo dobrado para a frente sob tensão. Aproveitou a pausa para dizer ao enfermeiro:
“Vá, chegou a hora: põe-me essa malta toda lá fora. O teu colega que tome conta – agora não quero ninguém aqui.”

4

Apesar do obstáculo ter sido removido, o acesso ao interior do útero mantinha-se difícil e durante todo o tempo que a operação durou o médico não conseguiu introduzir na abertura mais do que o dedo indicador.
Como o focinho de uma toupeira o seu dedo palpou e rondou até que localizou o pescoço. Era uma coisa com a espessura de uns três dedos, assim como se fosse o pescoço de um coelho esfolado. E durante a meia-hora seguinte, a luta principal, um combate que o deixou exausto e seco de tanto transpirar, consistiu em tentar estabilizar o cadáver da criança, em manietar o pescoço para o conseguir abordar com a tesoura e iniciar o corte. Tinha a seu favor o facto de o corpito se encontrar totalmente flácido e plástico, o que permitia a sua tracção, mas as suas tentativas eram dificultadas pelo ambiente escorregadio em que tudo se processava, o que fazia com que, à frente do bico da tesoura, o corpo escapasse constantemente para o fundo do útero como se, apesar de morto, fizesse um derradeiro esforço para manter a integridade.
Endireitou-se de novo, as costas numa chaga, o corpo apoiado contra uma das coxas da rapariga, esperando uns instantes até que as cãibras nos dedos cedessem um pouco. Aproveitava para olhar a miúda, vigiar o seu estado: ela não abrira a boca para soltar um queixume! Tudo o que ia percebendo dela era, nos momentos mais duros, as mãos de dedos elegantes fincando-se nas bordas da marquesa, as pernas, pousadas nas perneiras, percorridas por um frémito. Aguentava-se, estava a aguentar-se, assim o dizia o olhar demorando-se com serenidade animal no seu.
“Dá-lhe mais um gole”, ordenou ao enfermeiro, pedindo aquilo que tanto lhe apetecia a ele e aos seus lábios triturados, à garganta em brasa.
Fora condenado a carrasco de um suplício de bicadas infernais, improdutivas e intermináveis, como se o tivessem destinado a ser o predador de uma tortura desumana. Não conseguia introduzir no útero mais do que alguns milímetros do bico da tesoura e, lá dentro, não conseguia afastar os ramos das hastes mais do que quatro ou cinco milímetros. Quando o conseguia e tocava o pescoço do feto e o conseguia bicar, logo a seguir, empurrado pelo contacto da tesoura, o corpo fugia para o fundo do útero. Este jogo durou uma eternidade e durante muito desse tempo esteve simplesmente a dar bicadas inúteis no osso das vértebras do pescoço. Até que, somente pela sorte de tantas vezes repetir o mesmo gesto, conseguiu abraçar entre as hastes da tesoura um espaço intervertebral, cuja consistência sentiu imediatamente como diferente da dureza do osso. E por ali, por aquela nesga, o pescoço deixou-se separar da cabeça com surpreendente facilidade.
Os seus dedos voltaram a encontrar o bracito estropiado e, ao puxar por ele, o corpo deslizou cá para fora sem resistência; ao mesmo tempo sentiu a cabeça fugir lá para trás. Tomou o pequeno corpo decepado e enfiou-o no grande balde galvanizado onde, por estar tão flácido e macerado, ele se enrolou no fundo.
Sem o corpo a ocupar o interior do útero, a cabeça descaiu logo até à boca da vagina. Introduziu os dedos à procura da boca: encontrou-a, mole e entreaberta. Encaixou o indicador na mandíbula e, com os dedos da outra mão por trás, a empurrar, puxou-a para fora do corpo da mãe. Com a cabeça veio junto algum sangue-vivo, sinal de que a placenta começava a descolar e o corpo da rapariga retomava as suas funções.
Quase deixou que a cabeça do feto rolasse pelo chão, pois ao largá-la dentro do balde descobriu que este já não se encontrava no lugar. Alguém o tinha removido e ele não notara!
No gesto de buscar o balde, rodou um pouco sobre si próprio, a cabeça do feto encaixada no dedo pela boca como se fosse uma bola de bowling, e deu conta que havia gente nas suas costas. Muitas pessoas. Respeitosamente alinhados contra a parede, os familiares da rapariga tinham regressado à sala sem que desse conta e olhavam-no, ali, com a cabeça da criança pendurada numa mão.
Então, como no meio de um sonho, o médico começou a ouvir palmas ritmadas e a descortinar na sombra uma linha de seres que, à medida que as palmas se iam intensificando, se moviam em uníssono, um passo para a frente e outro para trás, entoando:  
“Uelelé, uelelé!; kanawa txinge muata. Uelelé…”
Com delicadeza, o enfermeiro tirou-lhe a cabeça da mão, murmurou-lhe ao ouvido:
“Língua chokwe, doutor. Estão a dizer: ‘que bom, que bom…’.”
Entontecido, o médico certificou-se da vida na rapariga deitada na marquesa; depois levantou a cabeça e procurou o ar exterior no buraco aberto no telhado da sala de partos. 
A noite caíra, o seu olhar encontrou apenas uma ilusão morna de azul no céu enegrecido.

(Junho, 2007. Ao João Lemos)
Primeira fotografia: © Pedro Serrano, Viana do Castelo, 2003.
Segunda fotografia: © Pedro Serrano, Bengo (Angola), 2008.




SÃO  TOMÉ  E  PRÍNCIPE


1. SUA BELEZA É UM AVIÃO

© Pedro Serrano, São Tomé, Setembro 2010.

2. SOMETHING IN THE WAY SHE MOVES

© Pedro Serrano, S. Tomé e Príncipe, 2010. Título inspirado por "Something", de George Harrison, 1969.




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