![]() |
Asteria. |
Depois disso não mais tropecei ou ouvi falar em cinemas ao ar livre e, como vira acontecer um pouco com os circos, calculei que tivessem passado de moda e estiolado, extintos dos mapas pelos anos gelados em que todos os cinemas — quanto mais estes parentes pobres sem um tecto — foram cilindrados, primeiro pelos videoclubes, em seguida pelas cavernas alcatifadas das colmeias multiplex dos centros comerciais, e mais recentemente pela torrente sedentária e inesgotável do streaming caseiro.
Morreram portanto, pensava eu (ou melhor: nem sequer pensava no assunto), tinham-se transformado numa reminiscência apenas celebrada em documentários bem intencionados, ou em películas sentimentais, louvando e glosando os dias ingénuos e os bons selvagens, como Cinema Paraíso. Isto até à tarde em que, arrastando a minha mala com rodinhas pelos empedrados da cidadezinha de Rethymno (Rétimo, na tremenda tradução portuguesa), situada algures na costa Norte da ilha de Creta, topei no Cine Asteria, recinto nomeado segundo a deusa do mesmo nome, cuja etimologia do nome aponta para o muito apropriado significado de Estrela. Ali estava ele, à devassa dos meus olhos terrenos e incrédulos, pois cumpria todos os requisitos das coisas desusadas, ultrapassadas, kitsch, quiçá oníricas.
Voltámos uma noite, claro, curiosos e sentindo-nos prendados pela informação de que a fita em exibição (Megan 2.0) seria exibido no americano original e legendada em grego. A calmaria reinante no recinto era semelhante à da tarde em que ali espreitáramos a primeira vez, apenas havia agora uma senhora encaixada na bilheteira e as portadas castanhas do pequeno bar, pintado a amarelo, ao fundo da esplanada, tinham sido recolhidas para que todos os acepipes que devem adereçar uma sessão de cinema se expusessem no seu esplendor: havia popcorn, nachos, chips, cookies, oreo, amaretti e até nero, que é água em grego. Para além disso, apenas os gatos do costume, cirandando entre as mesas a ver o que poderia pingar. Também ainda era cedo e fôra escusado termo-nos apressado, como se a sessão das nove (haveria outra às vinte e três) pudesse esgotar; deste modo sentámo-nos na esplanada, vendo as vistas, isto é os gatitos, passeando, à falta de melhor, a ponta de uns dedos descaídos pelos lombos espinhados.
Quando a porta larga no muro se abriu para a sessão, acabámos por ser uma magra dúzia de pessoas espalhadas pelo recinto. A fita seria projectada na parede de cimento que separava uma das extremidades do espaço da rua e a plateia era ampla e confortavelmente mobilada por cadeiras de lona à realizador de cinema, cada par delas intercalada das restantes por uma mesa metálica de café, onde aguardava um cinzeiro de vidro.
Ao começar do filme, restava ainda claridade no firmamento e os sons soltos da rua chegavam-nos, sem cerimónia, por sobre a placa de betão do ecrã. Mas, sem aviso, a coisa aqueceu e as colunas rouquejaram e troaram um genérico que logo esbateu a proximidade do exterior, sem, no entanto, causar agitação nos gatos, que, prevendo a mudança de cenário das eventuais migalhas, se passeavam pelo recinto alheios ao tremeluzir das imagens e aos decibéis da banda sonora. Rapidamente lhes segui o exemplo, pois o filme era mau demais e o olhar foi-me sendo disputado pela envolvência, pela cor e macieza do céu que por ali andava a pousar-me os ombros sem pedir licença, um céu agora escuro e respeitador da concorrência, mas bem longe de se lhe poder chamar de breu, pois um azul mediterrâneo nunca se extingue, mesmo não havendo lua ou estrelas visíveis, como era o caso.Acabámos por voltar aos degraus do Cine Asteria diversas vezes (diariamente, para ser franco), mas não para rever o Megan 2.0 ou os seus sucedâneos. Aqueles gatitos arranhavam a memória, estavam magros demais e era óbvio que o recheio do bar não lhes servia, nem a sétima arte lhes enchia o apetite da alma o suficiente. Numa revoada fulgurante, aderiram instantaneamente àquelas novas sessões de paté de salmão e frango, comprados por nós numa mercearia da vila e, para satisfação da ânsia de todos, generosamente disperso em grumos pelos degraus da escadaria de cimento.
Sem comentários:
Enviar um comentário