27 março 2014

22 março 2014

TEMPO INCERTO


Na eternidade, pelas seis a.m.
Larga a barca da aurora
Com um arcanjo ao leme

Na eternidade, pelas dez da matina
Passa um rebanho de eleitos
A caminho da cantina

Na eternidade, pelas treze p.m.
Rescende a canja de galinha,
Aletria e leite creme

Na eternidade, em vaga hora
Um arcanjo em contraluz
Amarra a barca da aurora 

Na eternidade, a tempo incerto
Deu agora a meia-noite
Mas bate meio-dia certo



© Fotografia de Pedro Serrano, Janeiro 2014.

19 março 2014

NA ETERNIDADE, DA PARTE DE TARDE (Dia do Pai)


 © Pedro Serrano. Imagens: Goa, Índia, Janeiro 2012. Filmado com câmara Leica V-Lux 20. Música:
Johan Sebastian Bach, concerto para piano e orquestra n.º 5, em Fá menor. Largo (BWV 1056). 

18 março 2014

ENTRETANTO NOS AÇORES

 Entretanto em São Miguel a Primavera faz das suas...
© Fotografias de Pedro Serrano, Açores, Março 2014.

15 março 2014

VOU-TE CONTAR: 65. A CIDADE BRANCA

Alain Tanner, um realizador suíço votado ao sucesso nos anos 70, estreou em 1983 uma história filmada em Lisboa a que entendeu dar o título de A Cidade Branca. Lembro de, na altura, ter ficado um tanto chocado com a escolha da cor, pois Lisboa é cidade de amarelos e rosas – nada tem de branco! Depois, com o passar do tempo absolvi o homem: para quem chegava de onde ele vinha, paragens cinzentas com claridades mortiças, é natural que Lisboa, com a sua luz generosa, pareça branca...
Em Portugal, Faro, sim, essa é que era a cidade branca, os copos verdes em cima do frigorífico.
Para um tipo que pouco mais vira do que cidades do norte, chegar a Faro pela primeira vez foi como ter atravessado o estreito mar sem se dar conta e acordar numa localidade da África árabe: Marrocos, Tunísia, Argélia, eu sei lá. O Alentejo, esse, era percorrido numa pressa de deixar as planuras chamuscada por Agosto e chegar à borda de água do litoral algarvio. Quem iria, derretido no banco de trás de um automóvel sem ar condicionado, reparar nas tonalidades de Grândola ou Mértola? A sul, a sul, que na rua Conselheiro Bivar o apartamento já esperava por nós, as chaves prontas para entrega no escritório do Sr. Fagulha.
Às vezes, para evitar atravessar o Alentejo às horas de maior torreira, saíamos do Porto à noite, de modo a chegar ao Algarve às primeiras horas da manhã, a tempo de tomar um pequeno almoço desentorpecente na serra do Caldeirão, por entre o odor da esteva o pão de centeio acabado de fatiar.
Em Faro, durante o dia, as portas abriam-se para a cal incendiada, impiedosa como um cautério, os nossos olhos cerrados como frecheiras; mesmo à noite a superfície macia dos edifícios parecia reflectir, agora na textura doce de pétalas de jasmim, a brancura caiada da cidade, debruada pelas escamas reptilíneas dos telhados.
Os apartamentos Garantia tinham o recheio parcimonioso, contado, dos apartamentos mobilados e a meia-dúzia de copos de vidro grosso verde-garrafa esperava, militarmente alinhada, em cima do frigorífico – beber era uma coisa que devia estar à mão.
© Fotografia de Pedro Serrano, Faro 2013.


07 março 2014

SAPATOS MOLHADOS

Sobre o nevoeiro espesso da manhã caía uma chuva miúda, a sensação, um tanto leitosa, era a de estar a guiar dentro de um copo onde se dissolvia um comprimido efervescente de paracetamol.
A meu lado, a Ana Paula Magalhães, a quem dava uma boleia à estação de comboio, discorria sobre o encontro que tivera em Cabo Verde com o rapaz sobre o qual eu escrevera dois apontamentos por aqui (Natal em pleno Verão Sem Eira nem Beira) e que ela decidira ir procurar ao Pão Doce, à porta do qual costumava estar estacionado o carro abandonado onde ele dormia, pois tem um amigo em Santiago que dirige uma associação-abrigo para crianças orfãs e sem-abrigo, que estava disposto a recolhê-lo.
“Claro que ele não quis ir…”
“Não me espanta nada”, respondi, “um tipo de quinze anos, habituado a uma vida de total liberdade, ser agora enclausurado com mais uns tantos. Ainda por cima um malandro esperto como ele, que se vai safando sozinho aqui e ali…”
“Isso é agora, mas aquele miúdo vai acabar mal”, continuou a Ana Paula, “o meu amigo da associação diz que a zona por onde ele se move é das mais perigosas da cidade…”
Encolhi os ombros, numa impotência, a começar, feita dos 4000 km de distância entre a manhã morrinhenta e o ensolarado que, àquela mesma hora, estaria no Plateau da cidade da Praia.
No banco ao lado a Ana Paula, que estivera em silêncio nos últimos quarenta e cinco segundos, deu uma gargalhadinha, contou:
“Quando fui à procura dele e o vi percebi logo, pela descrição do Pedro, quem era; atirei-lhe: ‘vi uma fotografia tua...’. Ele arregalou muito aqueles olhos grandes e respondeu:
“Como é que podes ter visto uma fotografia minha!?”
“Vi, vi. Estavas até vestido com um casaco vermelho, de Pai Natal...”
“O meu amigo!”, teria ele dito, “conheces o meu amigo...” E, sem transição, olhara a Ana Paula bem nos olhos e disparara:
“Dá-me uns sapatos...”
Agarrado ao volante, ri-me:
“Estava a fazer uma associação de ideias com as havaianas que me cravou e eu lhe dei…”
“Claro!”, respondeu ela, “é espertíssimo o tipo. Quando lhe disse – não tinha totalmente a certeza, mas sabia que seria por esses dias – que o Pedro talvez estivesse em Santiago, a trabalhar, ele exclamou: ‘O meu amigo’, e desatou a correr pela rua fora até a uma casa onde funciona o Centro de Língua Portuguesa, ou lá o que é…”
“Era onde eu costumava trabalhar quando estava lá…”
“Pois, ele sabia-o perfeitamente! Sabia as horas a que o Pedro entrava, as horas a que parava para almoçar...”
Tínhamos chegado a Campanhã. Saí do carro, tirei a mala dela do porta-bagagens, dei-lhe um beijo rápido:
“Despache-se Ana Paula, que ela molha.”





© Fotografias de Pedro Serrano, cidade da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, 2011.


05 março 2014

NAKED LUNCH


© Fotomontagem de Pedro Serrano sobre fotografias de António R. Colaço, Melides, Fevereiro 2014.

Nota: Naked Lunch (Festim Nu) é o título de um romance de William S. Burroughs (1959) que deu origem ao filme do mesmo nome de David Cronenberg (1991).

01 março 2014

LÁ EM CASA

Vi há pouco um anúncio na TV sobre um creme hidratante pós-duche que consistia numa jovem mulher, loura e com o aspecto geral de pão acabado de cozer, a sair de uma gaiola transparente onde acabara de tomar um banho, a passar o tal creme por um corpo sabiamente revelado e escondido para poder ser visto em horário nobre e logo, sem transição, a passar um batom pelos ressumantes lábios e a estender sobre as unhas uma pincelada perfeita de verniz.
Calculo que, lá em casa, todas as espectadoras sentadas no sofá estejam nesse momento a pensar em comprar e experimentar o tal creme logo no dia seguinte e que todos os homens sentados no sofá se estejam a imaginar na fronteira da porta entreaberta de um quarto de banho, imiscuindo-se, numa voz progressivamente enrouquecida e fanada, em prudentes diminutivos: “posso ficar a ver um pouquinho?”, “posso entrar para o teu duche um instantinho?”; “posso ensaboar-te um pedacinho?”, “posso meter um bocadinho...?”
Sim, é possível que esteja a generalizar de forma abusiva e que, lá em casa, uma telespectadora esteja a dizer “já experimentei e não gosto nada da fragrância...” ou que um telespectador distraído esteja a sacudir migalhas de batatas fritas da camisola; admito mesmo que, lá em casa, um outro tenha já adormecido no sofá com um telecomando hirto na mão.