08 junho 2024
25 novembro 2022
A FILOSOFIA DA CANÇÃO MODERNA: em jeito de Prelúdio ao novo livro de Bob Dylan
![]() |
Da esquerda para a direita: Little Richard, Alis Lesley e Eddie Cochran. |
Edição original: Simon & Schuster, Nova Iorque, Novembro 2022, 339 páginas.
Edição em português: tradução de Angelina Barbosa & Pedro Serrano, Relógio d'Água, Lisboa, Dezembro 2022.
Com Dylan, nunca se sabe.
Se já teve oportunidade de passear os olhos pela lista das 66 canções comentadas no livro (pode consultar a lista no final deste texto), é plausível que se esteja a interrogar sobre a razão pela qual o autor optou por escolher estas e não outras. Mas Bob Dylan não nos informa nunca sobre as motivações da escolha, pelo menos de forma perceptível a curta distância.
Ou, em alternativa, talvez possamos perguntar-nos se, sem margem para dúvida, estaremos perante 66 das melhores canções populares dos tempos modernos. Seria ousado afirmá-lo, mesmo recorrendo a alguns dos métodos possíveis para pesar a qualidade a uma canção, um dos quais, por grosseiro, consiste em olhar a amplitude e duração do seu sucesso público. Embora algumas das canções elegidas tenham alcançado sucesso planetário duradouro (como "Blue Moon," "Black Magic Woman," "Mack the Knife," "Strangers in the Night," "Volare," "Blue Suede Shoes" ou "My Prayer"), outras não passaram de êxitos já esquecidos ou exclusivamente circunscritos aos Estados Unidos da América.
Igualmente estão ausentes da selecção joias universalmente reconhecidas como tal, o que inclui aquelas de que o próprio Bob Dylan foi autor. Uma dessas ("Like a Rolling Stone," 1965) foi considerada, ao longo de décadas e em sucessivas votações especializadas, como a melhor canção pop de todos os tempos, e a última vez que tal sucedeu foi já em pleno século XXI (2004). Vamos supor que Dylan foi modesto ou quis evitar julgar em causa própria.
Quanto a um mérito que possa ser associado ao valor dos compositores das canções, não se encontra na lista canção alguma de autores/intérpretes que tenham deixado marca indelével na música popular—e na relacionada cultura global—e, mais naturalmente, a que corresponde à geração de Dylan: não se depara com uma canção dos Beatles, não há uma única composição de Leonard Cohen ou de Paul Simon (Simon & Garfunkel), nenhuma canção dos Velvet Underground, dos The Doors ou de Van Morrison, de Joni Mitchell, de Brian Wilson (The Beach Boys) ou de Chuck Berry. Tudo gente com quem Dylan privou de perto e admira, tendo mesmo referido Berry como o "Shakespeare do rock'n'roll".
A páginas tantas, em observação marginal a uma canção que comenta, Bob Dylan deixa escorregar que um dos modos de avaliar a qualidade de uma música é pela quantidade de versões que outros fizeram dela. Mas mesmo seguindo essa sugestão não se chega a conclusão alguma, pois várias das canções dos ausentes que acabámos de citar geraram milhares de versões: "Yesterday," de Lennon e McCartney deu origem a cerca de três mil e "Hallelujah," de Leonard Cohen, acima das trezentas. Isto deixando, de novo, Dylan fora do concurso, uma vez que as suas canções engendraram, até à data, mais de cinco mil versões.
Em que ficamos, então? Dylan, como é seu costume, faz o que lhe apetece e não se explica, tem até o gosto antigo de frustrar as voltas a quem tenta adivinhar-lhe tendências ou interpretar-lhe motivações. Ensaiemos, na tentativa de buscar o porquê de constarem aqui estas e não outras canções, o continuar a guiarmo-nos pelo peso de alguns números.
Das 66 canções escolhidas para comentário, a maioria foi originalmente lançada no mercado discográfico em single, um modo rápido de divulgar canções que se intuía poder estar destinadas a escalar ao topo das tabelas de êxitos nos dias em que a rádio era o principal veículo de difusão e o patrocínio comercial dos programas exigia uma interrupção da música de tantos em tantos minutos para que fosse passada publicidade. O single, ao contrário do LP (Long Playing), recorrendo a um suporte físico onde cabia apenas um par de canções (uma por face da estreita rodela de vinil) e tendo cada uma dessas faces a duração aproximada de três minutos, era o veículo ideal. Das canções escolhidas por Dylan, 37 (56 %) foram lançadas em single e 27 (41 %) dizem respeito a canções inseridas em LP, o que significa ter ele privilegiado as canções que singraram através do single, formato para consumo imediato e preparado para divulgação via rádio.
Olhar a data em que foram comercializadas estas canções permite-nos, até certo ponto, estabelecer uma conexão entre canções escolhidas/modo de divulgação: mais de metade (60 %) foram lançadas nos anos 50 e 60, época em que Dylan (nascido em 1941) contava entre dez e vinte anos de idade, isto é, estamos perante canções dos primórdios da sua formação musical, quando a rádio era praticamente o único meio para escutar música, sobretudo em local tão remoto como o Minnesota. Para além deste contingente maioritário, cerca de um quarto das restantes canções (26 %) respeitam às décadas de 70 e 80. As canções comercializadas em dias mais próximos de nós (anos 1990 a 2010) são apenas em número de quatro e uma delas ("Nelly Was a Lady") é, até, a versão recente de uma composição escrita em 1849. Igualmente quatro são as canções gravadas entre os anos 20 e 40 do século XX.
Corroborando a importância e influência que a rádio teve em Bob Dylan, relembre-se que ao longo de três anos (2006 a 2009) o homem foi locutor de um programa de rádio de grande sucesso, chamado Theme Time Radio Hour. Como o nome indica, tratava-se de um programa temático e ao longo das suas mais de cem emissões foram glosados temas como nomes de mulher, a bebida, cães, o casamento e o divórcio, o tempo atmosférico, o hábito de fumar, etc. Na sua inconfundível e charmosa voz roufenha, mostrando grande talento como locutor, competia a Dylan ir comentando as canções que fazia ouvir, tecendo considerações aos intérpretes, ao ambiente em que a canção fora composta ou produzida comercialmente; revelando pequenas histórias relacionadas; ou entrelaçando reflexões sobre o tema do dia, o que podia incluir a leitura de poesia alusiva. Algo que, sob forma bastante mais desenvolvida, estruturada, reflectida e, até, mais livre no pensamento, volta a praticar nos capítulos do presente livro. Das 66 canções aqui contadas, cerca de um quarto foi passada nas emissões desse programa e, na sua quase totalidade, nas mesmas versões que Bob Dylan agora comenta.
E, mais uma vez, das mais de mil canções emitidas em Theme Time Radio Hour nenhuma teve como autor o locutor.
. . . .
O que principalmente se encontra ao longo das páginas de A Filosofia da Canção Moderna são descrições, constatações e reflexões (técnicas, existenciais, sociais) feitas em tom coloquial e não poucas vezes tratando-nos por tu, considerações desencadeadas pelas canções escolhidas e que se espraiam aos intérpretes e compositores ou inclusive ao ambiente em que decorreu a génese ou a gravação dessas canções, canções que abarcam todo esse caldo rico e espesso que é a música dita popular: country e folk, blues e rhythm & blues, gospel ou soul; uma mão cheia de rockabilly e rock'n'roll; uma pitada de jazz e de bluegrass. Conte ainda o leitor com a presença vincada e um gosto especial do autor pelos standards que os crooners e o jazz sempre se apressaram a interpretar e a adaptar aos respectivos mundos particulares.
Em alegre convivência e sem ordem aparente (cronológica ou outra), página a página desenrolam-se sob os nossos olhos canções de Elvis Costello e Bing Crosby, Little Richard e The Platters, Elvis Presley e Ray Charles, Hank Williams e Frank Sinatra, Nina Simone e Santana, Judy Garland e os The Who, Rosemary Clooney e os The Clash, entre muitos outros intérpretes, universalmente famosos ou nem por isso. Alguns, raros, terão direito a surgir com canções em mais do que um capítulo, como é o caso de Willie Nelson, Johnny Cash, Elvis Presley, Bobby Darin ou Little Richard. E certos deles, como sucede com Presley, Dean Martin, Johnny Cash ou Sinatra, verão os seus nomes ser amiudamente citados em comentários a canções interpretadas por outros.
Embora dominante nesta viagem, Dylan não se fica unicamente pela música norte-americana: com frequência chama por canções de nascimento europeu, mas não somente as de proveniência britânica, como seria de esperar num músico com as suas origens e língua materna. Para além dessas, há referências persistentes à chanson francesa, mas também à (primeiramente) alemã "Mack the Knife" ou à italiana "Volare (Nel blu, dipinto di blu)." O universo musical de raiz italiana é, aliás, omnipresente: repetidamente, quem lê tropeçará em cantores de voz velada e macia, americanos de nascença mas de ascendência itálica: tal vem a ser o caso com Frank Sinatra, Dean Martin, Bobby Darin, Perry Como, Dion ou Vic Damone.
A leitura evidencia igualmente o fascínio de Bob Dylan pelos crooners e pelos cantores de standards, fascínio já perceptível na fase da carreira em que se passeou quase exclusivamente por géneros como o folk, os blues e o rock, mais compatíveis com os anos que se viviam quando se tornou famoso. Em 1968, o álbum Nashville Skyline causou surpresa no público, pois nunca o repertório ou a voz de Bob Dylan tinham soado antes tão tranquilamente macios, e os críticos prontamente se arrepiaram com o perfume a Sinatra e Dean Martin que se exalava da obra. Indiferente, no disco seguinte (Self Portrait, 1970) Dylan vestiria de versões pessoais um renque de canções populares, uma das quais "Blue Moon," o clássico de 1934 de Hart e Rodgers tornado célebre pelas vozes de Mel Tormé, Billy Eckstine e Frank Sinatra, e de que Dylan escolheria a interpretação de Dean Martin para comentar no presente livro. Prestando tributo ao seu gosto duradouro por clássicos da música de entretenimento, três dos quatro álbuns mais recentes de Bob Dylan (Shadows in the Night, 2015; Fallen Angels, 2016; e Triplicate, 2017), são totalmente preenchidos por tentativas em recriar nada mais nada menos do que cinquenta e dois standardsda música popular das décadas de 30, 40 e 50 do século XX.
Mas na órbita do rol das principais canções escolhidas gravitam centenas de outras músicas e de outros autores e intérpretes a que Dylan se irá referindo, seja porque se entrelaçam com as canções alvo de comentário seja para ilustrar a teoria (que lhe é querida e uma constante na música folk) de que todas as canções—como todas as obras de arte—vão nascendo umas das outras, e de que tudo influencia tudo. A esta luz surgem no texto referências à influência de linhas corais da Paixão Segundo S. Mateus, de Johann Sebastian Bach, em "American Tune," de Paul Simon, ou de um andamento de uma sinfonia de Rachmaninoff sobre a melodia de "Never Gonna Fall in Love Again," de Eric Carmen, sucesso na voz do próprio compositor, mas igualmente nas de Tom Jones ou Frank Sinatra.
Para além da imitação como fonte de criação, Dylan discorre sobre uma outra questão, também frequentemente discutida a propósito da música cantada: o que é mais importante numa canção, a melodia ou as palavras? Como seria de esperar, Bob Dylan não toma partido por nenhum dos polos da questão, mas não deixa de trazer à colação, como contraponto ao alemão—idioma, segundo ele, apropriado a festivais de cerveja—a maravilhosa qualidade plástica e melódica da língua italiana, ou de ir deixando escapar como está longe de ser essencial compreender uma só palavra de português para sentir que o fado é um género musical que "pinga tristeza". Dentro deste tópico das letras, Dylan lembra ainda que as palavras usadas para servir uma canção não devem sujeição à lógica da linguagem, escrita ou falada, e que, ao invés do que se deseja a um texto ou a um diálogo, é musicalmente adequado repetir e voltar a repetir as mesmas palavras, exemplificando o paradoxo com versos das canções "Black Magic Woman," e "Keep My Skillet Good and Greasy."
Ocasionalmente, Bob Dylan nem ao menos perde tempo a comentar a canção que escolheu comentar, desprezando-a ou ignorando-a totalmente e lançando apenas mão ao nome da canção para considerações relacionadas com esse nome, como sucede em "On the Road Again," de que usa o título unicamente para se alongar em cogitações sobre a sua experiência numa banda de música itinerante; em "Saturday Night at the Movies," em que aproveita a boleia para nos falar longamente de cinema; ou em "I Got a Woman," em que fabrica um pequeno conto cujo entrecho é o oposto do sentido da canção original e no qual o ponto de ligação entre ambos é o solo de saxofone que o protagonista principal batuca no volante do automóvel, ao mesmo tempo que vai ouvindo essa canção de Ray Charles.
Assim, num fraseado inteligente, divertido ou provocatório, pleno de duplos sentidos (não poucos deles musicais e dizendo respeito tanto à melodia como à rima), vai Dylan delineando e desenrolando a narrativa, servindo-se de canções alheias para discorrer sobre temas que, desde sempre, lhe são queridos: a estrada, o ir-se embora e a nostalgia da terra natal; os fora-da-lei e os seres solitários e à margem da sociedade; a hipocrisia; o valor da frugalidade na existência; as mulheres e o amor impossível; o cinema, a literatura e, claro, a música e os temperamentos de quem a pratica. E, igualmente, o tempo e o efémero da fama e do sucesso, a invencível derrota sempre associada ao desfolhar dos dias.
Embora raramente se revele pessoalmente e directamente, ao seguir a leitura torna-se perceptível de onde veio, no que se lhe prende o olhar e a atenção, o que gosta e o que menospreza este homem, descendente de judeus de Odessa e nascido em 1941 em Duluth, pequena cidade mineira do Minnesota, como Robert Zimmerman.
Quanto às canções que decidiu comentar, sem o incómodo de explicar porque o faz, uma coisa é certa: após a leitura—e sendo-nos ou não familiares anteriormente—dificilmente as voltaremos a escutar com os mesmos olhos.
. . . .
Todas as 66 canções podem ser encontradas no Spotify ou no YouTube nas versões que Dylan optou por comentar. A excepção é "Nelly Was a Lady," em que Bob Dylan recorreu a uma versão interpretada por Alvin Yongblood Hart (2004) e da qual, à data, não se consegue acesso nesse site. Mas, desta canção, composta por Stephen Foster em 1849, podem ser ali ouvidas várias outras interpretações.
No que diz respeito às letras das canções, é fácil encontrá-las na Internet, mas recomenda-se que, sempre que possível, se prefiram sites oficiais na consulta, uma vez que não é raro depararmo-nos com versões apressadamente transcritas e não correspondendo ao original, não só na transcrição das palavras, mas particularmente na disposição métrica dos versos das estrofes.
Listagem das canções comentadas e intérpretes
pedro serrano, 22 outubro 2022.
06 maio 2022
ILHA COM VISTA PARA O MAR
Nesses dias de 1979 e 1980, a ilha não possuía nem porto de mar nem aeroporto, pelo que o único modo de ali chegar e dali partir era o helicóptero, usando um serviço que a Força Aérea assegurava.
Por lá, entre os 25 e os 26 anos de idade, passei um ano, desempenhando funções clínicas em todas as estruturas de saúde da ilha, maioritariamente no seu hospital, mas também fazendo consultas em freguesias periféricas e assegurando uma urgência de 24 horas dia sim dia não.
Escrever este livro em 2018, baseado em acontecimentos que tinham ocorrido quase quarenta anos antes, sem apoio de um diário ou de notas soltas tomadas em algum caderno, foi um grande desafio para a memória. Mas, como já aprendera de outras situações, a memória tem recursos inesperados e quando orientamos a atenção interior para determinado tema ou período da nossa vida, muito lentamente no início, começam a desprender-se pedaços inteiros dos fundos da mente, que ali estavam soterrados sob outras camadas posteriores de acontecimentos, pedaços que vêm à tona da consciência e que, nesse degelo, vão soltando nos dias subsequentes outros pequenos fragmentos: detalhes, fisionomias, tiques, frases ditas que nunca mais tínhamos relembrado, até fragmentos de diálogos.
Esse processo permitiu-me reconstruir o que foi esse meu ano insular, olhado pelos olhos da idade que então tinha, mas perspectivado na escrita pela lente dos anos que entretanto decorreram, da síntese que a passagem do tempo permitiu.
Curiosamente, o livro viria a ganhar um prémio na categoria Ficção (Prémio Fialho de Almeida, 2019), o que bastante me surpreendeu, pois tinha-o candidatado nesse concurso na categoria "ensaio", que era uma das duas categorias possíveis e que achei mais adequada tendo em conta o tipo de narrativa. Mas o Júri entendeu de outro modo e penso que consigo perceber o seu raciocínio: a narrativa é formatada como uma história plena de acção e de diálogos vivos, com alguma análise psicológica de personagens e a voz interior - conhecida por corrente de pensamento - à mistura e, como tal, bem poderia passar por ser uma novela, embora, na realidade, seja mais uma crónica. Aliás, por muito real que seja o que é narrado, essa narrativa surgirá sempre aos olhos do leitor como uma história que bem podia ter sucedido ou não.
Mas, sim, tudo o que conto sucedeu e somente procedi à concentração dramática dos eventos, tomei algumas liberdades em relação à manipulação do tempo cronológico e alterei alguns nomes, para que certas pessoas, algumas já mortas outras a quem não me refiro com meiguice, não fossem ou não se sentissem demasiado identificadas.
O livro tem 217 páginas e está, desde o Dia Mundial do Livro de 2022, à venda numa livraria perto de si. De qualquer maneira, se o quiser comprar sem sair de casa e usando os serviços da editora (Gradiva), basta-lhe carregar no link fornecido a seguir:ilha-com-vista-para-o-mar
Quem estiver interessado, poderá também ver uma entrevista sobre o livro, feita pela Gradiva, carregando neste link:
https://www.youtube.com/watch?v=od0SXTETi1c
03 abril 2022
THE PHILOSOPHY OF MODERN SONG (A Filosofia da Canção Moderna) -BOB DYLAN
Na nova obra, Dylan discorre, em linguagem coloquial e aparentemente ao correr da pena, sobre 66 canções, 60 % das quais êxitos dos anos 50 e 60, época em que Bob Dylan tinha entre dez e vinte anos, ou seja: são canções dos primórdios da sua formação musical, quando a rádio era o principal veículo para ouvir música. Há também canções dos anos 20 e 40, e um quarto delas são dos anos 70 e 80.
Nenhuma das canções escolhidas por Dylan para comentar é da sua autoria e, surpreendentemente, o leitor não encontrará nas cerca de 300 páginas do livro uma só composição dos Beatles ou de Simon & Garfunkel, nem sequer de Leonard Cohen ou dos Velvet Underground/Lou Reed, nomes incontornáveis da música popular do século XX, que Bob Dylan, como é do conhecimento público, aprecia e louva, para além de os ter conhecido de perto.
O que, sobretudo, o leitor encontrará na A Filosofia da Canção Moderna são descrições, constatações e reflexões (técnicas, existenciais), feitas em tom leve e por vezes tratando-nos por tu, em torno dos cantores e dos compositores, ou do ambiente em que decorreu a génese ou a gravação dessas canções, canções que abarcam o universo da música dita popular: country e folk, gospel ou soul; alguns blues, uma mão cheia de rock'n'roll, algum jazz e, ainda, uma presença e um gosto especial pelos standards de que o jazz e os crooners se apressaram a tomar conta.
Em alegre convivência e sem ordem aparente (cronológica ou outra), página a página desenrolar-se-ão sob os nossos olhos canções de Elvis Costello e Bing Crosby, Little Richard e Elvis Presley, The Platters e Ray Charles, Hank Williams e Frank Sinatra, Nina Simone e Santana, Judy Garland e os The Who, Rosemary Clooney e os The Clash, entre muitos outros intérpretes. Alguns, raros, terão direito a surgir comentados por mais do que uma canção, como é o caso de Willie Nelson, Johnny Cash, Elvis Presley, Bobby Darin e Little Richard (com direito a figurar na capa do livro). Quem conheça os gostos e o pensamento de Dylan um pouco de mais perto, saberá que a escolha não é de estranhar, embora, como lhe é costumeiro, o autor nunca se explique sobre as opções que faz.
Nesta viagem, Dylan chama também as canções de origem europeia, mas não apenas as de proveniência britânica, como seria mais de esperar num músico com as suas origens. Para além destas, encontraremos referências constantes à chanson francesa, mas também à italiana "Volare", de Domenico Modugno; e à, primeiramente alemã, "Mack the Knife". Amiúde, os leitores tropeçarão nos cantores de voz velada e macia, americanos mas de origem marcadamente italiana, como é o caso de Frank Sinatra, Dean Martin, Tony Benett, Perry Como ou Vic Damone.
Mas na órbita deste universo, aparentemente eclético, das 66 canções escolhidas gravitam, nas linhas escritas por Dylan, centenas de outras músicas, que ele irá referindo ou porque se entrelaçam com as canções que escolheu para comentar ou para ilustrar a teoria (que lhe é muito querida e é uma constante da música folk) de que todas as canções vão nascendo umas das outras e de que tudo influencia tudo. Neste contexto surgem no texto referências à influência de linhas corais da Paixão Segundo S. Mateus, de João Sebastião Bach, sobre "American Tune", de Paul Simon, ou de um andamento de uma sinfonia de Rachmaninoff sobre a melodia de "Never Gonna Fall in Love Again", de Eric Carmen, que foi um sucesso nas vozes do próprio compositor, de Tom Jones ou de Frank Sinatra.
Para além da demonstração da imitação como fonte de criação, Dylan glosa um outro item, também frequentemente discutido a propósito da música cantada: o que será mais importante numa canção, a melodia ou a letra? Bem, Bob Dylan não toma, como seria de esperar, partido por nenhum dos polos da questão, mas não deixa de nos recordar, em contraponto do alemão - idioma apropriado a festivais de cerveja, a maravilhosa qualidade plástica e melódica da língua e das vogais italianas, ou de ir deixando escapar não ser essencial compreender uma palavra de português para se perceber que o fado é um género musical que "pinga tristeza".
Em Portugal, em edição simultânea com a americana, A Filosofia da Canção Moderna será traduzida por Angelina Barbosa & Pedro Serrano, sob a responsabilidade editorial da Relógio d'Água, editora que tem tomado a seu cargo a edição da obra de Mr. Robert Zimmerman, um descendente de judeus de Odessa mais conhecido entre o público como Bob Dylan.
Notas da imprensa sobre o livro (março 2022):
11 março 2022
8 DIAS EM 2020
Explicou que se chamava Joana Bernardo, que me contactara por sugestão de amigo comum, e que tinha a ideia de promover um livro em que uma série de pessoas contaria uma semana do seu ano de 2020, uma espécie de diário do ano fatiado entre vários interlocutores. Quereria eu ficar com uma dessas semanas?
Depois, enquanto eu ia lançando perguntas para melhor perceber o projecto, tal como se concretizaria em termos editoriais e o que se esperava da minha escrita, ela foi contando que trabalhara, até há alguns dias atrás, como locutora na Radio Radar (de que nunca ouvira falar, pois raramente ouço rádio) e que, em 2017, lançara um livro chamado 30 Anos, 8 Dias, no qual uma alcateia de quase-ex-jovens discorria sobre o que era ter essa idade. Fora, precisamente, esse primeiro livro que lhe dera a ideia de se lançar agora num outro, que se chamaria, provavelmente, 8 Dias em 2020, e em que o motor da narrativa seria o contexto pandémico e de como tinham as pessoas convidadas atravessado, quotidianamente, uma semana desse tempo.
Disse "sim" durante esse primeiro telefonema, pois simpatizei com a ideia e gosto de trabalhar por encomenda e balizado por um prazo: coube-me a semana de 28 de Dezembro a 4 de Janeiro, e teria de entregar as minhas páginas até ao final do mês de Janeiro de 2021. Como, ao longo da conversa, me apercebi que os candidatos a diarista, que ela já arrebatara, provinham, maioritariamente, da atmosfera artística e da área da comunicação social, perguntei se não acharia boa ideia - uma vez que o tema dominante das experiências iria ser como viver sob a ameaça de uma doença contagiosa - ter no grupo, para além de mim, mais gente da área da saúde. Ela achou a achega interessante e acabei por lhe sugerir o nome de três médicas (uma viria a desistir, como aconteceu a outra gente ao longo do trajecto) e uma antropóloga urbana com longa experiência de trabalho na área da saúde e da cooperação.
Martelei o meu texto, cumpri os dias que me tinham sido destinados e o prazo de entrega e não pensei muito mais nisso.
Longos meses mais tarde, mas ainda durante 2021, a Joana escreveu a dizer que encontrara editora (Almedina), que as negociações para a publicação estavam bem encaminhadas e que o livro sairia ainda antes da Primavera de 2022, de modo a comemorar os dois anos portugueses da pandemia: Fevereiro 2020/Fevereiro 2022.
Assim foi, o livro saiu da tipografia para os escaparates e, para além das livrarias (particularmente Almedina e Fnac) quem o quiser comprar pode fazê-lo directamente no site da editora (carregue aqui:https://bit.ly/8Dias_2020).
A obra tem 245 páginas, custa quinze euros, vinte colaboradores e os textos, intercalados por notícias de jornal que fizeram manchete nesses dias, variam entre o "`à escovinha" (uma ou duas páginas) e as quinze ou mais, como é o caso do meu. O livro encerra-se com um epílogo, um bonito texto abrangente, do punho da própria coordenadora do projecto, onde Joana Bernardo perspectiva a pandemia numa fase mais avançada da sua evolução (Agosto de 2021), reforçando a coesão de tudo quanto estava nas páginas anteriores e recorrendo a uma linha discursiva em que floresce um humor fininho e simpaticamente auto-depreciativo.
Agora estamos em Março de 2022, a pandemia fina-se (como tradicionalmente sucede a uma pandemia ao fim de dois, dois anos e meio) e um ditador russo resolveu expulsar da TV os comentaristas e especialistas em covid19 que, como pulgas ou cogumelos, tinham, do nada, medrado nos ecrãs. Foram substituídos por especialistas geoestratégicos e militares, mas o resultado geral não é melhor.
Termino, deixando aqui um cheirinho do texto que escrevi para 8 Dias em 2020, apenas umas linhas para abrir o apetite e, se, por acaso, quiser ler o resto, compre o livro, porra!
Joana Bernardo (2017). |
3 de Janeiro
Para além de equitativamente crédula, Sónia tem uma costela paranoica e sente atracção por teorias da conspiração. Já achou que o vírus tinha sido inventado por um laboratório chinês e quando lhe perguntava com que intenção ou vantagem os chineses o teriam feito, respondia:
"Sei lá, como queres que saiba com tanta informação contraditória?! Para controlar o mundo, suponho; venderem-nos ainda mais coisas..."
"Mas não achas que seria um perigo bastante grande, lançar assim, por aí fora, um ser microscópico que se pode descontrolar e vir a atingir os próprios; paralisar o mundo?"
Ela não gastou demasiado tempo a pensar nos chineses e se o vírus nascera num mercado ou num laboratório, pois, entretanto, ficara fascinada pelas gravações áudio, anónimas, onde se ouvia gente a dizer "trabalho num hospital da área da grande Lisboa e há mortos por todos os lados, acumulados nas morgues e nos corredores". Mas hoje, que as primeiras caixas fumegantes chegaram por Badajoz, as ansiedades e dúvidas dela(s) estão todas apontadas ao frenesi das vacinas. Sónia, para além de comentar o bom-gosto da Ministra da Saúde a vestir-se, é de opinião de que a vacina da Moderna tem por principal finalidade tornar o Bill Gates ainda mais rico do que o que é e, por isso, não que ser inoculada com essa. Chegou a minha vez de perguntar:
"Tu achas? Não te apercebes que é já rico que chegue? Tanto quanto me parece, ele, precisamente, anda a experimentar como se ver livre de algum do seu muito dinheiro de uma forma útil, e deu em filantropo, um filantropo inteligente; tem acontecido a muitos ao longo da história..."
Mas Sónia já de desinteressou de Bill e Melinda Gates: que saber o que poderá fazer para poder vir a escolher a vacina anti-Covid19 que mais lhe apetecer:
"Não quero a da Moderna e, devo confessar-te, que tenho medo da vacina da Pfizer. Não achas que pode ser um perigo muito grande administrar a uma pessoa um produto que é mantido a uma temperatura assim tão baixa? Nenhuma de nós é um urso polar!"
"Mas eles não ta vão inocular a menos 70 graus", informo, "aquilo é posto a descongelar até atingir a temperatura ambiente".
"Mesmo assim... Pode provocar algum nódulo frio, uma espécie de trombose ou tromboflebite; sei lá... E o choque anafilático? Não achas que tenho um risco acrescido?"
"Tu?! Porquê?"
"As minhas enxaquecas, a minha rinite... O imuno-alergologista diz que poderiam ser de base alérgica."
"Sim, mas nunca te descobriu nada! E não sei porque é que vocês se estão a preocupar agora com isso? Tens 31 anos, a Sandra 38 ou 39; nenhuma de vocês pertence a nenhum grupo de risco; vai demorar séculos até que chegue a vossa vez. E, quando isso acontecer, não vão poder escolher a marca que querem: vão levar a que vos estiver destinada."
"Tu achas?", diz ela, "a Sandra tinha pensado em escrevermos para a Astra-Zeneca..."
"Acho boa ideia", louvei, "já agora escrevam também ao Putin."
"Não se pode falar contigo...", censura.
......................................... (continua) .............................
01 junho 2021
BRIDESHEAD REVISITADO
![]() |
Charles Ryder (Jeremy Irons), Sebastian Flyte (Anthony Andrews) e Aloysius. |
As voltas que o mundo dá! Quem se atreveria a sonhar que seria a TV, que nos anos 70, para não dizer antes, quase matou o cinema, dizer que seria ela a retomar o fio à produção das obras de grande fôlego cinematográfico, fosse sob o formato do filme tradicional ou o do seriado. A longa metragem The Irish Man (O Irlandês, 2019), de Scorsese, produzida para a Netflix, é um belo exemplo disso, o filme A Rainy Day in New York (Um dia de Chuva em Nova Iorque, 2019), de Woody Allen, produzido para a Amazon, é um outro. Já nas minisséries ou nas séries atravessando várias temporadas, podem citar-se abundantes exemplos, encomendados ou produzidos por canais de streaming como a HBO, a Amazon Prime ou a Netflix, entre outros.
No que diz respeito às séries, a capacidade financeira destas companhias e a aposta (sempre tímida) em abordagens inovadoras ou em produtos oriundos de países habitualmente pouco representados nas grandes redes de distribuição (como a Alemanha, a Turquia, a Colômbia ou a Índia), possibilitou algo semelhante à transformação que, nos anos 60, Bob Dylan, e outros que se lhe seguiram, introduziram na música popular ao puxar a narrativa sofisticada para dentro dela: tornou-se então possível contar histórias através de meios até aí condicionados pela concepção e pela duração, na música os clássicos 3 minutos, para que a publicidade pudesse ser posta no ar nos intervalos entre duas canções. No cinema, por seu lado, a duração clássica do filme raramente ultrapassava os 90 minutos que uma alma aguenta estar sentada numa cadeira (que não corresponde ao seu sofá em casa) sem se levantar para ir ao quarto-de-banho ou reabastecer-se de pipocas.
Os anos 90 e 2000 foram, a nível televisivo, ricos neste tipo de experiências ficcionais que apostaram em enredos complexos de travo literário e séries como Twin Peaks, de David Lynch (ABC, 3 temporadas: 1990, 1991, 2017), Six Feet Under (Sete Palmos de Terra, 5 temporadas produzidas entre 2001 e 2005 para a HBO), e Os Sopranos (1999-2007, 6 temporadas, também sob chancela HBO) trouxeram-nos, pela mão do pequeno ecrã, histórias de densa espessura narrativa, bem contadas, bem representadas e bem filmadas, que nos arrastaram por longas horas e, até, anos de prazer, não sendo fácil lobrigar nelas - sobretudo nas duas últimas citadas - o decair de qualidade e o cansaço que grande parte das séries exibe nos últimos capítulos, e de que as americanas Breaking Bad, House of Cards, Madmen ou Homeland constituem decepcionantes exemplos, empobrecidas, sobretudo, pela exaustão da capacidade inventiva dos argumentistas e pelas forçadas reviravoltas do enredo, num momento do campeonato em que o espectador já se presta com mesquinha generosidade ao princípio da suspensão da realidade.
2. Brideshead Revisited: a série e o romance
Dito isto, e focando-me somente nas séries ficcionais, interessa-me recuar até onde tudo isto poderá ter tido o seu começo ou, dito de outro modo, identificar qual poderá ter sido o primeiro exemplo deste fenómeno de transposição da qualidade narrativa associada ao cinema e ao grande ecrã para a TV. Sem espanto, a resposta vem de Inglaterra e do longínquo ano de 1981, e resultou da adaptação, primeiro planeada para durar 6 horas, distribuídas por 6 episódios, do romance Brideshead Revisited (Brideshead Revisitado) de Evelyn Waugh, título desnecessariamente traduzido por Reviver o Passado em Brideshead (Moraes, 1982), e que a edição portuguesa em DVD da série (Prisvideo, 2004) manteria.
![]() |
Capa e contracapa 1.ª edição portuguesa livro, 1982 |
O romance que deu origem a esta adaptação para TV, foi escrito em 1945, no termo da Segunda Guerra Mundial, e a sua realização foi entregue a (Sir) Michael Lindsay-Hogg, com quarenta anos de idade em 1979, quando tudo se iniciou, um realizador e homem de TV experimentado. Mas a produção de Brideshead Revisited foi azarada desde o começo e, na sequência de greves e atrasos vários na produção, Lindsay-Hogg teve de voar para outro projecto com o qual já se se encontrava contratualmente comprometido, deixando menos de uma hora de filme (os pedaços menos interessantes, diga-se) nas mãos dos produtores, a companhia televisiva independente ITV/Granada, que se associara à americana PBS na posterior divulgação do projecto. Quem acabou por herdar a responsabilidade de dirigir a enormidade do que faltava foi Charles Sturridge, um inglês de 28 anos com uma ténue experiência como actor, mas nada que, de longe ou de perto, o habilitasse a dirigir monstros sagrados da representação como (Sir) Laurence Olivier, (Sir) John Gieguld, Mona Washborne, Sephane Audran, ou Claire Bloom*.
É o próprio Charles Sturridge que, consciente da sua imberbe experiência, conta os terrores por que passou, os dois maiores sendo o de não dispor de um guião cinematográfico suficientemente detalhado para o que se ia filmar, e o outro, com a breve excepção de Mona Washborne (com quem contracenara, como actor, em If, de Lindsay Anderson, 1968), o não conhecer, nem ser reconhecido por nenhum dos outros actores já contratados para a série. A estas duas inseguranças acrescentou-se o facto, muito prosaico, de Jeremy Irons, o personagem principal, ter um contrato assinado para dividir com Meryl Streep o papel cimeiro no filme A Amante do Tenente Francês (de Karel Reisz, 1981) e todos os atrasos, entretantos ocorridos com Brideshead, fizeram chegar a data de arranque de filmagens deste filme, pelo que durante grande parte da realização da série Irons teria de ser, numa base semanal, partilhado entre o plateau da A Amante do Tenente Francês e o de Brideshead!
Mas, apesar de todos os atrasos e sobreposições, as filmagens decorreram sob bons auspícios e até Laurence Olivier, conhecido por ser um tipo difícil e por vezes impossível, foi deliciosamente doce com o novel realizador, exigindo deste que o tratasse por Larry quando o outro se preparava para o diferenciar com um "Sir". Para tudo isso, continua a confessar Sturridge, terá contribuído aquele que, embora de pedra, é um dos principais personagens da série: o palácio de Castle Howard, onde decorre e foi filmada grande parte da acção. Castle Howard, no Yorkshire, há séculos nas mãos da família Howard e o cenário mental que Evelyn Waugh escolheu para situar o seu romance, foi onde ficaram instalados alguns dos protagonistas durante vários meses das filmagens (designadamente Claire Bloom e Jeremy Irons), o que permitiu que os actores e a relativamente pequena equipa de filmagem se deixassem embeber pelo espírito do local e estreitassem relações entre eles.
![]() |
Laurece Olivier recebe instruções de Charles Sturridge. |
E nunca mais o espectador consegue escapar ao tom encantatório de Irons que, com uma nostalgia gémea da que perpassa o romance O Leopardo (de Giuseppe Tomasi de Lampedeusa, 1959, e levado ao cinema por Luchino Visconti em 1963), nos conta sobre um mundo aristocrático, a que ele presenciou, de dentro, a queda e o desaparecimento. Tudo perece, tudo muda, a condição necessária é apenas a de se durar o número de anos suficiente para ser testemunha. É sobre isto que se debruça Brideshead Revisited, o romance e a série, e, diria, o único pormenor irritante, deriva, como por vezes sucede, de os escritores quererem demonstrar ao leitor uma qualquer tese, neste caso a história da conversão a uma religião, o catolicismo, de um narrador no início agnóstico. Nesse aspecto, a insistência de Waugh traz-nos à lembrança Graham Greene, que, precisamente, se consegue tornar maçador quando insiste na mesmíssima tecla da iluminação divina (vide, por exemplo, O Nó do Problema ou O Poder e a Glória).
3. Brideshead em Portugal
Desde os dias, no Outono de 1982 (logo seguindo a exibição da série no canal 2 da RTP), em que a Moraes deu à estampa a tradução do romance de Waugh, uma edição a que é difícil pedir maior mau-gosto para a capa escolhida e para o texto apressado e absurdo da contracapa, a Relógio d'Água encarregou-se de uma nova edição em 2002, também ela não muito inspirada na escolha da artcover, edição recentemente reimpressa aproveitando, para a nova capa, imagens da sequela fílmica a que o romance foi sujeito. Como acontece com a maior parte das insistências, esta mais valia não ter visto a luz do dia (Brideshead - Desejo e Poder, realizado por Julian Jarrold, 2008), pois, sobretudo a quem viu a série original, é quase doloroso presenciar a escolha dos actores, os maneirismos e o mau-gosto de tudo aquilo. Concedemos que não seria fácil fazer diferente, pois, como dizia Charles Sturridge, o realizador do projecto de 1981, a série vive do detalhe, mais até do que da acção, e não se consegue chegar a tanto com as menos de 12 horas e os 11 episódios para que cresceu o projecto inicial.
Apesar da fortuna que custou, dos quase dois anos de produção, Brideshead Revisited foi um enorme sucesso e tornou-se uma série de culto em todo o mundo, inclusive em Portugal, e muita gente, ao explorar a restante obra literária de Evelyn Waugh, ficou surpresa ao descobrir que o autor era, sobretudo, um escritor satírico. É verdade, Brideshead Revisited, praticamente a sua única obra 'séria' e o seu maior sucesso, é uma excepção à regra.
4. Brideshead e Os Maias
Num artigo no Primeiro de Janeiro de 24 de Julho de 2006, A. Campos Matos, especialista em Eça de Queiroz e autor de um conhecido dicionário sobre o escritor português, lamenta que Os Maias não tenham sido levados ao ecrã pelos ingleses, referindo-se precisamente ao magnífico resultado final revelado por Brideshead Revisited e, simultaneamente, ao desastre da produção telenovelesca do romance português, perpetrada em 2000 pela cadeia de TV brasileira Globo, que, apesar de ter gasto um milhão de contos no assunto, assassinou a obra de Eça, deixando unicamente uma má memória do feito.
![]() |
Cenário do filme Os Maias, de João Botelho. |
À época, Campos Matos, por natural incapacidade em prever o futuro, não podia ainda discorrer sobre os tratos de polé a que, oito anos mais tarde (2014), o realizador João Botelho submeteria a mesma obra, recorrendo, por falta de dinheiro, por preguiça crónica, ou por ambas as coisas, a cenários pintados para nos fazer crer na Lisboa oitocentista de Eça. É claro que, a posteriori, a desgraça seria retocada retoricamente pela brocha dos argumentos de que o recurso a tamanha artificialidade fazia contrastar a realidade da história, e outras estopadas de cartilha, nenhuma das quais dava suficiente cobertura à deficiente iluminação, ao péssimo som, à dicção a pedir legendas e à falta de naturalidade com que os actores e o cinema português geralmente nos brinda, não obstante as abundantes estrelas dos críticos locais e das palmas que o cinema de paragens exóticas sempre obtém em festivais internacionais.
5. Notas finais: actores e personagens em Brideshead
Jeremy Irons é o actor que produz maior impacto no espectador, particularmente num primeiro visionamento da série. Isto deve-se, para além da excelente representação, quer ao papel como Charles Ryder, em torno do qual se estabelece e edifica a perspectiva de toda a história, quer à sua voz, que atravessa, invade e sustenta a imagem do primeiro ao último episódio.
![]() |
Cara (Stephane Audran). |
A estes mestres da representação é forçoso juntar a actriz inglesa Claire Bloom (no papel da fria, premeditada e manipuladora Lady Marchmain), actriz por quem se apaixonara Charles Chaplin em Limelight (Luzes da Ribalta, 1952) e, à época da série, ainda casada com o domesticamente intratável escritor norte-americano Philip Roth. Claire Bloom era já uma velha conhecida de Laurence Olivier, com quem contracenou no filme Ricardo III (realizado por Olivier em 1955), e de John Gieguld, também actor em Ricardo III, sob cuja direcção cénica, ou parceira na contracenação, pisou vários palcos ingleses, designadamente em peças de Tchékhov.
![]() |
Edward Ryder (John Gieguld). |
Sebastian, foi entregue ao actor Anthony Andrews, que o interpreta igualmente de modo magnífico, na sua beleza e atitude um tanto frívola, mas que, igualmente, sabe transmitir ao espectador o lado negro, angustiado e decadente do Sebastian Flyte dos últimos dias.
![]() |
Claire Bloom e Laurence Olivier (Ricardo III). |
Talvez só num segundo ou terceiro visionamento da série, de tal modo esta é rica em detalhes e micro-detalhes, se conseguirá libertar a atenção sobre o belíssimo desempenho da actriz Phoebe Nicholls no papel de Cordelia Flyte, a mais nova dos Flyte, obviamente ofuscada, por exigência dramática do enredo, pela presença feminina de Diana Quick (Julia Flyte, a irmã mais velha). À época com 22 anos, Phoebe veste a pele, nos primeiros episódios da série, de uma rapariguinha no começo da adolescência, para surgir, nos últimos episódios, como uma jovem mulher, a quem a juventude foi praticamente roubada pelas circunstâncias que a rodeavam e muito consciente de como os anos passaram por si.
![]() |
Cordelia Flyte (Phoebe Nicholls). |
Como curiosidade final, refira-se que Celia Ryder (casada com Charles Ryder e irmã de Boy Mulcaster) é interpretada por Jane Asher, aquela que foi a primeira mulher de Paul Mc.Cartney. Com 34 anos, e há muito divorciada do Beatle na altura das filmagens, Jane espelha na perfeição do seu desempenho o retrato da socialite ideal, uma mulher supérflua que tudo sabe fazer e faz para promover a imagem pública do marido, saltitando à superfície dos acontecimentos com um alheamento e uma frieza que se adivinham tão temíveis como as manobras predatórias de um louva-a-deus.
Elenco principal:
Jeremy Irons (Charles Ryder)
Anthony Andrews (Sebastian Flyte)
Diana Quick (Julia Flyte)
Laurence Olivier (Lord Marchmain)
Claire Bloom (Lady Teresa Marchmain)
Stephane Audran (Cara)
John Gieguld (Edward Ryder)
Mona Washbourne (Nanny Hawkins)
Phoebe Nicholls (Cordelia Flyte)
Nickolas Graces (Anthony Blanche)
Jane Asher (Celia Ryder)
Simon Jones (Lord Brideshead)
John Grillo (Mr. Samgrass)
Charles Keating (Rex Mottram)
Jeremy Sinden (Boy Mulcaster)
John Le Mesurier (Father Mowbray)
![]() |
Celia Ryder (Jane Asher). |
Realizadores: Charles Sturridge (esmagadora maioria dos episódios) e, acessoriamente, Michael Lindsay-Hogg.
Produtor : Derek Granger.
Adaptação do livro: John Mortimer, posteriormente Charles Sturridge e Derek Granger.
Música: Geoffrey Burgon. É inesquecível e cola-se à história a música original, composta por Geoffrey Burgon, invocando a música para metais de Mozart ou Haydn, o que se adequa como uma luva ao ambiente oitocentista de Howard Castle ou de Oxford.
Estreia da série: 12 Outubro 1981 (UK); 18 Janeiro 1982 (USA); Portugal: ignorado (talvez outono de 1982).
Suporte: 4 DVD, durando aproximadamente 12 horas no seu total e distribuídos por 11 episódios. O episódio-piloto e o episódio final têm cerca de 100 minutos de duração e cada um dos outros dura, aproximadamente, 52 minutos.
*Recordações de Claire Bloom sobre as filmagens de Brideshead Revisited podem ser apreciadas na excelente autobiografia da actriz Leaving a Doll's House, publicada pela Little, Brown em 1996.