Explicou que se chamava Joana Bernardo, que me contactara por sugestão de amigo comum, e que tinha a ideia de promover um livro em que uma série de pessoas contaria uma semana do seu ano de 2020, uma espécie de diário do ano fatiado entre vários interlocutores. Quereria eu ficar com uma dessas semanas?
Depois, enquanto eu ia lançando perguntas para melhor perceber o projecto, tal como se concretizaria em termos editoriais e o que se esperava da minha escrita, ela foi contando que trabalhara, até há alguns dias atrás, como locutora na Radio Radar (de que nunca ouvira falar, pois raramente ouço rádio) e que, em 2017, lançara um livro chamado 30 Anos, 8 Dias, no qual uma alcateia de quase-ex-jovens discorria sobre o que era ter essa idade. Fora, precisamente, esse primeiro livro que lhe dera a ideia de se lançar agora num outro, que se chamaria, provavelmente, 8 Dias em 2020, e em que o motor da narrativa seria o contexto pandémico e de como tinham as pessoas convidadas atravessado, quotidianamente, uma semana desse tempo.
Disse "sim" durante esse primeiro telefonema, pois simpatizei com a ideia e gosto de trabalhar por encomenda e balizado por um prazo: coube-me a semana de 28 de Dezembro a 4 de Janeiro, e teria de entregar as minhas páginas até ao final do mês de Janeiro de 2021. Como, ao longo da conversa, me apercebi que os candidatos a diarista, que ela já arrebatara, provinham, maioritariamente, da atmosfera artística e da área da comunicação social, perguntei se não acharia boa ideia - uma vez que o tema dominante das experiências iria ser como viver sob a ameaça de uma doença contagiosa - ter no grupo, para além de mim, mais gente da área da saúde. Ela achou a achega interessante e acabei por lhe sugerir o nome de três médicas (uma viria a desistir, como aconteceu a outra gente ao longo do trajecto) e uma antropóloga urbana com longa experiência de trabalho na área da saúde e da cooperação.
Martelei o meu texto, cumpri os dias que me tinham sido destinados e o prazo de entrega e não pensei muito mais nisso.
Longos meses mais tarde, mas ainda durante 2021, a Joana escreveu a dizer que encontrara editora (Almedina), que as negociações para a publicação estavam bem encaminhadas e que o livro sairia ainda antes da Primavera de 2022, de modo a comemorar os dois anos portugueses da pandemia: Fevereiro 2020/Fevereiro 2022.
Assim foi, o livro saiu da tipografia para os escaparates e, para além das livrarias (particularmente Almedina e Fnac) quem o quiser comprar pode fazê-lo directamente no site da editora (carregue aqui:https://bit.ly/8Dias_2020).
A obra tem 245 páginas, custa quinze euros, vinte colaboradores e os textos, intercalados por notícias de jornal que fizeram manchete nesses dias, variam entre o "`à escovinha" (uma ou duas páginas) e as quinze ou mais, como é o caso do meu. O livro encerra-se com um epílogo, um bonito texto abrangente, do punho da própria coordenadora do projecto, onde Joana Bernardo perspectiva a pandemia numa fase mais avançada da sua evolução (Agosto de 2021), reforçando a coesão de tudo quanto estava nas páginas anteriores e recorrendo a uma linha discursiva em que floresce um humor fininho e simpaticamente auto-depreciativo.
Agora estamos em Março de 2022, a pandemia fina-se (como tradicionalmente sucede a uma pandemia ao fim de dois, dois anos e meio) e um ditador russo resolveu expulsar da TV os comentaristas e especialistas em covid19 que, como pulgas ou cogumelos, tinham, do nada, medrado nos ecrãs. Foram substituídos por especialistas geoestratégicos e militares, mas o resultado geral não é melhor.
Termino, deixando aqui um cheirinho do texto que escrevi para 8 Dias em 2020, apenas umas linhas para abrir o apetite e, se, por acaso, quiser ler o resto, compre o livro, porra!
Joana Bernardo (2017). |
3 de Janeiro
Para além de equitativamente crédula, Sónia tem uma costela paranoica e sente atracção por teorias da conspiração. Já achou que o vírus tinha sido inventado por um laboratório chinês e quando lhe perguntava com que intenção ou vantagem os chineses o teriam feito, respondia:
"Sei lá, como queres que saiba com tanta informação contraditória?! Para controlar o mundo, suponho; venderem-nos ainda mais coisas..."
"Mas não achas que seria um perigo bastante grande, lançar assim, por aí fora, um ser microscópico que se pode descontrolar e vir a atingir os próprios; paralisar o mundo?"
Ela não gastou demasiado tempo a pensar nos chineses e se o vírus nascera num mercado ou num laboratório, pois, entretanto, ficara fascinada pelas gravações áudio, anónimas, onde se ouvia gente a dizer "trabalho num hospital da área da grande Lisboa e há mortos por todos os lados, acumulados nas morgues e nos corredores". Mas hoje, que as primeiras caixas fumegantes chegaram por Badajoz, as ansiedades e dúvidas dela(s) estão todas apontadas ao frenesi das vacinas. Sónia, para além de comentar o bom-gosto da Ministra da Saúde a vestir-se, é de opinião de que a vacina da Moderna tem por principal finalidade tornar o Bill Gates ainda mais rico do que o que é e, por isso, não que ser inoculada com essa. Chegou a minha vez de perguntar:
"Tu achas? Não te apercebes que é já rico que chegue? Tanto quanto me parece, ele, precisamente, anda a experimentar como se ver livre de algum do seu muito dinheiro de uma forma útil, e deu em filantropo, um filantropo inteligente; tem acontecido a muitos ao longo da história..."
Mas Sónia já de desinteressou de Bill e Melinda Gates: que saber o que poderá fazer para poder vir a escolher a vacina anti-Covid19 que mais lhe apetecer:
"Não quero a da Moderna e, devo confessar-te, que tenho medo da vacina da Pfizer. Não achas que pode ser um perigo muito grande administrar a uma pessoa um produto que é mantido a uma temperatura assim tão baixa? Nenhuma de nós é um urso polar!"
"Mas eles não ta vão inocular a menos 70 graus", informo, "aquilo é posto a descongelar até atingir a temperatura ambiente".
"Mesmo assim... Pode provocar algum nódulo frio, uma espécie de trombose ou tromboflebite; sei lá... E o choque anafilático? Não achas que tenho um risco acrescido?"
"Tu?! Porquê?"
"As minhas enxaquecas, a minha rinite... O imuno-alergologista diz que poderiam ser de base alérgica."
"Sim, mas nunca te descobriu nada! E não sei porque é que vocês se estão a preocupar agora com isso? Tens 31 anos, a Sandra 38 ou 39; nenhuma de vocês pertence a nenhum grupo de risco; vai demorar séculos até que chegue a vossa vez. E, quando isso acontecer, não vão poder escolher a marca que querem: vão levar a que vos estiver destinada."
"Tu achas?", diz ela, "a Sandra tinha pensado em escrevermos para a Astra-Zeneca..."
"Acho boa ideia", louvei, "já agora escrevam também ao Putin."
"Não se pode falar contigo...", censura.
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