21 dezembro 2020

TODA A NUDEZ SERÁ CASTIGADA

O Sr. na foto chama-se Carlos Durão, é especialista em Ortopedia e Traumatologia pela Ordem dos Médicos e possui, também, diferenciação profissional especializada na área da Medicina Legal e do seu ramo Dano Corporal. Tem ainda responsabilidades na Direcção de uma associação profissional que se dedica ao estudo de assuntos de medicina forense. Ou seja: não é nenhum tarefeiro, nenhum compoteiro, nenhum indiferenciado ou desconhecido na matéria.

Ora muito bem, e por qual razão o puxo até este cantinho? Este médico foi o responsável pela autópsia de Ihor Homeniuk, o ucraniano assassinado pelo Estado português no aeroporto de Lisboa. Como talvez se lembrem, o cadáver chegou-lhe uns dias após o homicídio, com a indicação genérica do INEM de que teria morrido de causa natural, sem mais, sem indicação alguma das condições miseráveis de abuso em que se encontrava o pobre corpo. E este Dr. Durão fez algo que, embora segundo as regras da arte médica e da ética, lhe foi fatal: procedeu à autópsia, percebeu o que se tinha passado, pegou no telefone e ligou à Polícia Judiciária, a relatar o assunto e a pedir que tomassem conta do caso. Como lhe competia e, já agora, como alguém que não vive à sombra do medo. Mas o seu erro foi não ter perguntado ao chefe se o deveria fazer e, se perguntou, não esperou o suficiente pela resposta antes de arregaçar as mangas...

O que ele não sabia, quando assim procedeu (em Março), é que a enrascadela da Portela tinha água no bico e já estava em processo de adoçamento, de douramento... Isso custou-lhe (a partir de Novembro) o contrato com o Instituto de Medicina Legal. Acontece que esse Instituto, ao contrário do que se possa pensar, não pertence à Saúde, responde ao Ministério da Justiça, departamento comandado pela inefável ministra Van Dunen, identificada por ser uma totally yes woman do Governo onde milita.  

E a gente, confinada e sem nada que fazer, pode pôr-se a imaginar a hipotética e alegada sequência: o Cabrita, sempre mauzão, às rosnadelas por não terem tirado o microfone a tempo ao Durão; o Governo a tirar o pó ao batedor de tapetes; e a Justiça a irradiar a sua luz cega até à periferia da influência, talvez sussurrando a sugestão de que se retribua, pois toda a nudez de informação será castigada. E o Durão foi despedido, claro, é que nem ginjas. Será que ele imaginava poder vir a ser mais durão do que o Cabrita?! 

É claro, também, que o habitualmente mudo Instituto de Medicina Legal de Lisboa já se apressou a vir dizer que o despedimento nada tem a ver com isto, que o homem foi corrido porque se atreveu a publicar um artigo científico com uma fotografia não autorizada de um cadáver (outro cadáver, que não este). Imagine-se só o crime, veja-se a gravidade da matéria, num país onde é célebre a robusta intensidade científica do Instituto de Medicina Legal, e onde a probabilidade de ser despedido da função pública é menor do que a de vir a sofrer um ataque terrorista! 

Isto não vos cheira, tresanda, um bocado a Tancos? Este ninguém sabia de nada; esta necessidade toda de cortar as pontas soltas? A mim (apesar da máscara) cheira, acho que ainda há aqui todo um aterro sanitário de mistério, toneladas de voltinhas a explicar e de gente graúda a ter de exibir alibis. 

E como em Portugal tudo sucede ao ralenti, a inércia fez com que os senhores que mandam (em vez de estar calados no seu buraquinho), só agora tratassem de despedir o atrevido. Foi chato, o atraso no trânsito em julgado... Não é que a borrasca estourou precisamente quando os holofotes estão todos acesos?

12 dezembro 2020

DA FRAGILIDADE HUMANA

Desfez-se em lágrimas, a ministra, enquanto discursava à frente da mão-cheia de pessoas que assinalava os 121 anos do Instituto Nacional de Saúde, mais conhecido por Instituto Ricardo Jorge. Está longe de ser um acaso, o porquê de isso ter sucedido ou o local onde isso sucedeu.

A pressão da pandemia Covid19 tem sido brutal sobre a Saúde, de uma intensidade nunca antes experimentada, de palavreado leva-o o vento, e a essa violência não escapa ninguém, nem sequer um ministro. Marta Temido (a quem compete manter o leme no meio da tempestade) tem sofrido da má orientação de quem lhe é institucionalmente devedor; tem sido vítima da própria inexperiência e, claro está, dos ataques da comunicação social e das redes sociais. Tem sido usada sem piedade (até por colegas de governo), zurzida sem piedade; a muita das vezes justamente, e o seu ar de quem tudo sabe e tem resposta para tudo, não ajudou, assim como não ajuda ver um responsável sistematicamente agarrado ao telemóvel quando, a seu lado, se enunciam problemas ou se invocam mortos e vulnerabilidades.

Nove meses mais tarde, a maioria dos actores directos no processo Covid (médicos, enfermeiros, auxiliares, dirigentes da saúde) estão exaustos e emocionalmente frágeis, é o preço das experiências-limite, seja uma guerra ou uma doença grave que bateu à porta do nosso corpo. Acontece que a coisa lhe bateu também à porta, a miss pispineta, que em demasiadas ocasiões aparentou comportar-se como se pouco tivesse a ver com isto ou como se os outros não compreendessem nada do que sucedia.

Não foi, igualmente, indiferente o local onde a quebra emocional aconteceu, ao final de um discurso e quase sem aviso, sem aquele nó na garganta que estrangula a voz e antecede as lágrimas. Não, de repente debulhou-se em lágrimas, viam-se escorrer-lhe cara abaixo, não foi aquela cenazita encenada para o programa da manhã da TV, quando a câmara que nos enquadra tem a luz ligado acesa. Aquilo subiu como a maré, ao dar-se conta das pessoas a quem se dirigia. A ministra encontrava-se numa instituição que, ao longo deste longo caminho pandémico, a tem fornecido (a tempo e horas e a qualquer hora, como referiu logo que conseguiu recuperar do choro) de informação técnica, credível e fundamentada; de apoio laboratorial em quantidade avassaladora, às dezenas de milhares de análises por semana, 24 horas por dia, e sem recorrer nunca ao truque do 'teste fácil e milagroso', que depois tem de ser repetido... 

Marta Temido, 11 Dezembro 2020.
Mais habituada às colheradas de informação generalista, confusa ou contraditória, por parte de quem a deveria assessorar (o posicionamento da DGS, por exemplo: opinativo, capelista, inconsistente); forçada, por esse apoio deficiente, a ter de dar o dito por não dito, Marta Temido terá sentido, de súbito e para além das palavras, descer sobre ela essa constatação, não conseguindo resistir ao momento em que o referia. Essa assunção de fragilidade foi bonita de ver, assim como foi apropriada a salva de palmas da assistência, que lhe possibilitou o tempo de se recuperar e terminar o seu discurso. 

11 dezembro 2020

MINISTÉRIO DA ANORMALIDADE INTERNA

Resumo a triste história: um candidato a imigrante, ucraniano (Ihor Homenyuk), aterra no aeroporto de Lisboa. Por motivos que se desconhecem, os funcionários do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) embirram com o homem, que, ainda por cima, não fala outra língua que não o ucraniano. Vai daí, resolvem desancá-lo à porrada, numa sala isolada, e de tal modo o fazem que o matam ali, no mesmo espaço onde desembarcam os, tão gabados, milhões de turistas. No fim da pancada, um dos funcionários do SEF declara que, nesse dia, já tinha feito o exercício que necessitava, pelo que já não precisaria de "ir ao ginásio". Desde esta cena e até que Ihor morreu, passaram quase três dias, tempo em que o homem agonizou sem assistência médica ou alimentação. Quando foi encontrado pelo INEM, chamado por causa do óbito, foi encontrado com as calças pelos joelhos e num mar de urina. O INEM declarou o óbito como devido a "causas naturais" e teve de ser o Instituto de Medicina Legal, após autópsia, a referir as extensas contusões e sinais de violência que o cadáver apresentava. Foram encontradas várias hemorragias internas e o tórax esmagado, costelas partidas, o que terá contribuído para a morte, pois quando as costelas picam os pulmões estes vão deixando de funcionar, num processo agónico muitíssimo doloroso. Morreu como Cristo, o desgraçado: por homicídio, devagarinho e sem assistência humana que lhe servisse de consolo.

Se ouvíssemos uma notícia do género, não sabendo que tudo isto teve lugar em Lisboa, pensaríamos que tal chacina poderia ter tido lugar em que canto do planeta? Nos Estados Unidos de Trump? Não, nem isso: aí separaram pais e filhos na fronteira mexicana, mas não há relato de violência associada. Talvez na Arábia Saudita, no Afeganistão, eventualmente na Somália ou noutro obscuro país tribal de África. Mas, nunca na Europa, nem sequer temos notícia de algo remotamente semelhante em países mais musculados como a Hungria ou a Polónia ou, assumidos como mais atrasados do que nós, como a Roménia ou a Bulgária.

Quando dei conta de todos estes ingredientes, para além de horrorizado, tive vergonha em ser português, de poder ser apontado, com justeza, como "olha-me aqueles selvagens das bordas da península ibérica". Tal sentimento acentuou-se ao ouvir as palavras da viúva de Ihor sobre Portugal e os portugueses que mandam, como ela teve o cuidado de distinguir. Com toda a justiça e sem papas na língua. A senhora foi obrigada a tratar de tudo, a pagar tudo, para levar o corpo do marido para casa, sem ajuda, sem uma palavra, tratada como se o defunto marido fosse um criminoso. Nem uma palavra do país homicida, fosse das autoridades envolvidas (SEF), do ministério que patrocinou (MAI), do primeiro-ministro ou do sempre tão precoce e apressado em manifestações afectivas que é o presidente da república. Zero. 

Quem manteve o assunto aceso foi apenas a comunicação social, gente que, ontem e publicamente, o mentecapto que dá pelo nome de Eduardo Cabrita, desancou e a quem, como se lá estivesse desde a primeira hora, deu as boas-vindas ao "combate pelos direitos humanos", uma verborreia a lembrar os delírios Trumpianos dirigidos à comunicação social. Vergonhoso, incoerente, de quem não consegue olhar para além do cotão do poderoso umbigo. O discurso mentecáptico de auto-elogio incluiu pérolas como ter sido ele a garantir o terreno para que Marcelo Rebelo de Sousa se pudesse candidatar de novo a Belém (por não ter morrido mais ninguém nos incêndios florestais após Constança Urbano Sousa, a nódoa que o antecedeu no MAI) e, imagine-se, afirmações de que ele, Cabrita, desde o primeiro minuto após o homicídio, andou atarefado a pensar no assunto, enquanto outros estavam, para aí, "distraídos e confinados". Ou seja: o responsável máximo pela Protecção Civil parece considerar o confinamento sanitário, imposto pelo Covid19, uma fraqueza, uma coisa que só é respeitada ou seguida por quem é piegas, preguiçoso ou não tem mais o que fazer. Uma linha de pensamento igual à de Bolsonaro ou Trump. 

Cabrita e Constança,
no tempo em que se amavam
Já por aqui falei, mais do que uma vez, em Cabrita e o do que penso dele e da sua incompetência polifacetada (Linha Zero-Diálogo ConjugalApocalipse Uau! -as golas altas da Protecção CivilNesta Data Feliz!Saco Roto -rescaldo dos incêndios). O homem, que assume sistematicamente a pose do cão raivoso, sempre disponível para ir roer as canelas de quem ataca o governo e, sobretudo, a ele, não serve para mais do que isso, mas, para esse tipo de utilidade, preferiria um rottweiler na administração interna, que sempre saía mais barato e não falava. Mas não, é este o super-poderoso que nos calhou, que manda nas polícias todas, na protecção civil e exerce o seu poder com todos os tiques do poderoso. Alegadamente, o governante tem uma quinta no campo e, como é importante que chegue, tem direito a uns GNR sortidos, que montam guarda à propriedade quando ele está por lá. Mas, infelizmente, a presença dos guardas do lado de dentro do portão enervam o cão de Cabrita e, então, Cabrita envia os guardas para fora do perímetro: que vigiem do lado de fora, pois o cão enervando enerva-o a ele. O homem tem uma sensibilidade canina apurada...
Cristina Gatões, Ex-SEF.

Perante todo este rol de vergonha e incompetência, é claro que Cabrita tinha de demitir uma gata qualquer (Cristina Gatões, directora do SEF) e anunciar medidas profundas; como sempre acontece quando se sucedem notícias nos jornais. A maior delas, a mais publicitada, foi a de que as instalações do SEF no aeroporto de Lisboa passariam a dispor de um botão de pânico, uma campainha que os candidatos a imigrantes, os refugiados e outra gente de tonalidade suspeita, poderá accionar quando estiver em risco de ser moída à porrada! Óptimo, que maravilhosas expectativas estão desde já criadas sobre a recepção em Lisboa a quem chega de fora. Portugal: podem até matá-lo, mas você pode dizer ui! antes que isso aconteça. Mas será que alguém vai atender à campainha, pergunto-me? Depende, se não for muito tarde; se estiver alguém de serviço ou não for feriado ou ponte...

Quanto a António Costa, esse parece estar cada vez mais convencido de que tem poderes superiores, que nada o afecta, a ele e à sua famiglia política, e já se apressou a vir dizer que mantém toda a confiança no Cabrita. Que não lhe faltem os biscoitos crocantes da Whiskas!  

02 dezembro 2020

PODE SER QUE TALVEZ...

Uf, que alívio! A empresa responsável pelo produto mais quente (Viagra) e mais gelado do planeta (vacina a menos 70 graus) anunciou que assegurará o transporte da vacina antiCovid19 até aos locais onde esta deva ser administrada. Esse transporte será feito, de acordo com a distância, em avião ou por via terrestre, em camiões próprios, dotados de sensor de temperatura que garantirá, a qualquer momento, que o produto se encontra nas condições térmicas exigidas. 

Uf, que alívio! É que eu já tinha visto, no pequeno ecrã, eclodir um novo tipo de especialista, um sábio em logística da saúde (seja lá o que isso for), a satisfazer-se em voz alta e concluindo que sim, que puxados todos os cordelinhos e feitos todos os telefonemas, Portugal deveria ter "capacidade técnica instalada" para o transporte em frio das vacinas, apontava como parceiros para o projecto as companhias de gás líquido e dava como exemplo de produtos conseguidos no campo do zero absoluto o gelo seco das malas térmicas, onde se transportam tubos de sangue para análise clínica, e, não menos impressionante, os gases gelados usados nas discotecas para fazer fumegar as bebidas! E, afinal, o que é uma vacina senão um shot

Entretanto, no seu sereno comunicado, a directora portuguesa da Pfizer informava ainda que a empresa entregaria as vacinas, assim chegassem, onde lhe fosse dito, estando à espera de instruções nesse sentido do Ministério da Saúde.

Mas ora aí é que está o busílis! Isto não funciona assim, que é que pensam os americanos da Pfizer?! É que há, pelo menos, duas comissões a tratar disso e cada uma delas tem o seu ritmo, as suas idiossincrasias, para além de vários elementos: tudo somado, vai para a vintena de individualidades, isto sem contar o secretário de estado, a ministra e os tradutores de linguagem gestual, que também têm uma palavra a dizer. Tem que se lhe diga, é complexo, demora... São, precisamente, estas complexidades da problemática que explicam que, enquanto, entre outros, a Inglaterra ou a Espanha (belíssimo o plano espanhol, na definição de princípios enquadradores, grupos prioritários, procedimentos) já divulgaram os seus planos a nível interno e internacional, nós, por cá, continuamos a inventar a pólvora, a mastigar os cartuchos, e tudo, com excepção do local onde ficarão armazenadas as vacinas, é muito reservado, preliminar e confidencial. 

Até ao momento (2 de dezembro), a única pessoa a produzir informação pública sobre o plano de vacinação português, o que fez de forma clara, completa e indo ao encontro do que as pessoas desejam saber, foi... Marques Mendes, o advogado e político de Fafe, tendo elevado com a sua prestação televisiva a bonita terra nortenha aos píncaros dos centros de excelência, onde viceja na companhia de Rebordões (berço das máscaras mágicas) e Oliveira do Hospital (concelho que revolucionou a tecnologia dos aeroportos antiCovid19).

Bem, sentemo-nos todos (nós - os  hipotéticos beneficiários da futura vacina - e a Pfizer), pois é bem imaginável que, em pleno Verão, continuemos à espera da transformação dos princípios em prática e, à falta de melhor, entretidos a observar como o turismo se restabelece no mundo vacinado e Portugal se mantém como país de destino não recomendável, dado que a esmagadora maioria dos indígenas ainda milita na situação de vulnerável contagioso. Para consolo de todos, nesse dia virtual, o ministro dos negócios estrangeiros vestirá a capa de super-homem e apresentará, junto dos seus congéneres europeus, um veemente protesto pela falta de proporcionalidade da decisão. 

 

27 novembro 2020

MORRER SAUDÁVEL (ou os velhos que esperem!)

O que é que qualquer leigo na matéria está podre de saber sobre as consequências do Covid19 na saúde? Que mata sobretudo quem é velho e que a idade é o principal factor de risco para uma doença com péssimo desfecho. A nível mundial, 50 % das mortes ocorre em pessoas com mais de 75 anos e, em Portugal, sabemos a tragédia que tem sido nos lares (residentes, na generalidade, com mais de 70 anos), onde mais de 40 % dos idosos infectados não resistem. Há, depois, a imensa legião dos velhos acamados em casa, a cargo da família. Acresce, como panorama geral, que Portugal é um dos países da Europa com uma população mais velha.

Ora, olhando para tudo isto, o que pareceria lógico, agora que a possibilidade de uma vacina se aproxima e é necessário planear como vacinar e por onde começar? Dir-se-ia que, à semelhança do que foi decidido um pouco por todo o lado (veja-se Espanha, França, Reino Unido, Suécia, por exemplo), o primeiro grupo prioritário a vacinar fosse o dos velhos, entendido como os dos 65/70 anos em diante, sem limite superior de idade. Sendo, como se diz, as vacinas em fabricação tão eficazes, evitar-se-ia uma imensa quantidade de mortes, sofrimento e entupimento dos serviços de saúde.

Mas, na DGS, a lógica parece ser uma batata grelada e, como já nos habituaram desde o começo da pandemia, dali tinha de sair qualquer coisa arrevesada, atamancada, ao arrepio do que acontece no país e aparenta ser tecnicamente sensato e aceitável. Uma tal Comissão Técnica de Vacinação Contra o Covid19, a primeira das duas comissões que o Ministério desencantou para tratar disto, resolveu que a grande prioridade, em termos dos primeiros a vacinar, seria o grupo dos 55-75 anos de idade! Os outros mais velhos que esperassem, logo se veria quando chegassem mais vacinas. Perante a bizarria, o povo nem quer acreditar no que ouve e fica a interrogar-se: mas porquê tal decisão, o que a baseia, que não estamos a ver? Ora baseia-se na sacrossanta evidência científica, esse escudo mágico dos dirigentes: as bulas das novas vacinas anti Covid19 nada dizem sobre a sua eficácia e segurança além dos 75 anos, de modo que, trigo- limpo-farinha-Amparo, estes não se vacinam. Simples, não é? Bem, pelo menos aparenta-o ter sido para a inteligência molecular que preside à tal comissão e tornou públicos os doutos critérios, tal se uma vacina tivesse de ser encarada como um medicamento perigosíssimo que, administrado fora da baia das recomendações imediatas do fabricante, pudesse matar, estropiar ou deixar de proteger alguém. Um belo e novo fundamento, fornecido pelo próprio Ministério da Saúde, para ajudar a robustecer a histeria dos negacionistas, dos grupos anti-vacinas e, ainda, um belo contributo para amplificar, junto da população em geral, o receio e a falta de confiança nas soluções que lhe são apresentadas. É claro que, apesar do que nos explicam, e conhecendo o que a casa gasta, por trás desta atitude de paladinos da saúde, mais do que tentar proteger os velhinhos poderá estar camuflada uma lavagem de mãos, ou seja: assim, nunca ninguém vai poder responsabilizar-nos por ter aconselhado um produto sobre o qual não foi reportada evidência, outra bonita acha na fogueira da desconfiança da população perante as vacinas e a confusão geral estabelecida em torno delas. Já vimos isto acontecer (igual que até arrepia) com as máscaras e o seu uso, lembram-se? "Não há evidência", "não use", "pode ser um perigo", "podem fazer mais mal que bem", "aconselharemos quando as entidades internacionais...", e o resultado foi o que se viu: andamos todos por aí com elas, é um dos meios de protecção mais eficazes e seguros, sobretudo se associado ao distanciamento e à higienização das mãos. 

Prof. Dr. Valter Bruno Fonseca (Director dos
Serviços de Qualidade da DGS; responsável pela
Comissão Técnica de Vacinação anti-Covid19). 

Mas não, a DGS não vai por aí! Não se antecipa. Duvida. Ainda não tem a evidência que há-de chegar da Agência Europeia do Medicamento, dos fabricantes, da Organização não sei de quê. Prefere ter as costas quentes. Num certo prisma, esta atitude assemelha-se-me tão criminosa como negar água a quem está a morrer à sede, argumentando que os resultados das análises à potabilidade ainda não chegaram... Morres, mas, pelo que depende de nós, morres saudável! 

O que, para mim, sempre foi um mistério, é não ver na tal comissão, na DGS, ninguém pensar segunda outra lógica, isto é, enformada por um pensamento de Saúde Pública: as vacinas são, e têm sido desde sempre, um poderoso aliado da saúde, um produto seguro, e o que está neste momento nos pratos da balança leva a que deva ser usado e aconselhado, pois o risco das consequências da doença neste grupo (70/75 e mais anos) é assustadoramente maior do que hipotéticos efeitos secundários. Nem sequer, nestas decisões disparatadas, se vê a sombra de um outro critério básico em saúde pública: a aceitabilidade. Para uma intervenção ter sucesso é necessário que seja aceite pela população a quem se dirige, como um todo. Calculo o que não terá ficado a pensar toda a gente, o povo votante, desta decisão de excluir aqueles que mais precisam!

Quem, de imediato, se apercebeu do perigo foi o primeiro-ministro, que pode ser acusado de tudo, menos de não ter um apuradíssimo instinto de sobrevivência e de conseguir prever consequências políticas. E, Deus o ajude, saltou logo para a praça pública, dizendo que não aceitaria um critério desta natureza. É óbvio que, com isto, passou mais um cartão de inutilidade à tal comissão (e à DGS), mas quem se põe a jeito... De todo o modo, esta desautorização (merecida) é péssima para a manutenção de uma desejada decisão política baseada na técnica, pois describiliza os técnicos. Já por aqui tinha referido, falando na criação desta comissão, parecer-me inadmissível não ver um único médico especialista em Saúde Pública integrá-la, pois foi, e é, a Saúde Pública que sempre lidou com populações e planeamento de medidas dirigidas a grandes grupos, epidemias, pandemias e vacinas. Está a ver-se o resultado de tal altivez.

 

Nota: Muito mais poderia ser dito sobre os anunciados, e atrapalhados, critérios para vacinação Covid19, limitei-me a escolher apenas o mais gritante.  

 

26 novembro 2020

LINHA ZERO (Diálogo Conjugal)

"Edite, soltaram o Cabrita!", gritei do sofá para a cozinha, onde ela estava ao micro-ondas.

"Puxa aí no riwainde", disse a mulher, regressando à sala com as fatias aquecidas da telepiza.

A Edite nunca perde uma das aparições do ministro da administração interna, segue-o, como um relógio, desde o tempo dos incêndios. Puxei o telejornal para trás e lá vinha ele a toda a brida, a rebentar pelas costuras, com aquele ar raivoso e de olhos esbugalhados que Deus lhe deu, tão parecido com o boxer do nosso vizinho que, sempre que o vejo surgir, me dá na ideia saltar para cima de um banco, a resguardar as canelas. Mas desta vez, coitado, estávamos a ser injustos, que o homem vinha só gabar o comportamento exemplar dos portugueses durante o 2.º confinamento, ainda mais espectacular que no 1.º. Que ele não disse confinamento, usou um daqueles termos proporcionais permitidos pela Constituição e sancionados pelo governo.

Tinha chegado a minha vez de ir à cozinha buscar a sobremesa: um diospiro para a Edite e uma gelatina Royal para mim e, quando voltei ao sofá, já estava a falar a ministra do trabalho, a...., nunca me lembro do nome dela.

"É qualquer coisa Godinho...", esclareceu a Edite, que é melhor para nomes do que eu.

Mas era ela, sem dúvida, a carita deslavada de catequista e aquele olharzinho de "a mim não enganas tu" com que sempre brinda os cidadãos. E, lá está, era mais uma ensaboadela dessas: então não é que havia cidadãos que pensavam que, agora nos feriados confitados, podiam ficar em casa com os pirralhos e receber um complemento, mesmo trabalhando na privada?! Isso é que era bom, esclareceu logo a ministra, sacando, de memória, da alínea f), do número 32, do artigo XVII do Decreto-Lei n.º não sei quantos, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto... Conclusão: ninguém tem direito a coisa nenhuma, quando muito podem ver a falta justificada! Ou esses cidadãos pensavam que eram algum Novo Banco, ou TAP, ou algum dos colegas dela bem-sucedidos na vida, que entraram na política com uma mão à frente e outra na rectaguarda e saem com casa na Comporta e andar na Expo sem que a Van Dunen lhes chegue? 

Mas já aparecia a ministra da saúde e, dos realití xou que já vi, não há melhor, bate o Quem Quer Casar Com o Agricultor, aos palmos - eles deviam pensar fazer um com os ministros todos, em que se veriam 24 horas por dia. A esta, nunca perco a esperança de, um dia, quando as câmaras a filmarem pela perspectiva dos da linguagem gestual, ver o que é que ela está sempre a olhar no telemóvel, que, mesmo durante as conferências de imprensa e os conselhos de ministros, ela nunca o larga! Aquilo devem ser dados que lhe chegam às catadupas: surtos em lares, refeitórios adaptados a cuidados intensivos, torres de refrigeração com legionela, doentes transferidos para a Trofa, coisas assim. Ora os jornalistas estão a perguntar-lhe qual é a probabilidade de, ao contrário do que sucederá nos outros países europeus, as vacinas do Covid19 não chegarem cá ao mesmo tempo que aos outros. "Zero por cento", diz ela sem pestanejar, com aquela certeza que Deus Nosso Senhor lhe concedeu. A Edite, ao meu lado no sofá, até grunhiu de satisfação:

Senhor, faz com que chegue em Janeiro..
"Antunes" (trata-me sempre pelo meu nome de família), "esta é que é esperta! Viste, já está a adaptar a linguagem." E como eu não alcançasse onde queria chegar, explicou-me que aquilo da ministra estar a falar em "zero" era já uma linguagem influenciada pelas vacinas que, se Deus permitir, hão-de chegar cá. "Então, não sabes que aquilo é tudo abaixo de zero? Há uma que precisa de estar a 70 graus? E outra a vinte, abaixo de zero? Já se está a preparar, a moldar."

"Achas?", perguntei, "achas que já se estão a preparar?"

"Sem dúvida! O quê, ninguém sabe, mas a Leontilde disse-me que tinha ouvido dizer que eles até já têm nomes de código para as vacinas que vierem a chegar: parece que, se for a mais fria, a campanha vai chamar-se Capitão Iglo, se for a outra, que ainda é congelada mas menos, será Mini Magnum, e se for a chinesa, que também deve ser congelada (eles ainda não sabem bem, estão à espera que a Agência Europeia lhes diga), vai ser Mistura Oriental (para Wok).

"Tu achas?"

"Acho, não: sei. Diz que tem tudo previsto, como eles já têm no estrangeiro, só que aqui é mais secreto, ainda não nos disseram, para não dar azar. Elas podem chegar, a qualquer momento, pelo aeroporto, no TGV espanhol ou, até, de cacilheiro, se forem as chinesas e vierem por Sines."

Fiquei arrombado com aquela capacidade de planeamento e previsão miudinha e, ainda mais, quando soube que, só para tratar de uma simples vacina, havia duas comissões e tinham chamado até os militares! Mas, ainda eu me embasbacava, e já mostravam no ecrã as imagens de um complexo fabril abandonado, lá para Coimbra, onde as vacinas iam ficar guardadas até chegar o horário de picarem as pessoas. Mostraram o prédio, um barracão esverdeado, todo empoeirado por dentro, a precisar de obras e daquele senhor que aparece sempre na TV, empoleirado num escadote a atarraxar uma coisa.

"Mas, então, isto não devia ser secreto?", pergunta a Edite. "Com tanta gente aí à míngua de vacina, com a propaganda que eles têm feito no governo, até pode haver alguns meliantes a querer roubá-la, para a tomar antes de todos ou vendê-la para a Venezuela, para África, para um paraíso fiscal"

"Estás a sonhar mulher, não sejas descrente! Não vês que eles contrataram os militares! Isto, quando chegar, só vai sair de Coimbra de Chaimite! Ouviu-se dizer que tinham pensado, inicialmente, escondê-las em Tancos. Só que depois consultaram o Nuno Rogeiro e ele achou que, "dados os precedentes", era melhor não..."

"Ai, Antunes, quando chegará a nossa vez de sermos convocados? Ou achas que vamos ter de encomendar na farmácia?"

"Na farmácia?! Tu achas que há militares que cheguem para pôr um em cada farmácia? E aqueles frigoríficos, quase no zero absoluto! Nas farmácias? Tá bem, tá!"

"Sim, mas quando achas que será a nossa vez?"

"Antes de Janeiro não vai ser, não ouviste a Ministra? E no Verão já deve estar tudo mais ou menos vacinado. De modo que lá para a altura da entrega do IRS... Ouve o que ela diz!"

"Sim, sim, com o que essa diz posso eu bem. Agora anda toda arrebitada com isto de haver vacina, até que enfim lhe aparece alguma coisa a que se agarrar de 'luz ao fundo do túnel'. Olha que, dos mortos, não fala ela agora..."

Portugal:mortes diárias por Covid19. Março a Novembro de 2020.


"Quais mortos?"

"Estás obtuso! Não te lembras - não vai assim há tanto - de virem com a teoria de que o número de casos não interessava, que a gravidade da situação tinha de ser medida pelos mortos e pelos internados nos intensivismos?"

"Sim, todos eles papagueavam isso, lá devem ter aprendido com os especialistas. O que não há meio é de conseguirem dizer epidemiológico sem se engasgar."

"Tropeçam no mio, coitados. Mas agora, Antunes, viraram a agulha para as vacinas, que ainda nem sequer foram aprovadas e já é um disco riscado! Mas tu já viste a quantidade de mortos? No começo do pandemónio demoraram cinco meses a duplicar, agora duplicam a cada quinze dias!"

Portugal. Utilização de camas em cuidados intensivos. Março 2020-Março 2021. A linha verde horizontal representa a capacidade disponível.
"Edite, às vezes nem te percebo. Então tu achas que eles iam querer falar disso, do que lhes corre ao arrepio? Olha para ela, olha para os outros, quando os apertam e lhe pedem que sejam concretos... Tornam a conversa redonda como bolas de ping-pong"

"Está bom de ver..", suspirou a Edite, mudando de canal, "agora vai ser vacinas até a gente as vomitar e, entretanto, quem tiver de morrer..."

Portugal. Mortalidade actual por Covid e projecção no futuro (até Março 2021).

Nota: Estatísticas e gráficos do Worldmeter e do The Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), University of Washington.

 

20 novembro 2020

UM SONHO DE VACINA

Em Janeiro (se Vénus ajudar) teremos entre nós uma vacina anti-covid e, "lá para o Verão", (havendo alinhamento entre Andrómeda e Cassiopeia) uma parte "muito significativa" da população estará vacinada. Tudo isto foi garantido ontem (19 novembro), aos portugueses lá em casa, por Maga Temydo e pelo Professor Infar Medu, pois como a realidade é, actualmente, assaz sombria e ambos detestam assumi-lo, viram-se forçados a migrar para os domínios sonhadores da futurologia.

O Presidente da República, presente na feira de levante onde tudo se passou, ainda tentou que o alto responsável concretizasse um pouco, mas o homem não saía do registo de "segundo as melhores informações", "se tudo correr como o esperado", "se a agência europeia do medicamento...", um jardim de 'ses'. E uma grande alegria, convenhamos, uma enorme vontade, em ambos, de comunicar e gerar momentos de rara cumplicidade com os portugueses lá em casa, esgazeados de cor-de-rosa nos sofás.

Mas como iria a vacinação ser feita, insistia o Presidente, que, agarrando-se ao exemplo da vacina da gripe, elencava possíveis dificuldades, atrasos. Mas oh que porra de exemplo fora o mais alto magistrado da Nação desenterrar! A gripe?! Então o Ministério tinha andado a convencer toda a gente a vacinar-se, mas, depois, houve aquele atraso na encomenda de vacinas [revejam-se notícias de Junho de 2020] e elas não chegaram, nem nada que se parecesse, para a procura... Uma maçada, um fiasco, e o Presidente ia logo escolher aquele caso isolado infeliz? Bem, mas aquele, não podia o Professor Medu contrariar e, sintonizado num inabalável sorriso, lá foi largando a sua cortina de fumo: pois, ainda não se sabia muito bem, era uma matéria que a Comissão (recém-formada) iria estudar, baseada nas melhores informações; talvez a vacinação fosse em massa ou, então, em campanha... Será que o Professor quereria significar Campanhã (pois, a Norte, as coisas estão mais assanhadas do que em Santa Apolónia) e, em vez disso, pronunciou campanha? Nunca o saberemos, com as profecias há sempre incerteza.

O que sabemos, de fonte segura, é que nenhuma das cinco potenciais vacinas mais adiantadas foram ainda aprovadas e todo o assunto se transformou numa guerra comercial de quem chega primeiro aos escaparates. E mesmo se não vier a chegar primeiro, as acções da Pfizer já subiram por aí acima. Se bem se recordam, há ainda escassos dias a farmacêutica americana fixava a eficácia da sua vacina nos 90 %. Mas logo apareceu a Moderna a publicitar que o seu produto ia aos 94,5 % e a Pfizer  apressou-se a comunicar que, afinal, a eficácia do seu produto era de 95 % e, mais, que não tinha efeitos secundários, algo que, com honestidade, não se poderá afirmar a não ser quando a vacina já estiver em distribuição, um número significativo de pessoas estiver vacinada, passar o tempo suficiente (meses ou anos) e forem reportados esses efeitos! Resumindo: já está tudo a postos para vender um produto sobre o qual não há resultados definitivos publicados e que não passou pela etapa fundamental de ver esses resultados (e método para lá chegar) avaliados e sancionados pela comunidade científica internacional. Todo o processo ronda a publicidade enganosa ("esta é boa para velhinhos", gritam outros) e a falta de ética profissional, que a ciência costumava praticar. Entretanto, mais atrasados estão a Astra Zeneca-Oxford (que aparentam ser mais sérios na condução do processo), os russos, que olham para a vacina como para um foguete, e os chineses, atarefados a conseguir duas variantes à vacina: uma com sabor a molho de ostra e outra, especial para vegetarianos, com pedaços de bambu.

Voltando ao nosso fumeiro: nem Maga Temydo nem o Professor Infar Medu nos explicaram algumas coisas fundamentais e que, para quem anunciou a vacina para daqui a mês e meio, já deviam saber ou, pelo menos, ter equacionado com clareza e detalhe:


a) Que vacinas irá Portugal receber neste princípio de Janeiro, segundo Themydo, e "eventualmente em Janeiro", segundo Medu? A da Pfizer ou a da Moderna (uma vez que as outras ainda estão no limbo). Se for a da Pfizer, como tenciona o Ministério da Saúde resolver o gigantesco problema levantado pela necessidade de conservação a 70 graus negativos, requisito que irá implicar a aquisição e montagem de uma complexa rede de frio? Irá ser necessário, sempre assegurando aquela temperatura, levar do aeroporto até algum armazém central as embalagens contendo as vacinas. Daí, terão de ser transportadas (em camiões que cumpram as condições térmicas extremas) até aos, digamos, armazéns das 5 regiões de saúde (Porto, Coimbra, Lisboa, Évora, Faro), armazéns que deverão, igualmente, garantir os tais menos 70 graus e, daí, terão de seguir ainda para cada centro de saúde, unidade de saúde familiar ou farmácia, locais onde as vacinas são habitualmente administradas. Tudo isto sempre a menos 70 graus, para garantir a estabilidade e a eficácia da vacina, sabendo nós que em países como o Japão, por exemplo, não existe actualmente um único equipamento que garanta tal requisito térmico. Ou tenciona Portugal levar a Lisboa todos os portugueses ao aeroporto para que sejam vacinados nas escadas do avião de carga? Ou desenrascar a coisa caseiramente com recurso a sacos térmicos do Continente, malas de esferovite do Pingo Doce, ou sacos de gelo das bombas de gasolina? Ah, senhores do Ministério, não esqueçam que, em tudo isto, terão ainda de pensar num arquipélago com 9 ilhas (Açores) e num outro com 2 (Madeira).

b) Outro aspecto sobre o qual me interrogo e, penso, como eu dez outros milhões de chatos. Quantas vacinas nos vão chegar em Janeiro? E de quem partiu a iniciativa da encomenda? Escolhemos e pagamos nós o que consideramos mais efectivo, ou é uma daquelas benesses da UE, em que nos arriscamos a ficar para o fim e com o que sobrar? 

Em relação à vacina da Pfizer, pelo menos essa, a quantidade que nos chegar terá sempre de ser dividida por 2, pois a vacinação completa de cada pessoa exige duas doses, intervaladas cerca de três semanas (outra dor de cabeça logística, como tão bem sabem os serviços locais de saúde pública e as enfermeiras da vacinação). Seja-me permitido um pequeno exercício prático: se as primeiras pessoas a vacinar forem os profissionais de saúde (como deveria acontecer, pois é fundamental garantir, desde logo, que continuam em bom estado de saúde para poder tratar o resto do país), isso exigirá cerca de 300.000 doses de vacina. Ou seja: tranches inferiores a cinco ou seis centenas de milhares para pouco irão servir ou, na melhor das hipóteses, atrasarão o processo e darão cabo do prazo que nos garantiu o professor Medu (será que o homem se referia ao Verão de 2022?).

Várias destas dúvidas, e problemas a resolver, deveriam ter sido postos sobre a mesa da tal sessão de que tenho vindo a ocupar-me. Mas que nada: o que mais lhes interessa é manter as constelações alinhadas e as estrelas a brilhar. Foi constituída, já está nomeada, uma Comissão dedicada exclusivamente à vacinação Covid, revelou o Professor Medu com um brilhozinho de zelo nos olhos. Fui ver... Sim, lá está, uma série de gente da mais diversa proveniência, onde estranhei não ver a presença de um único médico especialista em Saúde Pública, daqueles que, em todo o mundo, são responsáveis nesta área desde que existem vacinas e programas de imunização. Em Portugal são mesmo os serviços de Saúde Pública que, por lei, são responsáveis a nível local (nível em que as vacinas são inoculadas nas pessoas) por todo o processo de planeamento, vigilância e avaliação desta actividade. Mas, no mundo das aparências, o pormenor não sobressai: espera-se desses médicos e enfermeiros que, e como foi dito por um alto especialista na tal feira de levante, "depois colaborem". Entretanto, enquanto não são convocados a colaborar, são mantidos entretidos com inquéritos epidemiológicos e rastreios de contactos (esses, sim, em massa) que já não servem para quase nada, dado que numa fase de disseminação comunitária, como aquela em que estamos, qualquer um pode ser suspeito de poder infectar outro e os surtos já não se conseguem individualizar, já pouco interessa saber quem infectou quem enquanto não voltarmos a um número de casos razoável.

Mas não desesperemos. Ouve-se que aqueles que zelam por nós não dormem! Maga Temydo foi vista no aeroporto, sobraçando uma tripeça, e fontes, que pediram para não ser identificadas, garantem ter ido até à Furna do Enxofre, nos Açores vulcânicos, para aí instalar o seu banquinho e, inspirada nas emanações sulfúricas, produzir cruciais profecias sobre a pandemia. Quanto ao Professor Medu, esse também não cochila em serviço, e ter-se-á sujeitado a um boost intensivo da totalidade dos episódios da série Sim, Senhor Ministro. Por tudo isto, caros leitores, tenhamos fé e Viva Portugal!

 

Nota: a primeira imagem é fragmento da capa do álbum One Size Fits All, de Frank Zappa, 1975

 

 

 

17 novembro 2020

UMA LOURA EM APUROS

O gráfico da DGS mostra o número de mortes, por todas as causas e por mil habitantes, referido a Portugal e actualizado a 17 novembro. A mancha mais espessa (castanha) representa, para os meses do ano de Janeiro a Dezembro de 2020, essa tendência nos últimos dez anos (2009-2019), e a linha azul as mortes que o país sofreu desde Janeiro até agora. Uma montanha russa em ascensão ou, antes, uma montanha ibérica, pois se formos comparar, por exemplo, com as mesmíssimas curvas dos países nórdicos, nada disto sucede, sofrem de uma curva tranquila, sem cumes ou aflições especiais. O que nos estará a acontecer, a nós, que entramos no final do outono e nem sequer a gripe ou o frio a sério ainda começaram? Será o Covid? Será quem fica por diagnosticar, por outras doenças e tratar, por causa do Covid? Neve não é certamente e a chuva não bate assim...

Claro que, por cá, a DGS diz que esta mortalidade está "dentro do esperado" (é o que diz sistematicamente) e a nossa loura da Saúde, e os seus anões, evitam comentar ou extrair ilações práticas que resultem em medidas concretas ou alimentem o planeamento do futuro, sempre com medo que apontem o dedo ao ministério, preferindo entreter-se a intoxicar os portugueses com granel: que o refeitório de um determinado hospital vai ser transformado em pavilhão de cuidados intensivos (em fundo a imagem de um senhor num escadote, a martelar um prego pachorrentamente); que quatro doentes foram transferidos do Norte para Lisboa, como se nos resumisse um movimento de jogo num campeonato de damas (em imagem de fundo, o secretário de estado jura que o SNS é flexível como uma trapezista e tem virtualidades insuspeitas, como um canivete Suíço). Mas será que um ministro não tem mais para comunicar do que o rol da lavandaria?,

Ontem, perante a realidade que tudo varre à frente, a senhora, por entre dentes, lá teve de confessar [telejornal SIC] que o tal sistema flexível, que acomodaria tudo quanto aparecesse, afinal "por muito que façamos não há sistemas totalmente inlásticos", e apertou tanto os dentes e torceu tanto a língua que justapôs a  elásticos um prefixo que não era o para ali chamado; de facto o que estava a ser obrigada a admitir é que a flexibilidade já era, mas isso, como admitir as vantagens do uso de máscaras, custa, custa! Custa-lhe, pois depois as TV vão buscar imagens de declarações anteriores, vem aquele Polígrafo, que devia ser proibido! 

Neste era-e-não-era, passou-se algo de semelhante no episódio do recurso aos serviços de saúde privados para ajudar na pandemia. Ainda há quinze dias ela dizia (e se insinuava através do inefável, inalterável e inamovível presidente do conselho de administração da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, agora refém dos militares), dizia, zangada e cheia de razões, que privados nem pensar, pois andavam a tentar parasitar o SNS, etc. Pois, talvez, mas a realidade é a realidade, e é missão de um Ministro antevê-la, navegar por ela e pelos seus escolhos, pois o vírus nem pestaneja com os amuos, ideológicos ou outros. Resultado: lá teve de ir negociar com os privados, inferiorizada pela atitude anterior, aceitando condições que, duas semanas atrás, poderiam ter sido mais macias para o orçamento do erário público. É o que sucede quando se anda a reboque, que é como parece mover-se o Ministério, a reboque do que já aconteceu, do que se diz, a cheirar a cauda a comentários, aflito com as cólicas de pressões avulsas - sem nada para mostrar que corresponda, minimamente, a um planeamento estratégico. 

(Vai formosa e não segura).

Teremos, dizem a cada telejornal, mais não sei quantas camas de cuidados intensivos até ao fim do ano: foi para Diário da República, estão a ser feitas obras, mas acontece que o desastre é agora, não é no fim do ano. E se, no meio do caos, alguém pensou e tentou prever, antecipar medidas fora-da-caixa (como é o caso de alguns hospitais ou de algumas autarquias) lá vai chicotada, lembretes de hierarquias, bloqueios na comunicação e nas finanças, remexidos na bancada. Se é com isto que pretendem enfrentar um vírus que, enquanto esbracejávamos, se aperfeiçoou na capacidade de ataque, estamos fritos. 

 

Nota: Quanto às vacinas, não vamos longe com esta - a da Pfizer - que necessita de frigoríficos a 70 graus negativos para a conservar (o congelador de um frigorífico caseiro anda pelos 4 a 5 graus negativos e as arcas congeladoras pelos 18 a 30 negativos). Com arcas a menos 70, em Portugal, apenas dois ou três serviços centrais (se tanto), muito especializados e longínquos da vocação da prestação de cuidados de saúde. A assim ser, a vacina anunciada será pouco mais do que um feito teórico, pois a rede de frio que implica até chegar às pessoas, as que têm de ser vacinadas, é tremenda, praticamente impossível de obter tecnicamente ou a preço incomportável para uma aplicação maciça. É a diferença entre eficácia (pelos vistos a vacina é 90 % eficaz, o que é muito bom) e exequibilidade (é muito boa, mas se não se consegue chegar lá, como as uvas da fábula da raposa).  

 

09 novembro 2020

A FUGA DO PAI NATAL

Coitado do Gerónimo de Sousa. Será que ninguém, lá em casa, lhe poderia dizer que, enfim, não existe Pai Natal, e, portanto, arredá-lo um pouco da boca de cena e das luzes? Suponho que não, afinal, por ali, vive-se naquele ambiente de quimera, do vermelho e das renas voadoras, é um pouco como se fosse um gueto no Polo Norte. Mas, insisto, alguém lhe deveria dizer que, enfim, todas estas medidas anti-Covid19 ultrapassam as miríficas liberdades, que ele gosta de supor e menos de praticar, que são mesmo necessárias, e não se compadecem com organizações e princípios organizativos, nomeadamente com um Congresso que ele vai ter daqui a uns dias. 

Houve uma falha na Natureza e, por ela, entrou alguma coisa que, embora invisível, é, portanto, mais forte do que tudo o resto, varre tudo o resto, e que, enfim, em boa verdade, ninguém lhe quer fechar os brinquedos no armário ou chamar de volta o papão antigo. Ninguém está interessado nisso, ninguém tem tempo para isso.  Explicar-lhe, também, que, enfim, não é somente com reforços no Serviço Nacional de Saúde que se resolve isto, de algum modo isto não tem a resolução clara e simples com que ele sonha, se ele mandasse, e, coitado, o seu querido Serviço Nacional (o alfinete de peito que restou das conquistas de Abril) está escavacado de todo - como se tem assistido nestes últimos anos e particularmente por estes dias - e que para isso ajudaram bastante alguns daqueles que, ar grave e digno, se aprestam agora a assinar cartas-abertas, a pagar pelo destinatário, e a propor cuidados-intensivos que o ressuscitem, mas que, enfim, praticaram absolutamente o inverso quando estavam por lá sentados e, conscienciosamente, fizeram do SNS uma coisa para adultos, baseada no sólido princípio "se quer receber pague, se não puder pagar fique a assistir", pode ser que chegue a sua vez, uma vez que os impostos só pagam a máquina das senhas.


Pobre Gerónimo, apertou-se-me o coração de o ver ali, visceralmente incapaz de recorrer à manha e à banha de um Ventura, perseguido por câmaras e microfones, aflito, sem perceber, portanto, o mundo em que se move e o que lhe está a acontecer, balbuciando em torno de teorias de conspiração e almejando bravatas que já não consegue inspirar. No fundo, no fundo, enfim, isto do vírus, ele sempre desconfiou que poderia haver ali outra coisa mais sinistra. Entre as máscaras, o gel e, portanto, a democracia, o seu coração balança, sempre balançou. E o pobre homem ali fica, na boca de cena, confuso, pasmando para uma hipotética democracia interrompida, fazendo lembrar o velho palhaço-pobre, que, sob um candeeiro de iluminação pública, no chão pisoteado da tenda já levantada, não se apercebeu que as roulottes e as autocaravanas já seguem estrada fora e ele ficou ali, sozinho, portanto esquecido, recortado na noite que arrefeceu.  

05 novembro 2020

O CAOS EM DESORDEM

Quando for rico vou querer contratar o secretário de estado da saúde Sales para vir tratar-me das nódoas difíceis, como aquelas que resultam de nos esquecermos do avental e do azeite de fritar a entremeada nos saltar para a caxemira. Não me digam que o perderam ontem (vale a pena) nas famosas conferências de imprensa enlatadas, a jurar que afinal os 7.500 casos de Covid19 do dia não eram, afinal, tantos, pois alguém, malvado, se esqueceu de comunicar os casos de outros dias e eles em Lisboa sem saber de nada, que nunca ninguém lhe diz nada, coitados. Assim, para o sossego de todos, aquela barbaridade de casos deverá ser distribuída em suaves prestações. Encostei-me logo para trás no sofá, a mão no balde de pipocas e os olhos no LCD, morto por mais ansiolítico. E ele diz logo que o índice de contágio está a diminuir a olhos vistos no país, até no Norte, esse pequeno Huan português. Olhei de lado, mirei a Francelina com orgulho, como quem diz: "Assim vale a pena ser governado, com esta limpeza, sem necessidade de recolher obrigatório, sem assentos vagos nos aviões, sem restringir liberdades..." 

Em seguida o nosso homem desaparece do ecrã, o telejornal continua e a desgraça abate-se aos nossos olhos, mas isso (até desabafei com a Francelina) deve ser pelos mesmos motivos que o Trump se queixa tanto dos órgãos noticiosos, é tudo shaike news para nos desestabilizar a digestão ou, dando desconto, serão fenómenos episódicos, esporádicos, residuais, que o país recomenda-se, apesar de os Lares parecerem Peta-Zetas, de os hospitais rebentarem pelas costuras, de os casos de internamento por Covid aumentarem, de os doentes em cuidados intensivos aumentarem, de o número de consultas por Covid estar a aumentar em grande nos Cuidados de Saúde Primários, do número de pneumonias a crescer, do número de morte em geral sobe-sobe-balão-sobe.

E depois - tudo num mesmo telejornal - trazem o bolo com a granada em cima: os militares invadiram a Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, fardados e tudo, e vão passar a ser eles a tratar de distribuir os internamentos por Covid na dezena e meia de hospitais da região (4 milhões de habitantes), pois, pelos vistos, o Ministério da Saúde não consegue fazer isto. 

"Roger. Código Cravinho: Doente de Beatriz Ângelo para Médio Tejo. Afirmativo."

"Roger, contrassenha Noz Moscada. Negativo: Médio Tejo kapute. Alternativa Hospital Mealhada. Roger."

"Roger. Noz Moscada no canal. Negativo: Mealhada Área 2, fora área: Zona Centro não aceita doentes Área 1. Roger.

"Roger, Cravinho. Vamos levar assunto a reunião bipartida Defesa-Saúde. Doente que aguarde. Roger.

Os meus olhos não queriam acreditar no certificado de incapacidade a que estava a assistir. Não que não veja as Forças Armadas a participar numa pandemia, sei que são importantes, mas em fases tão específicas, e algumas delas tão assustadoras, que nem quero estar aqui a falar delas (procurem nos manuais de controlo de epidemias). Mas para planear o uso de camas hospitalares?! Tornarem-se os militares indispensáveis para dizer aos órgãos responsáveis por planear e decidir sobre isso mesmo (está na Missão estatutária das ARS, aprovada por lei) quantas vagas existem nos hospitais sob sua responsabilidade e virem explicar como se resolve o problema de um internamento quando não existe vaga num sítio mas pode existir no outro ao lado?! Meu Deus, é pior ainda do que eu imaginava. Há muitos anos que não é novidade para quem andou por lá que o Ministério da Saúde não tem nenhum órgão sério de Planeamento em Saúde e que tem resistido a todas as tentativas para o criar e desenvolver, embora tenha boa prata da casa para tratar disso. 

Mas isto? É o caos em desordem e iremos pagá-lo caro.  

 

31 outubro 2020

MORTOS, FINADOS & MAL PAGOS

Se aplicarmos uma regra de 3 simples aos nossos actuais, e modestos, 4.000 casos por dia de Covid19 (para a semana serão 7.000, depois talvez mais), 3 % destes irão morrer diariamente da doença (120 a 200/dia) e 1 % (40 a 60, dia) irão parar a Cuidados Intensivos em cada dia que passa. Mas estes resultados não se mostrarão equitativos, como gosta a política correcta: os mortos apagam-se num instante, não pesarão, morrem e está feito; já os dos cuidados intensivos não podem ser descontados com a mesma facilidade, pois irão permanecer por lá durante 3 ou 4 semanas, vão entupir aquilo, rebentar com aquilo, obrigar a que outros Serviços contribuam e venham reforçar esse papel, descurando as outras doenças que continuam a existir e a matar. 

No entanto, os mortos que nos mostram parecem poucos se comparados com os que era suposto esperar, e detenho-me um minuto de silêncio a pensar sobre uma particularidade que está a suceder com as mortes em geral: tradicionalmente, os portugueses são, na hora de decidir, avessos a morrer em casa, vão morrer, triste e abandonadamente, aos hospitais. Mas o que parece acontecer recentemente é que o número dos que morrem em casa está a aumentar. O que quererá isto dizer? A razão talvez seja simples: as pessoas acabam por morrer em casa por receio de ir bater à porta dos hospitais (encarados actualmente como locais perigosos), por o acesso se ter tornado mais complicado, e ainda por estas instituições terem sido obrigadas, pela pandemia, a encolher os Serviços que recebem outras doenças graves (como AVC ou enfartes), alguns deles reconvertidos para se dedicar ao Covid19. Do lado dos hospitais, não há outra solução, não os podemos criticar por isso, adaptam-se ao tsunami que lhes bateu à porta e, avisadamente, não esperam por orientação de Lisboa, sobretudo se na outra ponta da balança o poder se entretém em negaças e cócegas à realidade e às soluções que esta exige, já. No que, por exemplo, diz respeito aos mortos acontecidos o que faz quem tem a varinha mágica? Decreta que todos os mortos serão louvados na data apropriada: 2 de Novembro, dia de luto nacional. Bom e barato.

Agora, que a segunda vaga (ou onda, ou chicotada) se abate sobre o país como granizo - e irá piorar até longe em Novembro, até que o vírus se canse e hiberne um pouco -, o que se ouve, com estupefação, através da TV? O Governo irá tomar medidas robustas em Dezembro, para precaver o Natal e os seus perigos. Isto é, pré-anuncia que irá tomar medidas daqui a um mês! Um mês? E, entretanto, até lá? A gente sabe lá como vai chegar a Dezembro, de que modo este Novembro irá condicionar Dezembro! Basta olhar em volta, já, para ver como gemem os nossos vizinhos europeus, todos a apressar e a pôr em prática medidas fortes, lógicas. E nós? Bem, para já vão-se experimentando corridas de automóveis para 27.000, a ver o que daí advém; interdita-se a ida aos cemitérios nos Finados; torna-se a máscara obrigatória, mas com generosas excepções, para não melindrar ninguém. Depois, em Dezembro proíbe-se o Natal e o Ano Novo, a não ser que venha a ser demonstrado que é inconstitucional, ou desproporcional, ou a evidência demonstre que o champagne protege do vírus. É com isso que, para já, andam entretidos em Lisboa, enquanto os lares (de idosos) continuam a estourar como castanhas e as escolas fervilham de casos e surtos e as famílias e os professores andam loucos com o que fazer aos casos, aos contactos, aos contactos dos contactos. Mas os ministros continuam serenos, dizem que não há evidência, que são situações pontuais, que tudo vai andando em direcção ao sucesso; e, atrás deles, os secretários de estado vêm e dizem que até já estivemos pior em Abril. 

Não há contraste mais flagrante do que o ver e ouvir falar os médicos (ou outros profissionais, sobretudo hospitalares) que trabalham no olho do furacão e comparar a sua aflição amarga com a ruminação política e o refluxo dos outros que, embora técnicos de saúde, cumprem o papel de esteticistas do poder. 

Nenhum dos primeiros pestaneja ou se encolhe a descrever o que se passa, o que lhes bate à porta, ou a avisar o que vai acontecer e o que ainda pode ser feito, enquanto os douradores à chamada continuam, com vagar, a pintar a pílula, a anunciar que irão reunir para a semana, a garantir que há ainda virtualidades e flexibilidades no Sistema, que os serviços de saúde privados, conforme os dias e a latitude, talvez ajudem ou talvez não. 

É supremo mistério o motivo pelo qual estes Eleitos (embora, internamente, não desconheçam o que se passa ou avizinha) não desistem, para o exterior, de negar a realidade, de a tentar mascarar ou esconder a todo o custo, e, se ela extravasa pelas costuras (tão visivelmente que qualquer jornalista se aperceberá), continuarão a tentar esbatê-la pela comparação pacóvia com os que ainda estão piores que nós, a meter os pés pelas mãos. Bastar-lhes-ia, supõe-se, um nadinha de coragem para comunicar o que as coisas são, com o que se pode contar, ninguém iria levar a mal e todos agradeceriam. Mas um dogma, por definição, não se explica: está fora de causa falar claro e coerentemente, e ai do primeiro que se atreva. Entretanto, no quadro mundial de casos confirmados de Covid19, Portugal, uma migalha de dez milhões de almas, saltou rapidamente do 50.º lugar, onde se mantinha há meses, para o 37.º Que importa? Não sejamos tão pessimistas: estamos ao lado dos grandes e, mesmo assim, quase tão bem como a Coreia do Norte. 

Actualização: Publicado há apenas 3 dias, os números que invocava já foram ultrapassados pela crua realidade. Hoje (4 de novembro) os casos confirmados serão cerca de 7.500, os mortos 60 (um com menos de 45 anos) e brevemente rondarão os 200/dia. É de esperar que os cuidados intensivos venham a atingir mais de 600 internados em breve. Alguns hospitais assemelham-se já ao que vimos acontecer em Itália, com doentes a morrer pelos corredores. E qual continua a ser a atitude geral de quem comanda? Lixiviar a coisa, branquear, mandar calar quem tiver notícias desagradáveis a mostrar. Em nome de "não instalar o pânico", dizem eles, mas, de facto, para manter os fundilhos colados ao poder pelo seguimento cego da voz do dono. Vem-me à mente a letra da velha canção: "Quanto custa aquele cãozinho ali na montra, aquele com a cauda a abanar?"       

© Fotografia de cima: Carolina Berhan, Manteigas 2020.