"Edite, soltaram o Cabrita!", gritei do sofá para a cozinha, onde ela estava ao micro-ondas.
"Puxa aí no riwainde", disse a mulher, regressando à sala com as fatias aquecidas da telepiza.
A Edite nunca perde uma das aparições do ministro da administração interna, segue-o, como um relógio, desde o tempo dos incêndios. Puxei o telejornal para trás e lá vinha ele a toda a brida, a rebentar pelas costuras, com aquele ar raivoso e de olhos esbugalhados que Deus lhe deu, tão parecido com o boxer do nosso vizinho que, sempre que o vejo surgir, me dá na ideia saltar para cima de um banco, a resguardar as canelas. Mas desta vez, coitado, estávamos a ser injustos, que o homem vinha só gabar o comportamento exemplar dos portugueses durante o 2.º confinamento, ainda mais espectacular que no 1.º. Que ele não disse confinamento, usou um daqueles termos proporcionais permitidos pela Constituição e sancionados pelo governo.
Tinha chegado a minha vez de ir à cozinha buscar a sobremesa: um diospiro para a Edite e uma gelatina Royal para mim e, quando voltei ao sofá, já estava a falar a ministra do trabalho, a...., nunca me lembro do nome dela.
"É qualquer coisa Godinho...", esclareceu a Edite, que é melhor para nomes do que eu.
Mas era ela, sem dúvida, a carita deslavada de catequista e aquele olharzinho de "a mim não enganas tu" com que sempre brinda os cidadãos. E, lá está, era mais uma ensaboadela dessas: então não é que havia cidadãos que pensavam que, agora nos feriados confitados, podiam ficar em casa com os pirralhos e receber um complemento, mesmo trabalhando na privada?! Isso é que era bom, esclareceu logo a ministra, sacando, de memória, da alínea f), do número 32, do artigo XVII do Decreto-Lei n.º não sei quantos, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto... Conclusão: ninguém tem direito a coisa nenhuma, quando muito podem ver a falta justificada! Ou esses cidadãos pensavam que eram algum Novo Banco, ou TAP, ou algum dos colegas dela bem-sucedidos na vida, que entraram na política com uma mão à frente e outra na rectaguarda e saem com casa na Comporta e andar na Expo sem que a Van Dunen lhes chegue?
Mas já aparecia a ministra da saúde e, dos realití xou que já vi, não há melhor, bate o Quem Quer Casar Com o Agricultor, aos palmos - eles deviam pensar fazer um com os ministros todos, em que se veriam 24 horas por dia. A esta, nunca perco a esperança de, um dia, quando as câmaras a filmarem pela perspectiva dos da linguagem gestual, ver o que é que ela está sempre a olhar no telemóvel, que, mesmo durante as conferências de imprensa e os conselhos de ministros, ela nunca o larga! Aquilo devem ser dados que lhe chegam às catadupas: surtos em lares, refeitórios adaptados a cuidados intensivos, torres de refrigeração com legionela, doentes transferidos para a Trofa, coisas assim. Ora os jornalistas estão a perguntar-lhe qual é a probabilidade de, ao contrário do que sucederá nos outros países europeus, as vacinas do Covid19 não chegarem cá ao mesmo tempo que aos outros. "Zero por cento", diz ela sem pestanejar, com aquela certeza que Deus Nosso Senhor lhe concedeu. A Edite, ao meu lado no sofá, até grunhiu de satisfação:
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Senhor, faz com que chegue em Janeiro..
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"Antunes" (trata-me sempre pelo meu nome de família), "esta é que é esperta! Viste, já está a adaptar a linguagem." E como eu não alcançasse onde queria chegar, explicou-me que aquilo da ministra estar a falar em "zero" era já uma linguagem influenciada pelas vacinas que, se Deus permitir, hão-de chegar cá. "Então, não sabes que aquilo é tudo abaixo de zero? Há uma que precisa de estar a 70 graus? E outra a vinte, abaixo de zero? Já se está a preparar, a moldar."
"Achas?", perguntei, "achas que já se estão a preparar?"
"Sem dúvida! O quê, ninguém sabe, mas a Leontilde disse-me que tinha ouvido dizer que eles até já têm nomes de código para as vacinas que vierem a chegar: parece que, se for a mais fria, a campanha vai chamar-se Capitão Iglo, se for a outra, que ainda é congelada mas menos, será Mini Magnum, e se for a chinesa, que também deve ser congelada (eles ainda não sabem bem, estão à espera que a Agência Europeia lhes diga), vai ser Mistura Oriental (para Wok).
"Tu achas?"
"Acho, não: sei. Diz que tem tudo previsto, como eles já têm no estrangeiro, só que aqui é mais secreto, ainda não nos disseram, para não dar azar. Elas podem chegar, a qualquer momento, pelo aeroporto, no TGV espanhol ou, até, de cacilheiro, se forem as chinesas e vierem por Sines."
Fiquei arrombado com aquela capacidade de planeamento e previsão miudinha e, ainda mais, quando soube que, só para tratar de uma simples vacina, havia duas comissões e tinham chamado até os militares! Mas, ainda eu me embasbacava, e já mostravam no ecrã as imagens de um complexo fabril abandonado, lá para Coimbra, onde as vacinas iam ficar guardadas até chegar o horário de picarem as pessoas. Mostraram o prédio, um barracão esverdeado, todo empoeirado por dentro, a precisar de obras e daquele senhor que aparece sempre na TV, empoleirado num escadote a atarraxar uma coisa.
"Mas, então, isto não devia ser secreto?", pergunta a Edite. "Com tanta gente aí à míngua de vacina, com a propaganda que eles têm feito no governo, até pode haver alguns meliantes a querer roubá-la, para a tomar antes de todos ou vendê-la para a Venezuela, para África, para um paraíso fiscal"
"Estás a sonhar mulher, não sejas descrente! Não vês que eles contrataram os militares! Isto, quando chegar, só vai sair de Coimbra de Chaimite! Ouviu-se dizer que tinham pensado, inicialmente, escondê-las em Tancos. Só que depois consultaram o Nuno Rogeiro e ele achou que, "dados os precedentes", era melhor não..."
"Ai, Antunes, quando chegará a nossa vez de sermos convocados? Ou achas que vamos ter de encomendar na farmácia?"
"Na farmácia?! Tu achas que há militares que cheguem para pôr um em cada farmácia? E aqueles frigoríficos, quase no zero absoluto! Nas farmácias? Tá bem, tá!"
"Sim, mas quando achas que será a nossa vez?"
"Antes de Janeiro não vai ser, não ouviste a Ministra? E no Verão já deve estar tudo mais ou menos vacinado. De modo que lá para a altura da entrega do IRS... Ouve o que ela diz!"
"Sim, sim, com o que essa diz posso eu bem. Agora anda toda arrebitada com isto de haver vacina, até que enfim lhe aparece alguma coisa a que se agarrar de 'luz ao fundo do túnel'. Olha que, dos mortos, não fala ela agora..."
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Portugal:mortes diárias por Covid19. Março a Novembro de 2020.
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"Quais mortos?"
"Estás obtuso! Não te lembras - não vai assim há tanto - de virem com a teoria de que o número de casos não interessava, que a gravidade da situação tinha de ser medida pelos mortos e pelos internados nos intensivismos?"
"Sim, todos eles papagueavam isso, lá devem ter aprendido com os especialistas. O que não há meio é de conseguirem dizer epidemiológico sem se engasgar."
"Tropeçam no mio, coitados. Mas agora, Antunes, viraram a agulha para as vacinas, que ainda nem sequer foram aprovadas e já é um disco riscado! Mas tu já viste a quantidade de mortos? No começo do pandemónio demoraram cinco meses a duplicar, agora duplicam a cada quinze dias!"
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Portugal. Utilização de camas em cuidados intensivos. Março 2020-Março 2021. A linha verde horizontal representa a capacidade disponível.
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"Edite, às vezes nem te percebo. Então tu achas que eles iam querer falar disso, do que lhes corre ao arrepio? Olha para ela, olha para os outros, quando os apertam e lhe pedem que sejam concretos... Tornam a conversa redonda como bolas de ping-pong""Está bom de ver..", suspirou a Edite, mudando de canal, "agora vai ser vacinas até a gente as vomitar e, entretanto, quem tiver de morrer..."
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Portugal. Mortalidade actual por Covid e projecção no futuro (até Março 2021).
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Nota: Estatísticas e gráficos do Worldmeter e do The Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), University of Washington.