25 março 2018

SACO ROTO (rescaldo dos incêndios)

Estava-se a ver, se tivermos em conta o que a casa gasta e os antecedentes, isto é, as reacções prévias, proferidas e bolsadas durante os dois incêndios, primeiro o de Pedrogão e depois os de Outubro. “Não tenho nada a ver com isso, a culpa é deles”, sendo este eles primeiro as vítimas e, em seguida, quando as reacções nacionais de indignação lhes surpreenderam os barómetros eleitorais, os outros, aqueles em quem podem mandar, naquela escala descendente de grito e ameaça que só pára no mexilhão. Era bom de prever.
E como, graças a Deus, já se tinham livrado da chorona dos abraços e do  respectivo ajudante, puderam mandar o animal de águas profundas, a suprema enguia, a lampreia catedrática, enfrentar as câmaras da TV, agora que alguém se tinha de chegar à frente após a divulgação pública do relatório sobre os incêndios de Outubro da Comissão Independente.
Pobre Clara de Sousa, que foi quem, na SIC, aguentou o primeiro embate! No começo da entrevista fez o que lhe competia, perguntou, com assertividade, estribando-se nos resultados vindos a lume. Mas a enguia velha de serviço é perita – e isso integra o rol das suas habilitações – em não responder ao que se lhe pergunta, só conhece a pega de cernelha, e ora nos vinha com as condições meteorológicas de excepção (tipo: a culpa é dos céus mas a sua corte é inimputável) ou com o “a maior parte do que está no relatório já foi incorporado nas medidas do executivo”. Então e responsabilidades? Não há, diz ele nunca o dizendo. E o que podia ter sido feito e não foi? Não podia ter sido feito mais nada, aquilo foi uma piro-coisa excepcional. E o que tenciona o Governo fazer, tendo por base o que o relatório aponta e recomenda? Nada, diz ele sem o dizer, já está tudo incorporado.... E pronto, a enguia fez a sua dança, a boca circular cuidadosamente cerrada para que não se lhe espete o anzol, danificando a ventosa. E Clara desistiu, zonza de tanta elipse, estafada de tentar agarrar o vácuo e incapaz de igualar o fôlego destes animais de águas profundas, habituados a soltar cortinas de fumo e a enterrar-se no lodo só com os olhinhos de fora, a vigiar de que lado virá a próxima tempestade. Teve ainda tempo, o tal ser invertebrado, para deixar a nota engraçadinha de que o executivo é tão atento à equidade que até a quota dos géneros tem sido cumprida nos nomes de código justamente escolhidos para os furações: a seguir à Gisela virá o Hugo.
Com o grande exemplo público de um dos nossos mais hábeis governantes estava aberta a porta para se poder continuar a negar os resultados do relatório e a bicha constitui-se de imediato: lá veio o Mexia da EDP, a enguia eléctrica; lá veio o Costa, a enguia Vamos-Lá-Ver; lá reeditaram mesmo o Jorge Gomes, a enguia fumada; e tivemos de voltar a gramar os trejeitos mal sintonizados de Constança – a enguia cabisbaixa – na Assembleia da República.
Cabrita sapador.
Estava a levantar-me do sofá, a ir procurar algum bálsamo para a azia, quando apareceu na tela João Guerreiro, o responsável da Comissão Independente. No final da entrevista suspirei de consolo por parecer restar ainda alguém interessado em dizer o que é de dizer; de responder com frontalidade, serenidade e sensatez ao que lhe é perguntado, e com utilidade para quem ouve e quer ser informado. Vai valer-lhe de pouco, pobre senhor: já todos o amaldiçoam pelo trabalho isento e cuidado que produziu; já todos se indignam e apontam falhas; já todos se inscrevem para ir limpar pinhais e matas pelo país fora, os grandes timoneiros do país a exemplificar ao povo como, com umas piruetas e a faculdade de engolir e digerir seja o que for, qualquer um pode virar uma autêntica cabra sapador

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