Estava-se
a ver, se tivermos em conta o que a casa gasta e os antecedentes, isto é, as
reacções prévias, proferidas e bolsadas durante os dois incêndios, primeiro o
de Pedrogão e depois os de Outubro. “Não tenho nada a ver com isso, a culpa é
deles”, sendo este eles primeiro as
vítimas e, em seguida, quando as reacções nacionais de indignação lhes
surpreenderam os barómetros eleitorais, os outros, aqueles em quem podem mandar,
naquela escala descendente de grito e ameaça que só pára no mexilhão. Era bom
de prever.
E
como, graças a Deus, já se tinham livrado da chorona dos abraços e do respectivo ajudante, puderam mandar o animal
de águas profundas, a suprema enguia, a lampreia catedrática, enfrentar as
câmaras da TV, agora que alguém se tinha de chegar à frente após a divulgação
pública do relatório sobre os incêndios de Outubro da Comissão Independente.
Pobre
Clara de Sousa, que foi quem, na SIC, aguentou o primeiro embate! No começo da
entrevista fez o que lhe competia, perguntou, com assertividade, estribando-se nos
resultados vindos a lume. Mas a enguia velha de serviço é perita – e isso
integra o rol das suas habilitações – em não responder ao que se lhe pergunta,
só conhece a pega de cernelha, e ora nos vinha com as condições meteorológicas
de excepção (tipo: a culpa é dos céus mas a sua corte é inimputável) ou com o
“a maior parte do que está no relatório já foi incorporado nas medidas do
executivo”. Então e responsabilidades? Não há, diz ele nunca o dizendo. E o que
podia ter sido feito e não foi? Não podia ter sido feito mais nada, aquilo foi
uma piro-coisa excepcional. E o que tenciona o Governo fazer, tendo por base o
que o relatório aponta e recomenda? Nada, diz ele sem o dizer, já está tudo
incorporado.... E pronto, a enguia fez a sua dança, a boca circular
cuidadosamente cerrada para que não se lhe espete o anzol, danificando a
ventosa. E Clara desistiu, zonza de tanta elipse, estafada de tentar agarrar o
vácuo e incapaz de igualar o fôlego destes animais de águas profundas,
habituados a soltar cortinas de fumo e a enterrar-se no lodo só com os olhinhos
de fora, a vigiar de que lado virá a próxima tempestade. Teve ainda tempo, o
tal ser invertebrado, para deixar a nota engraçadinha de que o executivo é tão
atento à equidade que até a quota dos géneros tem sido cumprida nos nomes de
código justamente escolhidos para os furações: a seguir à Gisela virá o Hugo.
Com o
grande exemplo público de um dos nossos mais hábeis governantes estava aberta a
porta para se poder continuar a negar os resultados do relatório e a bicha
constitui-se de imediato: lá veio o Mexia da EDP, a enguia eléctrica; lá veio o
Costa, a enguia Vamos-Lá-Ver; lá reeditaram mesmo o Jorge Gomes, a enguia
fumada; e tivemos de voltar a gramar os trejeitos mal sintonizados de Constança
– a enguia cabisbaixa – na Assembleia da República.
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Cabrita sapador. |
Estava a levantar-me do sofá, a ir procurar algum bálsamo para a azia, quando apareceu na tela João Guerreiro, o responsável da
Comissão Independente. No final da entrevista suspirei de consolo por parecer restar
ainda alguém interessado em dizer o que é de dizer; de responder com
frontalidade, serenidade e sensatez ao que lhe é perguntado, e com utilidade
para quem ouve e quer ser informado. Vai valer-lhe de pouco, pobre senhor: já
todos o amaldiçoam pelo trabalho isento e cuidado que produziu; já todos se
indignam e apontam falhas; já todos se inscrevem para ir limpar pinhais e matas
pelo país fora, os grandes timoneiros do país a exemplificar ao povo como, com umas
piruetas e a faculdade de engolir e digerir seja o que for, qualquer um pode virar
uma autêntica cabra sapador
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