Pois acontece que reincidi na esparrela de perder tempo a ver um filme de Jane Campion. Mas toda a gente, até os periódicos mais confiáveis, falava na maravilha que aquilo era, candidato a uma meia-dúzia de Óscares; ao referi-lo, as pessoas reviravam as pestanas em direcção ao céu, etc. Ainda por cima, era acessível através de um simples clic na Netflix.
Ao fim de cinco minutos de visionamento, o alarme do costume começou a zunir ao fundo de mim, mas, que diabo, talvez que a história se fosse desenvolver, revelar, e o filme desabrochar: o melhor seria continuar a tentar... E continuei, forcei-me a ver até ao fim e com isso ganhei o Óscar do patego a quem venderam caniche por cão!
Ainda por cima, a mãe casou com o rico fazendeiro Burbank (Jesse Piemons, parceiro de Kirsten Dunst em Fargo e na vida real, igualmente bom actor e na moda, a quem Campion faz flutuar pelo cenário como uma alma penada que desconhece onde há-de aterrar). Esse rico fazendeiro, vá-se lá saber porquê, possui uma rica mansão no meio do nada, mansão onde mora com um irmão (Benedict Cumberbatch, igualmente muito requisitado actualmente como actor, mas de desempenho bastante histérico e medíocre sob a batuta da realizadora), parente que é um autêntico poço de maldade: agressivo, intolerante, não se lava, e tem uma especial predilecção por perseguir e achincalhar os tiques do novo sobrinho, circunstância que acaba por levar a mãe, sob o desgosto e a impotência, a abusar da pinga às escondidas.
E a partir deste momento seminal tudo muda! De uma hora para a outra, uma criadita que nunca saía dos fundos da cozinha passa a jogar ténis com os patrões; tio e sobrinho tornam-se inseparáveis e fazem longas viagens a cavalo para uma montanha próxima envolvida em mistério, mistérios que nunca se virão a compreender com total clareza. Mas sucede que o rapaz, apesar do grande ascendente amoroso que ganhou sobre o tio, é vingativo e não lhe perdoa as provações anteriores, o modo como tratou a mãe que, nas lonas, continua a beber à sorrelfa. Após uma viagem solitária à tal montanha, o rapaz vem de lá com um pedaço de pele de vaca contaminado por carbúnculo, courato com o qual mata o tio, que estrebucha em convulsões horrendas antes de nos deixar.
No meio de toda esta confusão (por onde paira, entretanto, o marido de Dunst?), Jane Campion ainda arranja espaço para importar para o ecrã, numa participação a que mal se alcança a razão, mais um monstro da representação: a maravilhosa Frances Conroy, a mãe na série Sete Palmos de Terra. A pobre senhora aparece por poucos segundos e mal a conseguimos reconhecer, pois a cenas desenrola-se, numa escuridão artística, no interior da mansão no meio do nada onde mora toda esta gentinha.
Tudo é mau e gratuito neste filme: a consistência e a clareza da narrativa; a direcção dos actores, que vagueiam sem saber o que fazer; a banda sonora; os enquadramentos gratuitos; o simbolismo de pacotilha; a beleza de bilhete-postal.
Mas, ficou-se ontem a saber, ganhou o Óscar de melhor realização! Valha-nos que não conquistou os outros óscares todos que ameaçava ganhar, mas mesmo assim... Qual será o mistério do prémio? É claro que o filme inclui os ingredientes com que se vendem os chocolates hoje em dia, não propriamente os dizeres garantindo que foi manufacturado com ingredientes sustentáveis, mas antes a etiqueta de que vai haver por ali oprimidos, discriminados, e as opções de género sem as quais hoje em dia nada é comerciável.
Tirando isso, e tentando cingir-nos à Sétima Arte, pela amostra parece que o cinema americano deu o que tinha a dar; é uma dor de alma constatá-lo. Se não fossem as cinematografias exóticas (chinesa, iraniana, sul-coreana) não haveria esperança e poderíamos mesmo considerar a sétima arte como bizarria extinta.