31 outubro 2017
25 outubro 2017
REGRESSO
Bô dixam bai salvá nha Mãe...
Francisco Xavier da Cruz, "Mar Azul".
Francisco Xavier da Cruz, "Mar Azul".
Vamos quase em novembro e, por todo este
ano, ainda não caiu uma pinga de água no Maio. Enquanto sonha o verde tenro, o
solo mantém-se seco, árido, malgrado a vegetação plantada para fixar terras e
contrariar a erosão. A poeira é omnipresente.
O Maio é uma das nove ilhas habitadas
do arquipélago de Cabo Verde e uma das mais periféricas na lembrança, pois não
é capital, como Santiago, não possui o carisma de S. Vicente, os estonteantes
contrastes de Santo Antão ou os resorts
all inclusive da Boavista e do Sal.
No Maio, o mais notório é a plana monotonia
da paisagem que restou de um vulcão depois de extinto e aplanado por duzentos
milhões de anos de ventos soprados até ali desde o norte desértico de África.
Nessa
manhã de Domingo, pelas dez horas, uma das duas carrinhas Toyota passou pela
casa Amarela para nos buscar. A outra, tal como a nossa, andava a levantar pó
pela vila de Porto Inglês e a pegar os restantes, pois, ao todo, seríamos uns
vinte e cinco viajantes, os mesmos, em versão folgada, dos que tomavam parte no
encontro médico que o liceu Horace Silver albergava durante uns dias. O
programa desse dia consistia numa excursão à ilha, a qual incluiria uma visita
ao centro de saúde e se concluiria com um almoço num alpendre com vista para o
mar na residência onde estava hospedada a Maria da Luz, nossa anfitriã e de
quem partira a ideia de reunir todos os delegados de saúde de Cabo Verde. Três
horas bastariam para percorrer tudo quanto merecia ser visitado, ao que parecia,
pois a ilha é pequena: 25 km de comprimento por 15 de largura.
Catados um a um, entre risos e
conversas, arrancámos sob um sol abrasador, o astro esquecido de que despontara
há apenas quatro horas.
Barreiro, Figueira Seca, Pilão Cão, eu
ia reparando no nome de localidades que atravessávamos sem parar e de que a
memória apenas retinha uma rua paralisada pelo calor. Entre duas localidades,
nenhuma gente, somente aridez e pó e, aqui e ali, uns pés de milho desanimados,
que mal ousavam a espiga; algumas verduras domésticas envergonhadas e os perfis
magros de vacas e cabras que vagueavam na aspereza de encontrar sustento. Longe
a longe, sem aviso, a explosão verde de um arbusto, numa cor excessiva para o
leito arenoso e ocre de onde se erguia, fazia insuflar-me o peito com uma
inspiração esperançada, como se tivesse acabado de engolir um gole de água
fresca.
Há demorados minutos que deixáramos de
ver o mar, e até as conversas tinham fenecido sob o calor, quando os meus olhos
repararam numa tabuleta anunciando CASCABULHO e logo senti as carrinhas a travar
num lugarejo que parecia ser constituído por uma única rua, em cujos becos
espreitava a aridez do campo ou o verde empoeirado de uma acácia. “É para sair?”
perguntámo-nos. Parecia que sim, e enquanto aguardava a vez de chegar à porta
do veículo, chamou-me a atenção uma imensa panela que, no meio da rua, fumegava
sobre brasas. Que seria aquilo?
A aldeia consistia numa rua de chão
calcetado à mão-cheia, ladeada por casas de piso térreo, sem intervalo entre
elas, e a casa em frente à qual, sob um loureiro-rosa em flor, fervia o
panelão, pintava-se de azul intenso, amenizado por frontões brancos sobre as
janelas. Dei por mim atraído pelo movimento que se encaminhava para a porta da
pequena moradia, a ser saudado por um “seja muito bem-vindo” e um convite para
entrar. Entrei, os meus olhos notaram a luz violenta que se infiltrava pela
telha vã dos compartimentos; fui acenando em volta enquanto progredia pelas divisões
apertadas, sentindo que atrapalhava as mulheres e raparigas que se afadigavam
com travessas, pratos, talheres e esticavam entre as mãos oleados para cobrir
as mesas postas no exterior, sob a sombra, curta mas generosa, do loureiro-rosa.
Do interior de uma das janelas da casa um rapazito dispunha sobre o peitoril
duas pequenas colunas de som, ligadas a um smartphone
cuja música, em volume máximo, contaminava o ambiente e acenava à gente das
redondezas. Que seria aquilo, quem seria o insensato que se dispusera a
receber, para uma paragem apressada em nenhures, aquela quantidade de gente?!
Ia perguntá-lo a um colega que, como
eu, se abrigava do calor sob o beiral estreito da casa quando uma brigada de
rapazes nos empurrou para dispor nessa sombra dois ou três bancos corridos que
tinham tomado, em empréstimo urgente, à capela local. E estava a festa pronta e
a decorrer, e ainda as toalhas de oleado com frutas alegres estampadas ondeavam
sobre as mesas, e já uma alma atenta me enfiava nas mãos um caldo fumegante,
retirado à panela que rescendia no meio da rua. Era uma canja, amarela como as
canjas, saborosa como as do Eça de Queiroz, mas de cabrito e não de galinha,
que as cabras safam-se melhor nos terrenos onde parece nada restar para
alimentar os seres. Mas ainda eu sorvia a sopa e chupava os meus pedacinhos de
carne e já grossas fatias de bolo de aspecto fofo iam sendo trocadas pelos
pratos de sopa recolhidos e alguém desarrolhava uma garrafa nova de whisky.
E como tudo se desenrolava e explicava
harmoniosamente por si só, bastou-me ver no mesmo enquadramento a dona da casa
e a minha colega Hermita para perceber, na similitude dos traços físicos, que
assistia ao regresso de uma filha a casa dos seus pais, um regresso partilhado
e testemunhado por colegas de todas as ilhas de Cabo Verde, onde ainda sobrara convite para dois portugueses
e um representante da Organização Mundial de Saúde.
Hermita, que conhecera dois dias antes
e estava alojada com alguns de nós na casa Amarela, deixara a sua aldeia de sol
eterno ainda muito nova para estudar fora. O curso de Medicina fê-lo lá longe,
na Rússia, seis anos a milhares de léguas de tudo, de casa, de Cabo Verde; forçada
a trocar o clima macio e a morabeza natal pelo frios perenes do leste europeu,
pela estranheza da língua e do modo de ser dos eslavos. De temperamento
contido, a tudo resistiu sem queixa e voltava agora a casa, a mostrar, sem o declarar,
aos seus que triunfara na demanda e honrara os seus. Isso tudo se compreendia,
sem necessidade de palavras, no olhar, simultaneamente orgulhoso e feliz, com
que a mãe mirava a filha naquele Domingo em que a festa se mudara, levando
consigo os bancos, da igreja para a pequena casa azul de Cascabulho.
Nem uma meia-hora teria passado sobre
a nossa chegada quando começaram a chamar para as carrinhas, apontando os
relógios, anunciando que se fazia tarde. Antes de regressar ao meu assento, contagiado
pela correnteza humana, atravessei ainda a rua para ir espreitar, na casa em
frente, a avó de Hermita, que tinha feito cem anos por esses dias. “Acha boa
ideia?”, perguntava-me o Paulo, hesitante, “não acha que toda esta gente pode significar
uma invasão da privacidade da senhora?” Encolhi os ombros, não sabia o que
pensar ou o que dizer. Éramos conduzidos por alguém da família e na sala que
antecedia o quarto, parentes e vizinhos sentavam-se ao longo das paredes e, não
fosse os semblantes sorridentes, poder-se-ia pensar que velavam um ente querido
recentemente partido. Quanto ao visitante, este penetrava no pequeno quarto
durante uns instantes para cumprimentar a senhora acamada e logo se retirar e,
ao apertar a mão seca dela na minha, ao encarar os seus olhos vagos e atentos, riscados
por cataratas, achei que visitar a velha senhora encerrava algo do propósito da
visita a uma pessoa santificada, abençoada pelos anos e pelo rasto de gente com
que presenteara o mundo na parcela de eternidade que lhe fora concedida.
© Fotografias de pedro serrano, Cascabulho, ilha do Maio, Cabo Verde, Outubro 2017.
Classificação:
CABO-VERDE,
ESBOÇOS e RETRATOS
17 outubro 2017
METESSES FÉRIAS, ESTÚPIDO!
Resiliência
é outra palavra para resistência, um modo mais tufado de dizer o mesmo, variação
aprimorada no vagar dos gabinetes por quem tem horas a preencher ou quis içar-se
a um nicho no mercado dos conceitos universitários.
A ministra da administração interna,
que antes de o ser andava pela Universidade Autónoma de Lisboa e por Bruxelas,
veio anunciar que as populações deviam encarar as catástrofes com maior
resiliência, pelo que sendo ela
professora supomos que terá algo concreto a dizer sobre as diversas maneiras de
resistir ao fogo. Penso quase interpretar o desejo comum ao sugerir que
Constança U.S. nos deveria proporcionar uma aula sobre como enfrentar o
famigerado downburst das chamas, uma
sessão prática, ao vivo e de preferência com cobertura televisiva, para que o
povo, pusilânime e ingrato, pudesse sublinhar o compasso dos ensinamentos ao
ritmo de palmas tribais.
Outro dirigente que, alegadamente,
parece apreciar os novos conceitos politicamente correctos é um dos ajudantes
da ministra, o secretário de estado da Protecção Civil Jorge Gomes, o qual é de
opinião que, perante ignições, o bom do povo deve assumir atitude mais proactiva, isto é tratar de combater o
fogo com as próprias mãos nuas, pois o Estado tem mais que fazer. Bem, alguns
dos mortos de Pedrogão Grande, e agora alguns outros de Viseu, poderiam
informá-lo – se o direito de resposta fosse conferido aos mortos – que tinha
sido isso que tinham feito e que nisso mesmo perderam a vida. Querendo usar de
compaixão no julgamento, atribuirei as sugestões à profunda ignorância do
senhor sobre o país profundo e especificamente
à circunstância de uma grande fatia da população dos distritos mártires ser
constituída por velhos, aqueles que, por apego e limitação da idade, mais
resistem ao abandonar da sua zona de
conforto. Alguns deles, como todos sabemos, morreram no seu posto a
combater o fogo.
Como, no rol da desgraça, não há duas
sem três, sobra uma referência à personalidade que, pedagogicamente irritado,
gosta de iniciar a resposta a quem o interpela por um “vamos lá ver...”.
Visivelmente maçado pelo inoportuno dos acontecimentos, que o arrancaram ao devaneio
do resultado autárquico, o primeiro-ministro assinou por baixo todas as
enormidades dos ajudantes e ainda achou por bem acrescentar distraidamente que
coisas como esta se vão repetir.
Para quem, como o país, assistia ao
que acontecia de lágrimas, terror ou espanto nos olhos – como que estremunhado
perante um pesadelo de repetição – esta saraivada de ralhetes por parte dos
mais altos responsáveis ganhou os contornos do insuportável, insuportável onde
a cereja no bolo (ou a cuspidela no defunto) foi a assunção do desejo oculto de
ir “ter as férias que não tive”, dito que expressa bem a indigência mental de
quem o proferiu sem sequer dar por isso.
Fotografias de cima para baixo: capa do Público de 17 outubro 2017; foto de arquivo dos jornais.
Classificação:
SOCIEDADE
16 outubro 2017
UMA MULHER ARDENTE
Ainda o dia de hoje (16 de outubro)
não se pôs e já pesa no currículo da Ministra da Administração Interna a
responsabilidade política por um maior número de mortos (uma centena) do que a
politicamente atribuível, em 2016, aos ministros da Justiça de todos os países
do mundo onde existe pena de morte, excepção feita à Arábia Saudita e ao Irão.
Constança U. Sousa pulveriza assim a
contabilidade mortífera de países como o Iraque, o Egipto, o Paquistão ou mesmo
os Estados Unidos da América. Apesar da triste contabilidade, a ministra já se
apressou – por uma segunda vez em menos de quatro meses – a vir a público garantir
que se encontra disponível e apta a abraçar todas as madonas, bombeiros e
presidentes de câmara que sobrevivam às chamas nos próximos anos. Vade retro, Kalimero! Uma vez que a senhora parece não
conseguir enxergar-se para além dos afectos instantâneos, seria bom que alguém
a sacudisse rapidamente do torpor, pois a responsabilidade política é como as
inundações – tende a subir de nível se ninguém as estancar.
Classificação:
SOCIEDADE
12 outubro 2017
TUDO O QUE ASCENDE DEVE CONVERGIR
Classificação:
CABO-VERDE
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