03 dezembro 2018

PORTO INTERPELADO


Porto, Oporto

Quem te apostrofasse

Em prosa ou em rima

Siza Vieira e Viana de Lima.

 

Porto, Oporto

Quem te exclamasse 

No júbilo ou na mágoa

Campolindo, Bonfim e Arca d’Água.

 

Porto, Oporto

Quem te afiançasse

Os muros e as redes

Furadouro, Boavista, Entreparedes.

 

Porto, Oporto

Com apenas duas avenidas para mostrar

Oh, mas ambas levam, a descer, até ao mar

Olha a pérgula, olha a rede, olh’ó castelo

Olha as praias [que lindo], as ondas a chafurdar

E revoadas d’areia para a gente se espojar

Olhos semicerrados, papo a torrar 

Sol na tanga e no sutiã

Língua-da-sogra, bola de Berlim, curassã.

 

Porto, Oporto

Dos toldos vermelhos das churrascarias

Descerrados como pálpebras capotadas

Ou como intenções mal amparadas

Batata frita oleada, febras, entremeada

Chiam os frangos a rodar, a virar, a rodar.

 

Porto, Oporto

[Cisma alguém num eléctrico para S. Mamede]

Das casas embrulhadas em azulejo

Da tanta janela para tão pouca parede

Da luz que foge, se aperta e refulge nalgum brejo

Calçada em Santa Catarina, despida na Cordoaria

Espreguiçada, ouro e mica, na baixela da foz do rio.

 

Porto, Oporto

Por onde pairas agora?

Quando o silêncio goteja

E o nevoeiro – algodão doce enregelado 

Se demora nalguma escadaria de igreja

Atravessado, encolhido, enfastiado

Como um pombo num beirado

 

Porto, Oporto

Mânfios de sapato afiambrado por engraxador

Cuspinhando no chão enquanto trepam as Virtudes

Apressados, as gabardines a pairar os ombros

Como a fumaça das castanhas em Novembro.

 

Porto, Oporto 

Dos arrumadores a mancar, a limpar, a esbracejar

Pensos rápidos e lenços de assoar

Das putas da Alegria, dos chulos na Bolsa

Dos condutores de braço em riste

Extravasando a janela, indignados,

Vociferando: “que foi, nunca viste?”

E outros que bem gostariam de se pronunciar

Mas fugiu-lhes a lábia por entredentes

Lá em Paranhos, em Agramonte

Na Lapa, a Pradorepousar

Os mais alternativos a fumegar...

Olha a lápide, olha a vela, olha a jarrinha

Endireita-me esse molho de cravinas

Adeus, mãezinha, Deus seja contigo

Pró ano trago uma renda nova pró jazigo.

E cá por fora, ainda fora, ainda à tona 

Tanta perna, tanta bochecha, tanta cona

A passejar, a rebarbatar, ao arejo

A recordar que um dia cá por cima

É um bom dia, um bom dia – Salvo seja!

 

Porto, Oporra

E se te fosses foder?

Mais o teu regionalismo tacanho 

Sempre na sopesação do teu tamanho

Resmoneando remoques contra a capital

Que encofra para ela todos os favores

Um concentrado de régulos e regedores

Olha quem fala, olha quem cala.

 

Porto, Oporto

Não cheira a rosas na Areosa, mas

Olha a Rotunda, como está agora

Um diamante deitado

Cravejado no asfalto

À entrada da avenida...

Tal e qual como lá fora.

Marafona rebrandada e lúbrica

A nossa casa da Música

É que nem o centro cultural, mas ainda mais

Mundial, toda em vidro, anodizados e cimento

Que presença, engenheiro, que argumento!

Sim, pode recuar – mais, mais – tá no ponto

Não se rale do tiquê, estou aqui até às oito. 

 

Porto, Oporto

Alho porro, manje-rico

Bacalhau empunhetado

Abrilhantado, enfarruscado 

Equinócio, soles-tício 

Vespertino, matutino

Desnorteado, orientado

Bem-nascido, malcriado

Invictório, mictório, romaria

Hoje é sempre a véspera do dia

Em que ali regressarei.

 

 


© Porto Unnamed, Fotografia de Maria João Pinto Basto.