Fumo. Canso. Ah uma
terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse
o oeste já!
Pra que fui visitar a
Índia que há
Se
não há Índia senão a alma em mim?
Álvaro de Campos in Opiário
Estendeu o braço
por sobre a cabeça, a mão procurou a pera de baquelite que, pendurada da
cabeceira da cama, permitia acender a luz do quarto. Não a encontrou, e a
memória na ponta dos dedos igualmente não reconheceu o toque envernizado à
madeira em que se amparavam as almofadas. Depois, o mundo como que se focou, a
linha do tempo e a do atemporal combinaram-se e o sonho deslizou para plano
mais longínquo, onde logo se começou a decompor como um mar nevado sob a quilha
de um quebra-gelos.
Pela fresta nos
reposteiros da janela insinuava-se uma claridade acinzentada, tímida, que mal
ousava afrontar a noite ao redor. Sim, lembrava um candeeiro de mesinha de
cabeceira, uma tulipa de vidro baço envolvendo a lâmpada, um interruptor... até
empurrara pelo tampo de mármore o copo de água para mais longe, precavendo poder virá-lo
no despertar estremunhado, comum a uma cama estranha. Chegara ontem. Acendeu-o,
levantou-se, foi espreitar à janela.
A praça ainda se
encontrava imersa em sombra, mas o seu recorte triunfal já se deixava intuir na
escuridão... Deixou-se ficar, quase a espiar de trás dos reposteiros, a
surpreender o nascer do sol que, naquelas paragens, tal como o cair da noite, acontecia
com brusquidão. E, quando o local em que surgiria o astro apenas enrubescia
ligeiramente o horizonte, o mar, antes dos prateados reais, foi ganhando a
tonalidade azul-acinzentada de um forro puído pelo excessivo uso dos
amanheceres, dos anoiteceres, das palavras que os referem.
– We are offering you a room with a view to the bay, sir,
so you can see the sunrise over the sea...
Sendo naval, o
engenheiro estranhou a observação. Bombaim situava-se na costa ocidental da
Índia, no mesmo mar que, umas centenas de milhas a sul, banhava Goa e onde (tão
bem o soubera) o sol se punha, com o feérico estendal de uma gema estrelada
sobre talhadas de melancia, nas águas, e debutava, a levante, por entre
coqueiros estáticos, na espinha quebrada das montanhas. Fê-lo notar ao tipo de
casaco branco que o acompanhara ao quarto e que, maugrado o esganiçado do
acento, se exprimia em impecável inglês. Este, não se atrapalhou na explicação:
tudo tinha a ver com o formato da baía e com o ponto onde estava edificado o
hotel.
Um pequeno bote,
deslizando rápido, desviou-lhe o pensamento para o perfil dos três homens que,
em andrajos demasiado leves para a hora matutina, se amontoavam no barco, um
aos remos, os outros fitando a imensidão.
Apesar da
ausência do disco solar, a manhã volvera-se nítida como um quadro e na praça
fronteira ao Taj Mahal Palace Hotel,
nascidas de todas as empenas, beirais e cornijas da cidade baixa, pousara uma
multidão de pombas por entre as quais, com o gesto largo de quem semeia, lavrava
um homem que as fornecia de migalhas. Sem motivo aparente, as aves, todas à vez
e de vez em quando, levantavam voo descrevendo uma parábola colectiva sobre as
águas, antes de acalmarem de novo sobre as lajes em que debicavam há instantes. Alheios
às sensações que lhe intumesciam a alma como um balão quente, no passeio sob a
janela ladeado pelo murete que o separava das águas, alguns vultos iam dispondo
o colorido das vestes e das vendas ambulantes para o futuro bulício da manhã.
Agora o sol ascendia sobre o mar e o excesso de luz esborratara os contornos
delicados da paisagem, amalgamando o silêncio e as sensações numa pasta
desinteressante. Voltou para a cama, puxou o lençol até ao queixo e deixou-se
ficar, quieto, procurando aquecer os pés e – usando os gatos da memória – tentando
agrafar os cacos dispersos do sonho que o despertara.
Ontem, no itálico prefácio da noite,
Quando fraquejava a luz ao mar e de
Seu forro puído, o azul-acinzentado
Boiando afogueado, enfim se revelava,
Pousaste leve na minha tua mão esguia...
Em Goa, nem uma
semana antes, o hotel, se assim se lhe poderia chamar, fora, por igual,
construído à vista de água, mas a sua qualidade de barco era bem mais intensa
do que a do luxuoso congénere em Bombaim. Chegara de noite, estafado por uma
viagem de comboio que se arrastara o triplo do necessário e, só o percebeu na
manhã seguinte ao escancarar as portadas de ripas da janela de sacada, achou-se
numa varanda, generosa como um tombadilho, que parecia projectar-se até às águas
cintilantes do rio que lambia o outro lado da avenida.
Contagiado pela
vista larga, pela luz intensa, pelo fervilhar dos ecos que trepavam da rua,
apressara-se no arranjo, desleixara o relógio e o monóculo sobre a cómoda, e
descera em busca do almoço da manhã. O restaurante ficava no primeiro andar,
uma sala sombria de tecto trabalhado em rococós de estuque pintado em azuis de
cauda de pavão, e a luz das janelas chegava amortecida por espessos caixilhos
de madeira talhada em arabescos. A sala estava deserta e sentiu-se constrangido
pela abundância de criados, mas já se aproximava um chefe de mesa de bigodes
escovados que, num português de rotações lentas, lhe propôs estendendo a mão
nessa direcção:
–
Talvez Vossa Excelência queira tomar a refeição na varanda exterior...
Era mais um terraço
do que uma varanda e, pelo chão de tijoleira, havia grandes vasos imitando sapos,
profusamente atafulhados de verdes. As mesas, no entanto, contrariando a
vastidão do espaço, acanhavam-se ao longo da parede interior. Numa delas, sendo
no momento a única ocupada, achava-se sentada uma senhora vestida em claro, e
que, por se achar concentrada a bater com o convexo de uma colher na casca de
um ovo, não deu pelo leve aceno de cabeça do engenheiro.
Dividido entre o
incómodo da proximidade com a desconhecida e o recusar a gentileza do empregado
que lhe fazia espaço a uma mesa puxando a cadeira, optou por se sentar à mesa
mais distante. Mas a estrangeira parecia ter-se dado conta do incidente e levantara
a cabeça, o olhar resguardado pela aba abaulada do chapéu de palhinha.
***
Chegar ao
conhecimento com Cecily, pensou muito nisso depois, tornou-se uma
inevitabilidade, como um caminho que não poderia levar a outro destino.
Na segunda noite,
ao entrar na sala de jantar, deu com um pequeno motim de empregados no centro
do qual girava uma cabeça loura que, de menu na mão, se tentava fazer explicar.
–
Posso ajudar? – Perguntou ao passar, e a voz provocou silêncio no linguajar
que se tecia em torno da hóspede; um dos empregados fazia-lhe já lugar à mesa
da desconhecida afastando uma cadeira para trás.
–
Queira desculpar – pediu, um tanto embaraçado – estes tipos são um tanto dados
à confusão e à precipitação...
Divertida e
prática, ela estendeu uma palma de mão bem torneada para o lugar em frente:
–
Por favor, sente-se, acho que acaba de me salvar o jantar ou, no mínimo, por me
devolver o oxigénio... O inglês desta gente não parece suficiente para me
entenderem e, confesso, o meu português – para não mencionar o meu konkani
– deixa muito a desejar. E cada nova dúvida que levantava por causa de um
simples cesto de pão, tinha como única consequência acrescentar mais um deles
ao cerco...
Sentou-se,
apresentou-se, ela beberricou o gin and tonic,
perguntou se ele não queria pedir uma bebida para que brindassem, para que pudesse
retribuir-lhe a gentileza.
– Excelente, este pão... – confessou minutos
mais tarde – lamento tanto que tenha sido precisamente o pomo da discórdia...
Sabe, eu perguntava por bread e eles
diziam “no bread”, e, todavia, eu
cheia de ver pão a passar em todas as direcções...
–
É que o usam mais como talher do como amuse-bouche
e, além disso, chamam-no por outros nomes... Este, por exemplo, tem de o pedir
por naan... Plain, se o quiser assim, pois há uma variedade com manteiga e alho
que não sei se iria apreciar...
–
Tal como nem todos os portugueses parecem exprimir-se tão fluentemente em
inglês como o senhor, nem todos os ingleses são avessos aos sabores alheios,
dê-me, ao menos esse pequeno benefício de dúvida – respondeu com um sorriso dos
olhos imensamente azuis que pareciam, em permanência, dois encantadores pontos
de interrogação de perímetro variável.
–
Touché – respondeu ele – para usar,
de novo, um idioma neutro ao conflito... E quanto ao meu inglês: sou quase um
expatriado no meu país, sabe? Aconteceu nascer por lá, é tudo. Como vê, reúno
num só as qualidades do anglo-saxão e os sabores do Sul! Diria que me está na
massa do sangue...
–
Poderia atestá-lo em tribunal – disse ela abanando o leque e provocando forte ondulação
na madeixa loura que lhe escorregava da testa – este caril de gambas que
recomendou incendiou-me os lábios...
–
Olhe que não creio que o melhor modo de acalmar um incêndio seja agitar o ar à
sua volta... – ouviu-se dizer como se quem tal dissesse não fosse ele, mas
alguém com maior pujança no atrevimento.
Não foi pelo que
ela propôs de seguida que Álvaro de Campos ficou certo de que a conversa
resvalara para terreno de turvo flirt,
mas mais pelo gesto com que, usando dois esguios dedos em pinça, desencravou os
cabelos soltos do penteado encalhados numa das sobrancelhas.
–
Não quer ir tomar o café lá fora, na esplanada? Pobres ventoinhas... Fartam-se
de espadanar, mas aqui, positivamente, abafa-se... Uma vez que é quem tem feito
todos os pedidos, devo avisá-lo que, para mim, tomar o café é força de expressão, sou atreita a insónias e não
consigo pregar olho com tal bebida após as quatro da tarde... Mas um chá de
jasmim e um cigarro, isso parecer-me-ia o céu...
O engenheiro
desenhou no ar o hieróglifo correspondente a um pedido de nota de despesa e
levantou-se a tempo de lhe conseguir desimpedir a cadeira, para que ela pudesse
mostrar a silhueta alta e o vestido pérola de cintura descaída. Toda aquela
abundância e, de sobremaneira, o pormenor do desejo de fumar a coberto da
noite, excitavam-no de forma imprecisa.
Mas a mudança
para o exterior, como um afastamento físico, provocou um esmorecimento na
conversa, agravado pela iluminação débil e por ele pouco mais entrever dela do
que a brasa do cigarro e, intermitente, o lampejo dos fios de ouro bordados no shawl de caxemira que pousara sobre os
ombros. Tornou-se banal como um correspondente estrangeiro de uma casa
comercial:
–
E o que a traz por estas paragens? Sendo inglesa, seria mais fácil imaginá-la
em territórios do seu domínio... Deli, Calcutá, Jaipur, digamos, até, Bombaim...
Do escuro, ela emitiu
uma pequena gargalhada, respondeu com outra pergunta:
–
Porquê? Acha, talvez, que invado o seu Império?
–
Não, não, por quem é... Diria que é uma felicidade para o meu Império contar
com tal intrusão...
–
Deixe, antes de lhe responder e perante o risco de vir a tornar o resto da
conversa maçadora, que lhe faça uma pergunta: é religioso?
Ele encolheu-se
um pouco, passou as mãos sobre os vincos das calças:
–
Diria, para simplificar, que sou agnosticamente gnóstico.
No decorrer da
explicação não conseguiu reprimir uma exclamação quando ela revelou que
estudava, mais do que ensinava, religião comparada na universidade de
Manchester:
–
Manchester!? Então fomos quase vizinhos!
E contou-lhe a
passagem por Glasgow, onde se licenciara em engenharia naval.
–
Tem graça – reparou ela – se não o dissesse nunca o imaginaria engenheiro...
Via-o mais a perder o seu tempo como professor de uma área nebulosa como a
minha... Quando muito, arqueólogo...
Ele casquinou uma
risadinha que lhe encurtou o lábio superior, pigarreou um pouco:
–
Mas ainda não me disse o que a trouxe a Goa? Ou prefere deixar as razões na
sombra?
–
De modo algum; a razão é o contraste, o imenso contraste de uma população
maioritariamente católica encravada numa imensidade hindu! Isso fascina-me...
Como foi possível em tão poucos anos – quatrocentos anos é um breve momento num
país como a Índia – vocês conseguirem uma conversão tão maciça...
Modestamente, ele
encolheu os ombros, desencaixou o monóculo do olho e lustrou-o no lenço que retirara
ao bolso de cima do casaco.
–
Não faço ideia; acho que teria de perguntar aos nossos jesuítas... Dentro da
minha humilde capacidade na matéria, o máximo que posso fazer é servir-lhe de
guia numa peregrinação pelas igrejas daqui... São muitas, sabe? Os portugueses
construíram uma igreja quase em cada esquina das terras onde aportaram... Em
Goa, quase tantas como os templos que destruíram ou que, para subsistir,
tiveram de se mudar, pedra por pedra, para o interior da Província...
–
A política tabula rasa… perdi algumas
horas com isso nas bibliotecas de Londres...
No dia seguinte
ele deambulou ao longo do rio e penetrou no interior da cidade até se confundir
em encantadoras pequenas ruas, muito limpas, que pareciam um bairro português
perdido. À noite não a encontrou na sala e, sem ter de o perguntar, o chefe de
mesa informou-o com naturalidade que Miss Westin não jantava.
No quarto, abriu
as portadas de par em par, empurrou a poltrona para o lancil e pescou a
caixinha de prata na roupa interior da gaveta da cómoda, pousando-a, ao lado do
maço de cigarros e dos fósforos, no tamborete que rolara para a vizinhança do
cadeirão. Montava o seu cenário... É que, sabia-o de incómodos anteriores, ao
ópio, a posição mais favorável é a horizontal e, depois de inalado o primeiro
travo, todas as intenções se esvaem numa rêverie.
Em frente, a
noite vibrava de sons ocultos e o ininterrupto crocitar diurno das gralhas fora
substituído pela estridência do canto das cigarras. Do Mandovi invisível, onde
invisíveis crocodilos se acomodavam no lodo para a hibernação nocturna, subia
uma bênção de névoa que tornava o calor um pouco mais suportável. Após a
primeira fumaça apercebeu-se ainda do vulto branco de uma coruja a atravessar o ar em direcção a uma das
enormes árvores que marginavam o rio...
Ontem,
no itálico prefácio da noite, dizia,
Uma
coruja branca voou por sobre a estrada
Calada,
macia e, talvez, estremunhada
Pelos
laivos púrpura e ciscos de gaivota
Irradiantes
num transitoriamente belo
Arranha-céus
de nuvens-em-castelo.
***
Cecily vinha recomendada a um
casal de ingleses residentes em Dona Paula - localidade costeira a uma meia-dúzia
de quilómetros de Panjim - gente que visitara na véspera e suficientemente bem acomodada
para lhe porem à disposição, por todo um dia, um veículo automóvel e respectivo
chauffeur. Foi isso que lhe comunicou
na manhã seguinte, à hora do ovo escalfado sobre o Mandovi e umas torradas com
mel que mastigava com indisfarçável apetite.
- Assim,
se a oferta de companhia na peregrinação pelas igrejas de Goa ainda for válida,
contaria consigo amanhã, pelas oito, que é quando chega o transporte dos
Mottram...
– Parece
perfeito... – respondera ele com teórico arrojo, tendo passado o resto do dia disperso
em frenéticas actividades, como a de se informar sobre as igrejas a merecer
visita ou a de combinar com o Sr. Pinto, o chefe de mesa do restaurante, o recheio
da cesta de picnic que levariam na jornada, sugestão sensata de Cecily e que o
Sr. Pinto abraçara com entusiasmo, pois era óbvio que os encantos da
iniciativa, bem como os da dourada hóspede, lhe alvoroçavam a rotina.
– Not safe refeição por aí, beira de
estradas... – ia comentando o goês no patuá misto em que se entendiam – Comida not safe; meter no cesto também algumas botelhas
de água gelata, botelhas de água gelata....
Finalmente, já a meio da
tarde, conseguiu, a troco de discreto suborno, que a recepção lhe emprestasse o
único mapa da Província existente no hotel, sob compromisso solene de o
devolver no dia seguinte, no regresso da expedição. Durante estas horas de
azáfama, Cecily desaparecera para o quarto, possivelmente, imaginou ele, a
garatujar notas de religião comparada no caderno preto com elástico que sempre
lhe fazia companhia à mesa.
Estenderam a toalha para almoço
na Estenderam a toalhapois era Goa convertida..."meiras, onde se
espetavam na longura, asno caderno preto com el pois era sombra sólida
de um contraforte da igreja de Nossa Senhora do Monte, fechada àquela hora, edifício
construído no topo de uma colina coberta por acácias e com panorama soberbo
sobre um vale verde, inteiramente atapetado pelas copas de uma infinitude de
coqueiros e palmeiras, e onde se espetavam na longura, tais fios de fumo
tornados pedra, as alvas torres e campanários de alguns dos templos católicos
que tinham visitado em Velha Goa.
– Veja só
a beleza paroquial do meu Império – anunciou num gesto largo de proprietário e
um toque de ironia na entoação.
– De
facto... – respondera ela com um suspiro de vencida – acho que corro o risco de
sair daqui convertida, quanto mais não seja a um gnosticismo agnóstico...
Manhãzinha, não batiam as
oito e, ao contrário do que pudera pensar, deu com ela mal desceu do quarto,
rodeada por dois criados, uma cesta de verga de duas tampas e um saltitante Sr.
Pinto, acorrentado ao suplementar fascínio de a loura inglesa do número seis ter
surgido enfiada em roupas indianas.
– Que diz
ao meu salwar-kameez? – Perguntou ela
como cumprimento – Achei que talvez fosse apropriado para um ambiente de picnic,
formigas e outros possíveis convidados rastejantes...
– Estarei
pronto a adorar se me explicar ao que se refere...
– Ora,
não me diga que não sabe o que é uma kameez?
Não é, aliás, o termo que usam para o mesmo na sua língua? Quanto ao salwar, é o que resta: estas calças
folgadas e muito confortáveis. – Respondeu, dando uma volta sobre si própria e
pinçando entre o polegar e o indicador de ambas as mãos, de modo a desfraldar-lhes
a amplitude, umas calças de pernas largas, subitamente justas ao nível dos
tornozelos e algo translúcidas à luz violenta da manhã.
Ainda não eram exactamente
nove horas quando chegaram à primeira paragem da peregrinação, mas o pátio da Igreja
do Bom Jesus já fervilhava de gente e tiveram de ir engrossar uma fila compacta,
onde não se viam turistas, para conseguir chegar ao interior do majestoso templo.
Ultrapassada a porta central, Cecily, após cobrir a cabeça com uma echarpe azul
como a túnica, estremecera-lhe o ouvido com uma informação:
– Não sei
se sabe, mas expõem as relíquias de Saint Francis Xavier de vinte em vinte anos
e o ano da graça de 1913 é um deles: é isso que explica a multidão de devotos e
a circunstância de me encontrar em Goa este ano e não noutro qualquer...
– Não, de
todo – sussurrara em resposta – tudo quanto sabia é que a múmia do santo, todos
estes séculos depois, se encontra razoavelmente incorrupta.
Apesar de tudo, o
razoavelmente incorrupto dos remanescentes do santo impressionava, e o
contraste, como um humor esverdeadamente sinistro, entre a pele apergaminhada
das mãos, esfarelada e revelando o amarelado dos ossos, e as vestes sumptuosas
que ornamentavam o corpo, provocaram o silêncio na inglesa que, uma vez cá
fora, quis fumar um cigarro antes de seguir para a Sé que os esperava do outro
lado da estrada.
Fumava agora um outro,
reclinada no tronco de uma acácia cuja ramagem delicada lhe oscilava sobre a cabeça
como dezenas de obedientes leques verdes, os olhos lacrados no entrelaçado das
pestanas cor de areia, o cigarro apoiado no lábio inferior, deliciosamente mais
saliente do que o superior, as mãos molemente abandonadas no colo.
– Contava-me
há pouco que em Macau nada disto que vimos hoje de manhã era tão vincado... – Interrompeu
o silêncio sem descerrar os olhos, como se pretendesse que ele continuasse as
rimas de uma qualquer canção de embalar.
– Sim... – instintivamente desviou por um momento o olhar dos tornozelos cruzados da
companheira, para logo aí voltar mal se assegurou de que o tom da conversa não requeria
uma pontuação de olhares – Sim... Em Macau o que sobressai, mais que tudo, é a
China... Um punhado de portugueses diluído numas centenas de milhares de
chineses. Enquanto que por aqui é reconfortantemente frequente, lá não encontra
ninguém que fale português e os chineses seguem pela rua sem olharem para si,
como se lhe recusassem a existência... Macau é uma doce ilusão: eles ainda não
deram pela nossa presença e nós não queremos que ninguém nos acorde do sonho...
– Oh,
também as há, claro, mas submersas no meio de santuários e templos - nada que
se note...
– Não
fala desse canto do Império com muito entusiasmo... – ela desenganchara as
pestanas e os pequenos pontos de interrogação nos seus olhos azuis fitavam-no
sem expressão aparente.
– Não gostaria
que ficasse a pensar assim! Macau marcou-me além do entendimento, sabe? Esta
foi a segunda vez que lá estive... A primeira foi já há anos... Era muito novo,
então, acabado de formar... Fui lá parar sem fito preciso, deixei-me descer o
Suez, contornei, sem quase sair de bordo, a Índia e o Ceilão, fiquei três
semanas, talvez mais, custou-me apanhar o paquete de regresso à Europa. Entre
visitas, durante o sono, sonhei amiúde com a cidade, via-me por lá, identificando
com detalhe ruelas por onde havia passado distraído... Não lho sei
passar para palavras, mas Macau derrama em nós – em mim, pelo menos – uma saudade
tão intensa que toda esta minha viagem, esta – a de agora – foi quase pretexto
para lá voltar de novo... Desta vez, na subida de regresso, antes que a vista
de Port Said me aperte e me devolva ao Norte, parei na Índia à procura de
justificação mais consistente para a viagem... Falta ainda, por um dia destes,
quando passar por Bombaim, fazer-me retratar com o Taj Mahal Palace nas costas, para ter algo que mostrar em Lisboa!
– E
Macau, que trouxe de lá desta vez...? – Ela sentara-se, interessada, alinhara o
seu tronco pelo tronco da acácia, os braços envolvendo os joelhos, o olhar
preso ao modo como ele esfregava o monóculo com o lenço.
– Mais do
mesmo: combustível para as minhas saudades vagas e... – hesitou um momento – um
pouco de ópio, que, se calhar, é algo semelhante...
Ela mirava-o agora de olhos
bem abertos, o indicador da mão direita acariciando o desnível entre os lábios:
– Ópio, a
sério?! Tem-no aí consigo, que se possa ver? Desde sempre, às tantas vem dos
livros que lia em menina, senti curiosidade por esses entorpecentes orientais...
Mas nunca vi; como é? O que se sente? Trouxe também um cachimbo e uma esteira?
– Isso é
mesmo um colar de perguntas de menina! Claro que não o tenho aqui comigo, está
no hotel, numa gaveta, misturado com a roupa lavada. E não, não trouxe cachimbo
nem esteira, ocupam muito espaço, dão nas vistas... Para o fumar uso uma
técnica abreviada que, suponho, deve fazer o horror dos connoisseurs: risco uma linha do produto num cigarro. E fuma-se...
– Não
disse o que se sente...
– Não leu
De Quincy, Poe, Baudelaire? É que é tão difícil explicar... É, estranho que lhe
possa parecer, uma coisa muito física, uma espécie de bem-aventurança terráquea...
Fizeram a viagem de regresso
em silêncio. Para o lado do mar, o sol descia e preenchia de um dourado de iluminura
os espaços livres entre o verde da vegetação. À entrada de Panjim o chauffeur acendeu os faróis do automóvel
e foi por altura desse gesto que ela quebrou o silêncio:
– Acho que
gostaria de experimentar esse ópio... Partilharia um desses seus cigarros
comigo ou será pedir demasiado à sua intimidade? Não me apetece fazê-lo
sozinha, confesso que, junto com a excitação, tenho algum receio...
Ele tinha tido tempo para
engolir em seco e aparentar fleuma na resposta:
– Se o
quiser... E não precisa de estar apreensiva: é droga muito mansa, abençoa
sempre os neófitos...
– Isso é
um sim ou um adiamento na resposta...?
– É um
sim, desculpe se o fiz parecer coisa diversa...
– E,
visto que me deu a entender dever ser actividade discreta: no seu quarto ou no
meu...?
– No
seu... – respondeu, passando umas mãos nervosas pelos vincos das calças, – temo
que o meu esteja demasiado desarrumado...
Ontem, no itálico prefácio da noite,
Pousaste com ternura e teus dedos iam
Sobre uma de minhas mãos que conduziam.
Por onde vamos? quis então saber
Tanto se me dá, não sei se sei dizer...
Liguei os faróis, comuniquei, Perfeito!
E, sem decisão de por onde iria,
Fui guiando pela noite que caía.
O quarto dela ficava
no primeiro andar e ele achava-se sentado numa poltrona igual à que tinha no
seu quarto, dispondo o tabaco, os fósforos e um montinho de palitos da sala de
jantar num tamborete gémeo ao que lhe pertencia no andar de cima. Sentada na borda da cama, cintilante
no pijama lamé e resguardada no
quimono com que viera abrir a porta, Cecily inclinou-se quando o
viu tirar do bolso a caixinha de prata.
–
Meu Deus, tem aspecto medonho! – exclamou quando pousou os olhos na pasta
viscosa e quase negra.
Senhor do
momento, ele não respondeu. Enfiou um palito dentro da caixa, rolou-o bem pelo
interior e besuntou as faces opostas de um cigarro até toda a massa viscosa do
palito se espraiar no branco do papel. Depois estendeu-lho. Ela pegou-lhe com
uns dedos esguios que tremiam um pouco; perguntou:
–
Como faço? Como o fumo?
- Como um cigarro, justamente! Mas inspire o fumo mais profundamente... E acendeu
um fósforo sob a ponta do cigarro.
Como quem altera
apressadamente uma cláusula num testamento, ela pediu, com uma voz já
entrecortada de fumo:
–
Por favor cuide de mim...
Esta frase curta,
proferida imediatamente antes de ela lhe estender o cigarro e do cheiro
adocicado e acre do ópio lhe picar as narinas, fez murchar as vantagens que se
pusera a imaginar enquanto se vestia para o jantar, como se já acariciasse uma inexperiente
Cecily toldada pelo ópio.
–
Acho que me sinto um pouco enjoada e que preciso de me deitar para trás... Não
se importa?
–
É normal... No princípio vem-nos um enjoo – vai passar – e o corpo pede a
posição horizontal – ouviu-se responder, de longe, com um sorriso mental de
divertimento ao ver o modo como ela se desenrolara sobre a cama por abrir.
–
Sinto-me como se estivesse deitada numa nuvem... – a voz dela chegava-lhe
amortecida à poltrona, interrompendo-lhe o fluxo de pensamentos por onde já
divagava. Pensou num comentário...
–
Álvaro...? Está aí ainda...?
–
Sim... – Da poltrona ele agitou no ar um braço, como que a provar ao outro
náufrago à deriva, que boiavam no mesmo mar.
–
Venha para mais perto; está aí a centenas de milhas daqui... Deite-se ao meu
lado, na minha nuvem há espaço para dois.
Em pé, ao lado da
cama, observando os pés nus dela, perdeu-se um pouco na contemplação daqueles
dedos bem contornados, previamente a conseguir achar que deveria tirar os
sapatos antes de se esticar na cama; mas o esforço pareceu-lhe inultrapassável
e, depois, inútil. Deitou-se assim mesmo, de colete e gravata, que o casaco,
esse vogava debruçado num dos braços da poltrona.
–
Assim... muito melhor – ouviu-a dizer, perto de si, sem se mover, deitada de
costas, os olhos cerrados.
–
Sente-se melhor? O enjoo passou?
–
Enjoo...? Oh, sim, muito melhor... Percebo agora aquilo da bem-aventurança terráquea
de que falava...
–
Álvaro... Campos... – voltou ela, falando em direcção ao tecto – o seu Álvaro
tem ressonâncias árabes, será que o é...?
–
Não... – respondeu também para o tecto – Álvaro tem raiz nórdica e o Campos é
judeu...
–
Mediterrânico, quand même...
–
Sim, quanto a isso... A luz do sol, uma azeitona...
Durante uns
minutos ela não disse nada e, breves ou longos, foi tempo suficiente para que ele
se desinteressasse do local onde estava, ficasse tranquilamente a sós.
–
Álvaro – sem que se tivesse apercebido ela rolara sobre si própria e a sua face
espreitava agora a dele, os pontos de interrogação dos olhos azuis reduzidos ao
tamanho do ponto sob o sinal, os cabelos louros, leves como penas, cocegando-lhe
a testa.
–
Álvaro – tornou ela, separando as sílabas e duplicando o “r” ternamente – cheira-me
que você é um poeta na clandestinidade, seu engenheiro moreno... Conte-me toda
a verdade...
Atrapalhado, aprisionado
entre a almofada e a face dela, ficou a olhar em adoração aquele lábio inferior
um pouco avançado, de onde as palavras brotavam como que de uma gruta macia.
–
Minha caixinha de surpresas! Tem a certeza que o seu negócio gira em torno de
barcos ou isso é só uma dissimulação e todos os seus barcos são de papel? Será
que viaja sob outra identidade? Todos estes dias, ao vê-lo entrar (um pouco
curvado, um pouco ensimesmado) na sala de jantar me pareceu muito mais um poeta
mediterrânico em fuga de si mesmo... Mas, garanto-lhe, vou descobrir toda a
verdade um dia destes... Dê-me tempo...
Ele continuava
por baixo dela, apanhado naquela suave e cheirosa armadilha, um sorriso
beatífico, de alienado, arrebitando-lhe o lábio superior.
–
Prometa que me vai dar tempo... Um dia, um dia você vai ser grande e eu quero
poder dizer que o conheci, quero estar por perto... Prometa...
Prometeu, ela
pareceu satisfeita. A face desapareceu do poço para onde espreitava e ele ouviu
a cabeça cair pesadamente sobre a almofada ao seu lado. Fez-se silêncio e, uns
minutos depois, a respiração dela tornou-se leve e regular.
–
Cecily...? – Chamou baixinho.
Ela não respondeu,
nem nas vezes seguintes em que pronunciou o seu nome, cada vez mais alto, como
que a testar o seu entorpecimento; cada vez mais apaixonadamente, como quem
declama a sua entrega. Adormecera.
Ainda era noite
quando desceu com as malas, o rapaz da recepção dormia no cadeirão ao fundo do
balcão. Pareceu surpreendido com a antecipação da saída e, não fosse o sono,
seria certo um encadeado de perguntas a tentar avaliar os motivos da
insatisfação do hóspede que partia quase uma semana mais cedo.
–
Em Mormugão, o barco para Bombaim só vai mais tarde... Não tem de sair daqui
tão cedo... Basta ao fim da manhã...
Foi inútil
explicar, o hóspede estava nervoso, fazia já tenção de empurrar as malas em
direcção à porta.
Mas, após saldada
a conta, como quem recorda algo esquecido e de súbito relembrado, pediu uma
folha de papel e um envelope, o qual endereçou a
Miss Cecily Westin, Room
# 6.
Ficou uns
instantes com a caneta no ar, o rapaz a olhar para ele, desolado e ensonado, e
depois, em letra rápida, deixou escrito:
Tenho de ir agora. Grato pelo sonho.
E, por baixo,
assinou o nome com que ela o chamara.
© Fotografias de Pedro Serrano, Bombaim e Goa, 2012 e 2013.