31 maio 2012

CORAÇÃO IGLOO

Repare no modo encantador como o carro pequenino estaciona, tão alinhado e sossegadinho, em segunda fila, à sombra protectora da carrinha. Quem, senão um polícia sem alma e de coração Igloo, multaria uma coisa tão terna?
© Fotografia de Pedro Serrano, Lisboa, Maio 2012.

28 maio 2012

MAL ME QUER


Recorrentemente, tal como em outras ocasiões em que se previa um ataque maléfico iminente, iniciámos o acautelar da situação pelo controlo de janelas e portas.
Comecei pelo rés-do-chão e, apesar de ninguém desconhecer o que se ia passar a qualquer momento, era incrível como, praticamente, nada fora feito: por trás de cortinas corridas encontrei estores subidos, venezianas ilusoriamente encostadas, portadas que puxei para mim e tranquei com o alívio dos gestos definitivos. O mesmo desleixo contaminava a porta das traseiras, a quem corri ferrolhos; a de serviço, que ligava a casa à garagem, e a da própria garagem – esta última, uma enorme porta de correr, a meia-haste.
Nos andares de cima, as janelas pareciam ter-se multiplicado, a casa ia-se desdobrando em alas e quase a não reconhecia de tão grande, encontrei até divisões que desconhecia. Mas nada que se comparasse com a surpresa que me aguardava ao subir ao último andar.
Chegara a meio dos degraus, o amplo patamar, soalho de tábuas corridas, estendia-se ao nível dos meus olhos, quando vi surgir das portas em volta um bando de indivíduos esfarrapados, brandindo na minha direcção lanças que se assemelhavam a setas de espingarda de caça-submarina, a haste metalizada, as pontas trifurcadas.
“Ei, que fazem vocês nesta casa? Vocês não moram aqui!”, exclamei, indignado, conseguindo interceptar uma das lanças e passando a usá-la a meu favor, como devolução da intimidação. Depois virei-me para o meu pai, que emergira a meu lado nas escadas, disse:
“Já viu, pai, parece que temos vagabundos a viverem nesta casa... Tem vindo cá cima, sabia disto?”
“Agora isso pouco importa”, respondeu ele, pragmático, “vais ver que até nos vão, por uma questão de sobrevivência, ajudar a defender este andar contra o mal; é menos um flanco com que teremos de nos preocupar”.
“Fechem bem as janelas...”, recomendei ao tipo de tronco nu e cabelo desgrenhado que me pareceu ser o cabecilha dos ocupantes.
De novo cá em baixo, encontrei as salas cheias de gente da nossa, correspondendo a uma concentração equivalente à dos natais ou festas semelhantes, mas nenhuma daquelas almas, apesar de não ignorar o ataque que se esperava, parecia apreensiva ou, estando-o, se mexia para tomar medidas que pudessem amortecer a intrusão.
“Vamos dar uma olhadela lá fora...”, segredei a um dos meus primos, pois queria examinar o aspecto exterior da casa, experimentar o estado geral das janelas.
Cá fora, a noite estava escura e abafada e a lua rolava entre nuvens manchadas por um azul quase negro, tal se tivessem sido atingidas por tinta de polvo. Encontrámos duas janelas de portadas abertas ao nível do rés-do-chão, enrolei um pedaço de arame em torno do fecho partido de uma delas. Depois apercebi-me que, por cima das nossas cabeças, havia uma tabuleta pendurada, como se fosse o anúncio de uma estalagem, mas sem letras ou outros enfeites.  
“Sabes para que serve isto?”, perguntei. Ele encolheu os ombros. Mal acabara de fazer a pergunta quando, do corpo da tabuleta, se desprendeu um fio até ao chão, uma espécie de cabo eléctrico, revestido por plástico branco. Uma vez em contacto com o solo, o fio começou bruscamente a ser esticado, como se passasse a estar incrustado no asfalto, para logo daí ser arrancado, a parte solta chicoteando o ar, enrolando-se, mais e mais metros continuando a ser arrancados com violência, fazendo rodopiar a tabuleta, esventrando o asfalto do chão. Era o mal que chegava, mas não havia presença visível, quer dizer: não se viam os seres que lhe estavam na origem, ou os executores.
“Chegou, e nós cá fora, de porta aberta...”, ouvi-me dizer.
Agora que estávamos outra vez dentro de casa dei-me conta do modo devastador como o fenómeno se materializara: eu, eu próprio, o meu primo, éramos esse mal encorpado – a minha percepção da casa e dos seus incautos habitantes, volvera-se a de um predador. Uma rapariguinha da família, criança tímida e calada, aproximou-se pelo corredor e vi, no seu olhar intenso, que também ela fora possuída, procurava a proximidade da alcateia. Mas os portadores do mal não se resumiam a alguns de nós, habitantes da casa, aos que já lá estavam antes da tabuleta começar a girar nos gonzos; havia mais dois ou três seres que comandavam, perante os quais sentia que teria de prestar contas caso o meu comportamento não fosse o esperado. Eram seres soturnos, de contorno humano, mas dotados de fendas, mais do que olhos ou bocas, expressando-se mais pelo silêncio e pela aura de ameaça do que por fala ou olhares.
“Não os olhes directamente”, aconselhei-me, dividido entre o facto de agora pertencer ao mal e a hesitação em o infligir (como estava programado) aos habitantes da casa.
“Será que se dão conta dessa dualidade?”, perguntava-me, tentando esborratar o pensamento ao ponto de não ser o suficiente nítido para poder ser detectado pelos espectros que me rondavam.
Como se deslizasse sobre rodas, ou se movesse sem ter de usar passos, a rapariguita apareceu, os olhos, como carvões acesos, brilhando de iniciativa a dois palmos dos meus. Não falou, olhou-me como se aguardasse instruções de por onde esbanjar as novas capacidades.
“Tem calma”, respondi com o silêncio, “deixa que sejam eles a começar...”
Acordei, com o coração a bater rápido. Aguentei-me, de olhos abertos no escuro, uns minutos, a forçar a passagem do tempo e a tentar garantir que quando voltasse ao sono não correria o risco de ir parar ao mesmo horror de onde tinha emergido.    
© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1), (3) e (4), Índia, 2012; (2) Oliveira do Bairro, 2012.

27 maio 2012

DOMINGO À TARDE



© Foto: Pedro Serrano, Lisboa, Abril 2012.
Sem alarde
No Domingo à tarde
Uma caspa lenta 
Abateu-se na cidade
Fê-la perder velocidade.
Paralisou cada momento
Num bocejo entediado
Como se fosse feriado
Dia dos namorados
Ou outra efeméride
De bandeira desfraldada,
Portadas entremeadas,
Pálpebras semicerradas,
Semáforos cristalizados.
No caminho para o estádio
Acenam os arrumadores
Para um lugar na sarjeta
Apequenam-se os condutores
Apreensivos com a gorjeta.


23 maio 2012

AS QUATRO ESTAÇÕES



Park Hyatt Hotel Tokyo
Em Tóquio cada uma das estações de metro se deixa identificar por uma música própria, o que nos que mergulha, a quem viaja nas carruagens ou a quem espera na estação, num ambiente um tanto irreal. Ouvir os temas das estações de Yoyogi, Harajuku ou Shibuya é regressar lá um pouco, mas eu ansiava saltar para a plataforma de Ebisu, onde é usada como identificador uma versão, condensada e muito electrónica, do tema-chave de Anton Karas para o filme O Terceiro Homem (de Carol Reed, 1949), fita de suspense cujo enredo é baseado no romance do mesmo nome de Graham Greene.
Os japoneses, gente muito culta, prezam o cinema e, para dar outro exemplo que conheci de perto, o Park Hyatt Hotel de Tóquio, que ficou mais célebre do que anteriormente por aí ter sido filmado Lost in Translation (de Sofia Coppola, 2003), mostra, nos corredores que dão acesso aos quartos, desenhos de Federico Fellini pendurados nas paredes.
Escute com atenção e espere então, pelo menos, até chegar à estação de EBISU. Depois, se quiser comparar com o original, ouça o tema do Terceiro Homem e, um dia destes, veja o filme e as soberbas interpretações de Orson Welles, Joseph Cotton e Alida Valli, dois actores a quem o senhor Alfred Hitchcock recorreu e, no caso dela, tratou muito mal no clássico O Caso Paradine, de 1947. 

© Fotografias de: (1) Ricardo Ventura, Tóquio 2005; (2) Um japonês qualquer, Tóquio 2005.


Temas musicais das estações de metropolitano de Tóquio

O Terceiro Homem (genérico)

17 maio 2012

O DR. VASCONCELOS JUROU-ME...


Nana.
Gosto de filmes sobre a infância e por isso fui ver Nana, um filme que tem como complemento de abertura a curta metragem Rafa, de João Salaviza.
Para começar pelo princípio, Rafa é um filme português que recebeu um prémio internacional e, como é costume, os nossos críticos de cinema, sempre muito generosos com o artesanato, embandeiraram em arco falando de um renascimento do cinema português, agora é que vai ser, etc. e tal. Rafa, no entanto, não tem ponta por onde se lhe pegue ou, melhor dizendo, pode pegar-se-lhe por qualquer ponta que tanto faz. Passo a resumir o argumento: Rafa é um adolescente deprimido que vive num bairro social da margem sul com a mãe e a irmã, uma rapariga muito nova mas já com uma criança nos braços. Não há pais por perto naquela casa alumiada por um poste de iluminação pública. É noite, Rafa e a irmã estão em casa e esperam a mãe, que não há meio de chegar. Rafa decide ir a Lisboa à procura dela e vai directo a uma esquadra de polícia específica, o porquê disso nunca o saberemos. A mãe, que não tirou a carta, espetou o carro do amante (que nunca se vê, mas repetidamente insinuado como o mau da fita) contra uma parede ou assim e está presa, parece. Rafa quer vê-la, mas como não o deixam senta-se na soleira de uma porta em frente à esquadra. Caída do nada, deprimida no anoitecer, aparece a irmã com a criança nos braços. Fim. Perante isto, fiquei a pensar o que haveria de excepcional numa coisa destas? São os actores fantásticos? Não, e como é comum aos filmes portugueses a fita deveria ser legendada, pois os actores falam para dentro e não se percebe o que dizem. A fotografia é excelente, a montagem inteligente? Nada, para além de uns rodriguinhos que mostram a irmã sentada no apartamento social, bebé ao colo, o poste da EDP a revelá-la num chiaroscuro  de Pietá que só lhe revela metade da face e deixa tudo o resto numa penumbra muito artística. E, de repente, sem aviso ou ponto final, o filme acaba, como se estivesse muito cansado de existir.
Deve, aliás, ser esse final abrupto o motivo do encadeamento com o filme que se lhe seguiu, Nana, aquele que eu ia ver. Nana é um filme francês de 2011, realizado por uma senhora chamada Valerie Massadian e eu deveria ter desconfiado, depois da leitura de uma entrevista com a dama no jornal. A senhora revela-se daquele tipo abrasivamente alternativo, sempre a enunciar os seus princípios e posições existenciais e diz pérolas do subgénero de “só se conseguir entender com as crianças”, pois que os adultos perderam a genuinidade original. Não deixa até, e a propósito de nada, de narrar como um dia foi surpreendida na cama, em vias de fazer sexo, pela filhinha pequenita que entrou pelo quarto dentro de máquina fotográfica em punho...  
A dor de cabeça é que esta artista passa o filme inteiro a obrigar uma encantadora menina de 4 anos (Nana) a encenar todos os disparates muito simbólicos que lhe passam pela cabeça sobre a mordacidade da infância: força-a a assistir à matança, à sangria e à chamuscadela da pelagem de um porco; obriga-a a queimar um coelho morto (verdadeiro) na lareira; fá-la ter uma mãe louca e ausente que a deixa passar dias sozinha numa casa no meio de uma floresta, e outras improbabilidades semelhantes. Em nome de quê? Nunca se sabe, o filme também acaba de repente, como se a mulher tivesse gasto todas as ideias que tinha sobre a infância ao fim de escassos 60 minutos. Pobre Kelyna Lecomte (a menina que faz de Nana), espero bem que não venha a ficar traumatizada com tanto disparate.
Tabu.
Cara(o) ouvinte, quer ir ver um filme português bom, com uma história bem contada, actores credíveis e um trabalho de fotografia belíssimo? Então vá ver, enquanto ele aí está nas salas, o Tabu, um filme de Miguel Gomes, o senhor que realizou também esse encantador objecto intitulado Aquele Querido Mês de Agosto.




Nota: "O Dr. Vasconcelos jurou-me que, ao soar da badalada da uma hora na Torre de São Deniz, entraria nesta sala: Ei-lo!", do filme O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro, 1941.

12 maio 2012

ARRANJADO PARA A NOITE


Recordo a minha surpresa, um fim de dia ao chegar ao quarto, e dar com a banheira cheia de espuma branca, salpicada por pétalas rubras de flores colhidas de fresco.
Nos hotéis indianos acontece isso com frequência encantadora, encontrar sobre a cama, arranjada para a noite, uma composição produzida à base de lençóis de banho ou toalhas: um elefante, um par de cisnes cujo pescoço ondulado desenha um coração, uma flor... 
Outras vezes, conforme – suponho – a imaginação do artista (são sempre homens os camareiros indianos, a maior parte deles muito jovens), outras vezes, estava a relembrar, é um arranjo floral ou uma composição que mete fruta. Seja o que for, fez-me hoje, uma madrugada de Sábado em que os pássaros já chilreiam ou arrulham lá fora, acordar e ter saudades de um país em que a esta hora o sol brilha impiedoso e a luz queima tudo quanto mexe, fazendo-nos desejar que a tarde caia e, com um suspiro, penetremos na sombra amiga do nosso quarto, arranjado para a noite.


© Fotografias de Pedro Serrano, Índia. De cima para baixo: (1) Salcete, 2011; (2) e (3) Siquirim, 2012; (4) Mumbai, 2011; (5) e (6) Siquirim, 2012.

04 maio 2012

M, DE MELANCÓLICA

Vítima das promoções do Pingo Doce.

  © Fotografia de Pedro Serrano, Barcelona 2012.