30 abril 2011

MÃOS AO AL!

A fita de papel fora, à justa, vomitada e a menina, ao entregar-me o recibo que tinha acabado de rasgar em dois na guilhotina serrilhada da máquina de Multibanco, informou:
“Com esta compra oferecemos um seguro contra roubo, válido por seis meses... E, sorrindo:
“É muito vantajoso, pois já sai daqui seguro. Só tem de passar pelo nosso stand no segundo piso...”
Olhei o relógio, indeciso entre se iria tratar disso de imediato ou se voltaria noutro dia. Passava das sete e meia da tarde, tinha bilhete para o cinema, sessão das dez, e devia jantar antes... Por outro lado, a esta hora era capaz de não estar ninguém a tratar de seguros. Resolvi arriscar e saltei graciosamente para a lâmina de metal da escada-rolante que, de imediato, se transformou em degrau ascensor.
O stand dos seguros era um open space com quatro mesas de recepção. Apenas um funcionário estava sentado atrás de uma delas e, em frente, dispondo no chão os característicos sacos com triângulos verde-e-negro do El Corte Inglés, acabava de se instalar uma senhora. Apesar disso, não havia mais ninguém por perto e eu achei a aposta boa. O rapaz dos seguros, enfarpelado num fato preto com risquinhas cor de giz, perguntou que tipo de seguro procurava e pediu-me que me sentasse um pouco a uma das mesas vazias, pois atender-me-ia logo de seguida.
Retirei cuidadosamente a máquina fotográfica Leica da caixa de cartão e comecei a conferir o seu conteúdo, que fui dispondo em cima da mesa. Depois, de entre uma série de livros de instruções em várias línguas, escolhi a versão inglês-francês, pu-la em frente aos olhos e fui observando o que se passava.
A senhora que reinava entre sacos de plástico estava ali para fazer um seguro do recheio da sua casa e um tanto nervosa por não saber responder com precisão às perguntas do segurador que, na realidade, eram embaraçosas:
“Diria que a sua casa tem mais ou menos de 120 metros quadrados?”
Enquanto ela pensava, o rapaz aguardava de dedos expectantes sobre o teclado do computador, os grandes olhos espantados (um pouco como um Marty Feldman não estrábico), o fato fúnebre, a massa espetada e lisa de cabelo negro, conferindo-lhe um toque Família Adams, um recorte de corvo de desenhos animados.
Entretanto aproximou-se um par de novos clientes: uma senhora com a sua jovem filha e, após indagar o tipo de seguro a que se propunham, o jovem Marty fê-las sentar em outra das mesas vagas, o que elas fizeram com toda a calma ficando a conversar em voz de sala de espera de dentista. Voltei à leitura do folheto e ao modo de evitar olhos de coelho nas fotografias com flash, quando um novo personagem se aproximou. Desta vez era um tipo novo, de calções caqui pelos tornozelos e t-shirt, ar de quem está em férias, mas com a pose irritante do colérico que está, em permanência, a patrulhar os seus direitos. Entrou pelo stand dentro, ignorando precedências e perguntando ao empregado quanto tempo ia demorar a ser atendido. O rapaz respondeu que era difícil prever: estava a atender uma pessoa, havia mais duas à frente dele...
“E não há aqui mais ninguém que me possa atender?”
Marty fez um gesto de horas mortas, de “como vê...”
Irritado, o outro quis saber:
“E não há, por exemplo, uma senha que eu possa tirar e ir dar uma volta sem ter de estar aqui à espera?”
Quando, paciente e cortês, o rapaz dos seguros o informou que não, o outro deu uma meia volta cortante e desapareceu de cena cuspindo um:
“Isto não existe...”
e deixando-nos a todos mergulhados numa transitória sensação de irrealidade, tipo Strawberry Fields Forever ou assim.
Chegou a minha vez e, após registar os meus dados vitais no sistema, Marty fez um ar muito sério e disse:
“Agora vou-lhe explicar como dever proceder perante uma tentativa de assalto. É assim: primeiro, o importante é não oferecer resistência, não tentar reagir e entregar de imediato o produto ao assaltante...”
Assenti que sim, que faria logo isso.
“Depois”, continuou ele, “pode haver outros tipos de abordagens: a coação psicológica, a agressão verbal ou física; o saque por esticão. Em todas estas circunstâncias, o mais importante é que o senhor....”
“Entregue logo o produto...”, completei, mostrando que tinha apreendido a explicação e a técnica.
Satisfeito comigo, passou a explanar a parte boa do assunto:
“Depois só tem que nos aparecer aqui com o talão de venda, o contrato do seguro e uma declaração da polícia onde conste, o mais pormenorizadamente possível, o assalto e a descrição das características do produto.”
Acenei afirmativamente, fiquei a vê-lo completar a apólice, martelando as teclas do computador com uma energia física superior à necessária para que o computador processasse os caracteres; antecedendo cada sequência de digitação de um desdobrar aéreo de movimentos digitais que dariam para escrever um conto ou executar um prelúdio & fuga; todo aquele nervosismo informático sublinhado pela gincana constante a que obrigava o rato, o indicador magro, onde brilhava um anel de metal branco, clicando o dispositivo como se fosse um emissor de sinais morse.
“Ah!”, acrescentou, levantando para mim o arregalado dos olhos, na correção satisfeita e atempada de um esquecimento fulcral, “o seguro é válido para assalto ocorrido em qualquer país do mundo!”
Transmutei-me para uma esquadra de Guangdong, vendo-me a explicar ao comissário o que me tinha acabado de acontecer, a necessidade de levar ao Corte Inglês uma declaração policial abalizada:
“Eu estava no restaurante, tinha acabado de empunhar a minha máquina fotográfica nova para fotografar o pato lacado... Sabe, é que eu mantenho um blog, tenho responsabilidades para com os meus leitores...”
A autoridade arrebitou as orelhas, desconfiada com aquela de andar a ser fotografada propriedade chinesa para divulgar na net... Seco, inquiriu, o lápis Chung Hwa, suspenso:
“Qual nome do jolnal na intelnet?”
“Não é um jornal, é um blog! Chama-se semcompromisso, isto é, corrigi, semcomplomisso...”
Quando o homem acalmou, continuei a descrição do incidente:
“Estava a tental fotoglafal o pato, quando o enelgúmeno apaleceu de lepente e glitou:”
“Mãos ao al, isto é um assalto!”
“Importa-se de assinar aqui, por favor?”, uma voz interrompeu o meu devaneio. Rubriquei em frente ao espaço que o indicador anilhado me apontava. Perguntei:
“Já está? É tudo?”
“É tudo”, respondeu Marty com um sorriso ternamente intimidante, estendendo-me a mão.
Cá fora, uma noite cálida tinha caído sobre a cidade. Atravessei a rua olhando em volta, fixando os transeuntes com quem me ia cruzando na busca de um eventual meliante. Mas consegui fazer todo o trajecto até à mala do carro sem ser incomodado e entrei no restaurante vagamente desiludido, sem outra preocupação que não fosse a de chegar a horas à sessão das dez.

© Fotografia de Pedro Serrano, 2009.
   

  

25 abril 2011

Ponto de Vista












Em nenhuma das últimas
fotografias que por ali bati
Se vê o estranho em que me tornei
Para aquela casa onde vivi.

Ao ranger da ferrugem
Que empena o portão
Melros surpreendidos
voaram esbaforidos
Para longe do chão de
gavinhas farejantes,
atrevidas,
Descidas do seu poiso habitual.

Não é mais que natural,
Diz o antigo jardineiro,
Agachado num canteiro
Arrancando às mãos cheias
Ervas nobres e plebeias.

Rememorando quem se debruçava nelas
Apontei a lente da máquina às janelas
Talvez pudesse reter aqueles instantes...
Mas, vindo eu aí uma vez por semana,
Isto voltava a ficar tudo como dantes...








© Fotografias de Pedro Serrano, 2010; de cima para baixo: (1) Porto; (2) S. Tomé e Príncipe; (3) Porto.

22 abril 2011

Um dia como este

Dadá devia ter gostado de um dia como este/
com todas estas realistas/ irrealidades/
cada qual quase a tornar-se/ 
demasiadamente irreal em relação ao lugar que ocupa/
o qual nunca é suficientemente distante/
para poder ser a Boémia


Lawrence Ferlinghetti (fragmento do poema "Dadá devia ter gostado de um dia como este")


© Fotografias de Pedro Serrano, ilha do Sal (Cabo Verde), 2011.

21 abril 2011

Hoje há compaixão c/ todos




No degrau mais baixo da escada, da escala; no tom menor do denominador comum, há uma semelhança crassa entre todos os animais.
Não sei se já viram uma criança com uma desnutrição grave, provocada ou por não ter que comer ou porque o ambiente na barraca onde mora é tão negligente e desatinado que a deixam sem comer ou a alimentam de modo inconsequente em termos de quantidade, periodicidade e equilíbrio do que come?
De habitual, é uma criança com menos de dois anos (morrem antes de ter tempo de obter mais idade), pesando 4 ou 5 kg quando deviam pesar o triplo ou o quádruplo; o cabelo, originalmente negro, ganhou um tom avermelhado e quebradiço; a pele é seca, espetada por ossos, e, por toda ela, há feridas pequenas e circulares que parecem queimaduras de cigarro. Não são, são chagas que não curam, escarradas na pele por um sangue que não faz chegar oxigénio renovado suficiente, nutrientes suficientes. A criança bem tenta renovar-se, por isso a respiração é apressada e o peito, como um fole roto, no seu arfar chupa a pele entre as costelas
Mas, o mais impressionante desta crucificação lenta, é a atitude, é o olhar. São crianças que não choram se estendemos o estetoscópio para as auscultar, se lhes mexemos para as palpar: algumas gemem apenas e olham-nos com olhos apavorados – essas são as que estão no melhor desse pior estado. Outras exprimem no magoado do olhar o desconforto de estarem a ser perturbadas no seu direito a uma dor global e, finalmente, aquelas que morrerão em poucos dias miram-nos de um olhar fundo, indiferente, mais velho do que o mais espetado dos cristos, um olhar de onde se evaporou há muito a confiança, o brilho, o risonho da infância. Se é que alguma vez lá morou alguma dessas bênçãos.
Na ilha do Sal, os gatos que rondam as mesas dos restaurantes não se roçam nas pernas dos clientes – estão habituados a ser escorraçados; não miam alegremente para chamar a atenção das nossas migalhas – olham-nos com um olhar fixo, onde a angústia se mistura com a vigilância permanente de poderem ter de fugir para salvar a pele. Mesmo depois de se lhes atirar o primeiro nico do que comemos eles não sossegam e, quando estendemos o braço no balanço de uma segunda oferta, eles saltam para trás, assustados com o movimento. Já experimentaram o sabor de muita porrada à solta.
Os gatos do Sal são maioritariamente listrados, seriam bonitos não fora as costelas espetadas na pele, o pelo que lhes sobra e escorre da barriga como um tapete a secar numa corda; não fora a falta de brilho na pelagem e a ponta das orelhas corroídas por feridas que não saram e as moscas petiscam... E o olhar, aquele olhar onde não luz esperança em ninguém e o medo espreita.
Uma tarde quente e de céu azul, ao mudar-me da piscina para a esplanada do restaurante sobre a praia, ouvi um miar tão plangente que parei para ver de onde vinha e que aflição o provocaria.
Na esquina de uma das entradas para o restaurante, num pequeno canteiro, espetava-se um coqueiro e, a meio do seu tronco, um gato, em jeito de trepar por ali acima, miava, o pescoço virado no sentido do solo. Aproximei-me um pouco, espreitei. No chão, quase perdido nos chorões que atapetavam o canteiro, um minúsculo gatinho, olhava para cima, o corpo tremendo como varas verdes.
No tronco, a mãe continuava a miar para ele e ia subindo pelo coqueiro, como que incitando-o a fazer o mesmo. Mas o gatinho não se decidia, talvez, fosse demasiado pequeno ou demasiado fraco para o tentar. Desesperada, a mãe desceu o tronco, aproximou-se da cria, empurrou-o com o focinho. Tudo quanto conseguiu foi que o bichinho se metesse entre as suas pernas e desatasse a mamar uma barriga chupada de fome. Ela deixou-se estar uns minutos, voltou a escalar o tronco, miando à cria num tom plangente que parecia descrever as consequências de ele ficar em terra rasa: e os cães, que lhe chamariam um figo? E os outros gatos machos, que o despedaçariam por questões de clã? E os homens, que, com excepção das crianças, torciam o nariz a gatos em resorts?
“Trepa, inútil!”, parecia ela miar numa ansiedade que já me contagiava:
“Trepa, inútil...”, pensei.
E o gatinho lá acabou por saltar para o tronco, estatelando-se, logo a seguir, sobre os chorões; teimoso, voltou a tentar e, esgadanhando desajeitadamente o coqueiro, lá progrediu um esforçado metro. Satisfeita, a mãe subiu ainda mais no tronco e, chegada ao nível conveniente, saltou para o telhado adjacente, onde ficou a miar e a olhar para baixo, dizendo:
“É isto que eu quero que faças, inútil; aqui estás a salvo de todos os perigos...”
O gatinho manteve-se na árvore uns minutos, primeiro tentando trepar, depois, por muito cansado do esforço, acachapado numa imobilidade trémula. Por fim, voltou a cair na terra do canteiro.
“Inútil!”, rosnei para mim mesmo. E fomos comer.
Já sentado, enquanto esperávamos pela salada de polvo com pimentos e pela omeleta de cogumelos, roubei às entradas duas fatias de queijo de cabra e fui ver no que paravam as modas no coqueiro. Fiz a abordagem de muito próximo, pois apenas um murete separava a parede da entrada do restaurante do canteiro e quando a minha cabeça surgiu no cenário, a mãe-gata foi surpreendida pelo meu aparecimento súbito. Rápida como um raio, trepou o tronco até ao meu nível e brindou-me com um bufar assanhado como saudação.
“Está calada, estúpida de merda”, respondi, “não vês que te trago comida?”
Ela percebeu rapidamente, regressou ao chão e devorou em segundos os pedacitos de queijo que lhe ia lançando, não resistindo eu próprio a rilhar um  ou outro, tal o apetite dela estimulava o meu. Regressei à mesa.
Perto do fim da refeição, usando a mesma aproximação interna, regressei ao cenário do canteiro com um pedaço de omeleta e umas rodelas de polvo embrulhadas num guardanapo. Desta vez, ela não desatou a soprar como uma cobra enfurecida, limitou-se a olhar-me com aqueles olhos alucinados onde cabia toda a fé pela dureza do mundo.
Enquanto a mãe engolia os pedaços de polvo, o gatito, encostado a ela, mirava tudo, continuando a tremer como varas verdes nas duas da tarde escaldantes. Coitadito, era tão pequenino que ainda nem mastigar conseguia, era ainda um bichito de mama. Isto foi o que pensei até atirar o pedacito de omeleta, que, por má pontaria, caiu em frente ao focinhito minúsculo. O gatinho cheirou-o com todo o cuidado e, pressentindo que aquilo eram proteínas interessantes, desatou a mamar nos ovos como se fossem uma teta felina. Perto, em atenção total, a mãe deixou-o fossar, não esboçando a menor tentativa de lhe desviar a comida ou de a utilizar ela em proveito da sua fome pessoal. Finalmente, quando o gatito se fartou de mamar na matéria amarela, a mãe aproximou-se e engoliu o que restava.
Regressei á piscina, apliquei uma nova camada de protector solar, inclinei o chapéu de palha sobre os olhos, abri o Morrem Mais de Mágoa (do Saul Bellow) na página onde o tinha deixado e pensei que, talvez, todo aquele queijo, toda aquela omeleta, se volvessem rapidamente em leite e que o gatito pudesse, talvez, vir a conseguir o salto de meio metro que, subido o tronco, o separavam do telhado e, assim, sobreviver até amanhã.
Embalado neste pensamento reconfortante, adormeci com o livro pousado no colo.

© Fotografias de Pedro Serrano, ilha do Sal (Cabo Verde), 2011.

19 abril 2011

BRUMA SECA


Daniel era, principalmente, motorista de táxi, um Toyota com uma suspensão um tanto arrombada, e foi assim que o conhecemos. Mas, como todos os chauffeurs de táxi das redondezas, acumulava com a competência de guia turístico.
No dia em que nos foi buscar ao hotel para uma visita completa à ilha (coisa que se consegue numa manhã se a ilha é árida e tem uma dúzia de km de comprimento por meia-dúzia de largura), criticou asperamente o copo-de-leite de cabeça rapada e mochila às costas que encabeçava o destino de uma trintena de turistas que o seguiam como carneiros pela rua principal de Santa Maria:
“Olha p’rá’quilo! Veio três vezes ao Sal e já acha que conhece a história de Cabo Verde... E pagam-lhe!”
Apesar de só ter dois turistas à disposição nessa manhã, Daniel revelou-se um guia especial, do subtipo condutor de homens. Levou-nos onde muito bem entendeu e todas as sugestões que lhe fizemos, e que não constavam do seu esquema mental, foram soberbamente ignoradas. Assim, não fomos visitar a estação de dessalinização da ilha nem experimentar a moreia frita à cidade de Espargos.
Mas teve o cuidado de nos demonstrar que não era um guia ignorante do colorido local, como o branquela que víramos ao sair do hotel, e, dado o nosso interesse pelo tratamento da água, levou-nos a ver um depósito de água e o respectivo camião-cisterna, uma esquadra de polícia, e o club desportivo de Palmeira. O momento especial, no entanto, guardou-o como revelação para um trecho do trajecto entre Olho Azul e Pedra de Lume. De repente, sem qualquer aviso, fez sair o Toyota da estrada e, sem abrandar a velocidade, pôs-se a percorrer um trilho de terra, levantando atrás de nós um tornado de poeira, ao mesmo tempo que, como um prestidigitador que prepara a audiência, nos advertia:
“Estão a ver, não se vê nada aqui, pois não? Não há nenhuma água de um lado nem do outro, pois não?”
Confessámos que não, que não se via ponta de água: no chão só terra calcinada, no ar só poeira fina, no céu só azul e nem esperança de uma gota de chuva; daquele ponto nem o mar se enxergava.
Daniel continuou a guiar durante um km ou dois, perguntando-nos, a cada 200 metros, se víamos outra coisa que não deserto, aridez, bruma seca. Depois, aparentemente realizado com o nosso derradeiro “não”, fez com que o Toyota descrevesse um pião e apontasse o para-brisas para a sarça ardente que acabáramos de percorrer.
“E agora?”, perguntou, controlando as nossas expressões por um retrovisor onde se reflectia uma fiada de dentes felizes.
À nossa frente, bruxuleando na torreira do meio-dia, uma aprazível toalha de água azul cobria a terra, pareceu-me até ver uma ou duas palmeiras no horizonte.
“Ah... é uma miragem”, exclamei.
Quando lhe expliquei que também tínhamos daquilo em Portugal, pareceu pouco interessado e não descansou enquanto não tirámos uma ou duas fotografias ao local, pedindo para espreitar o visor da máquina, assegurando-se que a nitidez era suficiente para a posteridade que aí vinha.
Sorridente, abriu o guarda-luvas e tirou de lá um pano, após o que abriu a porta do carro e saiu para a inclemência. Algo incrédulos, vimo-lo dar a volta ao carro e limpar cuidadosamente os vidros das portas traseiras, dando especial atenção à borracha que lambe a folha de vidro quando o mecanismo eléctrico de abrir as janelas é accionado. Dando-se conta do nosso espanto, informou em voz que se ouvisse através dos vidros:
“É para que não fiquem cobertos de pó quando abrirem as janelas...”
Esmagados por aquele zelo, não dissemos palavra na meia-hora seguinte e eu fiquei mesmo sem saber se a imagem de uma vaca que vi surgir do nada, atravessada na paisagem, seria animal de carne e osso ou simplesmente o holograma de um bovino miraculoso.  

© Fotografias de Pedro Serrano, ilha do Sal (Cabo Verde), Abril 2011.

18 abril 2011

INTENSO LUAR


Quando amanhã, pelas dez da noite, o Zézinho me vier buscar completar-se-ão as três semanas em que deambulo por Cabo Verde, misturando trabalho e férias de um modo tão harmónico que ninguém saberá quem começou o quê.
Em pouco mais de dez minutos, o Zézinho deixar-me-á no bonito e eficiente aeroporto da Praia onde, pelo meu pé e sob intenso luar, vou atravessar o asfalto da pista até às escadas do avião que, depois dos sacolejos de um autocarro apinhado, me vomitará na Portela e nesse deprimente país que tentei esquecer durante estes dias. Mas não foi fácil, pois apesar de nunca ter, sequer, ligado a televisão nos três quartos diferentes onde estive, esta gente não faz outra coisa senão ver TV portuguesa! E não me refiro à RTP-África, mas sim à RTP1, à SIC e à TVI, canais que têm sintonizados em permanência, como se isto fosse Portugal ou uma qualquer adjacência. Na noite (só para sublinhar o que digo) em que o Futebol Club do Porto ganhou não sei que taça muito importante era ver os cortejos de carros apitando na noite e os cachecóis do Dragão a flutuarem janelas fora! Sublinhe-se que o glorioso FCP é apenas o segundo club mais amado no arquipélago, sendo o Benfica o primeiro, e o Sporting o terceiro, mas, como me confidenciou o Daniel, o nosso guia na ilha do Sal, o despertar do Braga está a causar enorme espanto...
Depois destes anos todos, há um qualquer affaire muito estranho entre eles (incluo também os angolanos no fenómeno) e nós, relação que não sei explicar mas que não nos causa estranheza alguma, embora deixe boquiabertos outros ex-colonizadores, como ingleses ou franceses, ou os neocolonialistas americanos, que se perguntam como é que restos de migalha como nós têm tanto peso em África. Enquanto eles se interrogam e tentam perceber o busílis, os nossos governantes continuam o sono dos justos, abrindo de vez em quando um olho para fitarem aterrorizados o Norte.
Adiante. Ontem, quando o avião levantou do Sal, havia intenso luar lá em baixo, espelhado no mar, desenhando os contornos da ilha, e a lua reverberava descarada pelos postigos adentro, mantendo o interior da aeronave prateado mesmo durante a escuridão de segurança da descolagem. Suponho que amanhã estará parecido, pois o céu mantém-se intoxicado de azul e a lua-cheia, graças a Deus ou ao bigbang, dura mais do que uma solitária noite.
Reclinado na esplanada sobre a piscina, aviava umas linguicinhas e picava quadradinhos de queijo de cabra do Fogo, enquanto imaginava tudo isto que escrevi e ia decidindo que tornaria tudo mais saboroso se desse ao meu texto um título em crioulo. Eis que a empregada se aproxima com o meu descafeinado Delta e eu, confiante no seu ar vivo, lhe pergunto:
“Como se diz luar em crioulo?”
“Como?!”, perguntou ela, com ar de não ter percebido bem a questão.
Luar”, repito, desdobrando a explicação, “sabe, como quando está lua-cheia e fica tudo claro e iluminado por ela...?”
“Luar!”, respondeu-me, levantando levemente os ombros e as sobrancelhas para sublinhar o ponto de exclamação.


© Fotografias de Pedro Serrano, Cabo Verde, Março e Abril 2011.

VOU-TE CONTAR: 34. Entrar pelo cano

Na cidade do Porto parece ser um pré-requisito à felicidade as pessoas morarem perto umas das outras ou, até, em cima umas das outras.
As minhas duas irmãs moram no mesmo prédio, uma no quarto-direito e a outra, para não imitar demasiado a mais velha, no terceiro-esquerdo. As minhas amigas, e irmãs, Pais que, por acaso, casaram com dois irmãos, moram no mesmo prédio onde, também por acaso, foi morar um amigo do grupo de quando todos tínhamos vinte anos e o tempo não existia. A minha prima Gabi, por acaso prima direita das referidas Pais e enviada pela vida para o degredo de Braga (uns longínquos 45 km do Porto), suspira ao dizer que o que gostava mesmo era de habitar uma grande casa onde residisse toda a gente de que gosta: as irmãs, os maridos e os filhos respectivos, os amigos, etc. Mas, o que é mais grave, é que esta loucura colectiva parece vir de trás...
No dealbar dos anos 50 do século XX, o meu avô Heitor mandou construir duas moradias geminadas em frente ao palacete que construiu para si próprio numa pacata zona residencial. O casal Zaida e Heitor tinham três filhos, mas só foi necessário construir duas casas, pois a minha tia Teresa, apesar de casada e com filhos, já morava em casa dos pais por onde, aliás, ficou provisoriamente até tudo se transformar em poeira cerca de 50 anos depois. Para uma dessas novas casas geminadas foram morar os meus tios e os meus primos e, para a outra, nós, isto é os meus pais, as minhas duas irmãs e eu. Resumindo: toda a família nuclear morava num raio de atravessar a rua, o que tornava o Natal muito prático e corresponde, mais coisa menos coisa, ao sonho da Gabi.
A minha casa mais antiga era cópia exacta da casa mais antiga dos meus primos: disposição dos quartos, salas, lançar das escadas, da claraboia; cozinha, quintal... Minto!, no terreiro para onde dava a porta da cozinha da nossa casa havia uma olaia, onde construímos uma casa, e no da casa dos meus tios havia um chorão de ramos pingões e que não servia para nada. Tirando isso, eram completamente iguais, construídas tão ao mesmo tempo, com o mesmo plano e com os mesmos materiais que até havia uma funcionalidade siamesa que devia ser partilhada por ambas as casas sob risco de morte por seca ou, pelo menos, de abjeção por sujidade. Refiro-me ao cano.
Clarinha e eu (enquadrado na porta da 1.ª caseta).
Neste cano corria a água que ia abastecer os tanques de lavar roupa de ambas as casas e que se situavam, em espelho e apenas separados por meio-muro, a uns vinte metros da porta das cozinhas. Bebendo directamente do abastecimento camarário, o cano iniciava o trajecto atravessando os alicerces e depois, já mais próximo da luz do sol, entranhado no muro que separava as duas casas, indo terminar-se, como uma serpente de chumbo com duas bocas, numa torneira sobre cada um dos tanques. Mas como gerir em harmonia um cano que serve duas famílias e a hipótese de se querer lavar roupa a horas desencontradas?
Felizmente alguém tinha pensado nisso e, na primeira caseta, os operários que construíram as casas deixaram um tijolo por colocar na parede que separava a nossa primeira caseta da primeira caseta da casa dos meus tios. Nesse buraco, somente do comprimento e da altura de um tijolo, o cano estava à mostra e sobre ele havia um manípulo que, rodado para um lado, dava água ao nosso tanque e, rodado para o outro, vertia água no tanque dos meus primos.
Quis o destino que esse buraco e esse manípulo de metal viessem a ter uma outra funcionalidade, esta para além do sonho mais louco do construtor das moradias geminadas. Esse buraco tornou-se o principal ponto de comunicação entre as duas casas e a expressão “vai chamar a tua tia ao cano” era tão natural nas nossas vidas como o ir para a mesa ou o ir à porta atender o toque do carteiro.
“Tomásia, por favor vá ao cano e diga à D. Olinda que preciso falar com ela...”,
dizia a minha mãe à criada, como se não houvesse telefone ou não fosse possível conversar frente a frente no sítio em que o muro que separava os quintais dava aos adultos pela cintura. Mas não, ninguém usava os telefones ou se lembrava, sequer, de falar de janela para janela. Ia-se à caseta, uma arrecadação anexa à porta da cozinha onde se guardavam vassouras, baldes e outros utensílios com cabo como ancinhos e enxadas, ou produtos relacionados com a limpeza e a fertilização como a água-rás, a creolina e o Foskamónio, soltava-se o manípulo da rosca onde estava encaixado o manípulo e batia-se com este no cano até que alguém ouvisse as vibrações do lado de lá. 
Estabelecido o contacto, a minha mãe e a minha tia Olinda, cunhadas amigas muito conversantes, dialogavam horas em pé, dobradas, de modo a conseguirem ver uma nesga da cara uma da outra através do buraco no cano, e parecendo-se, na pose, com as figuras de pescoços distorcidos das pinturas modernistas.
Não recordo, para além da incumbência de ir chamar alguém ao cano para proveito de um adulto, o ter usado o cano em proveito próprio. Acho que éramos considerados demasiado pequenos e irresponsáveis para termos acesso a tal tecnologia.


Imagens, de cima para baixo: (1) © fotógrafo desconhecido, anos 60; (2) Pablo Picasso.

13 abril 2011

SOFÁ N.º 2


Em casa da minha sogra há um patamar entre o primeiro e o segundo lance de escadas, suficientemente espaçoso para que ali caiba um sofá de dois corpos.
Frequentemente ali me sentava a escrever ou trabalhar no computador portátil, pois para além do recolhimento do local, o patamar era enquadrado por  uma ampla janela por onde espreitava a ramagem da copa de um possante pinheiro manso, cuja copa verde quase negro condizia magnificamente com o verde-líquen do veludo do sofá.
Apesar de se encontrar num ponto de passagem e do seu ar algo órfão de quem estava ali porque era preciso pô-lo nalgum lado e se ranges demasiado vais parar à cave, não era o único a procurar esse sofá. À época em que mais usei este poiso (ano 2000, andava a escrever um livro chamado Coração Independente), as crianças da casa – os meus sobrinhos Dominique, Carolina, João Pedro e o meu filho Zé João – procuravam-no amiúde, calculo que pela mistura mágica de ingredientes que oferecia o local. Veja-se: o inesperado de um sofá num sítio onde não se espera um móvel de estar; a luminosidade, ora de túnel ora de fogueira que se derramava por uma janela que nos chegava aos pés; o meio caminho entre o silencioso andar dos quartos e o bulício quente do andar de baixo: a sala de estar e de jantar, a cozinha e, acima de tudo, infiro pelas minhas memórias de infância, esse isolamento que nos empurra a nós mesmos e nos revela, a nós próprios, como seres sozinhos e cheios de pensamentos reverberantes; essa ameaça que facilmente se podia reverter descendo uma dezena de degraus e entrando de rompante na sala cheia de gente.
Um dia, na calmaria de um começo de tarde, quando já se almoçou, da cozinha só chega o zumbido do motor da máquina de lavar louça e da sala o roçagar de páginas de jornal molemente folheadas, uma sombra loura pousou ao meu lado que, sentado no sofá do patamar, aflorava o teclado do computador. Uma voz infantil, com a inflexão cuidadosa e meiga de quem vai fazer um assalto, perguntou:
“Que estás a fazer...?”
Nessa tarde de Verão, a minha sobrinha Dominique Berhan Leth-Sørensen tinha cinco anos e, por força das circunstâncias de ter mãe portuguesa, pai dinamarquês e morar em Bruxelas, já se exprimia com fluência em português, francês e dinamarquês. Esta babel linguística dava à Domi uma encantadora e algo inusitada forma de articular as sílabas e de entoar as palavras, de modo que o seu falar português, de vocabulário rico e requintado, era (e assim se mantém até hoje) bem torneado, mas cruzado por milimétricas pausas para escolher o vocábulo preciso que exprimisse a ideia que nos pretendia fazer chegar.
“Estou a escrever uma coisa...”,
respondi vagamente, nesse instante ainda a sentir a interrupção do meu pensamento, em vias de se transformar em palavra escrita, como uma intrusão à produtividade.
“Que coisa?”
“Uma história sobre uma doença que tive...”
“Ah...”, disse ela, e nesse momento já se tinha sentado etereamente ao meu lado e espreitava o ecrã, “estiveste quase a morrer não foi?”
“Foi.”
“Seguiu-se um silêncio, que ela aproveitou para enfiar os pés descalços debaixo do rabo, se encostar ao meu ombro e dizer:
“Podes continuar a escrever, que eu só fico aqui a ver-te...”
Escrevi durante uns minutos, reparando, surpreso, que aquela presença não me perturbava, pelo contrário era uma companhia calmante. No entretanto ela olhava-me atentamente, depois perguntou:
“Tiveste medo de poder ir morrer...?”
A conversa que se seguiu tivemo-la a um ritmo de mãos enlaçadas e desentrelaçadas e olhos nos olhos, como é adequado a um diálogo sobre a vida e a morte, e eu siderado com as reflexões que ela tecia em torno dos factos e dos conceitos – era, visivelmente, um assunto que lhe interessava, porventura por se ter apercebido recentemente da sua própria finitude.
Da esquerda para a direita: Domi e Carolina.
Voltei a ter, mais tarde e sempre por ignição dela, algumas outras conversas sobre o tema, fosse no sofá verde ou na rede em que me balançava ao som da brisa, suspenso entre duas árvores do quintal de Cascais, rede para a qual ela trepava sem esforço e sem cerimónia.
“Domi, deixa o tio Pedro em paz...”, admoestava-a a mãe ou a avó.
“Deixa estar, gosto de falar com ela... Sabes, Nita, acho que a tua filha, quando for grande ou vai ser filósofa ou modelo!”
“Achas?”, perguntava a mãe, uma ruga de genuína preocupação a vincar-lhe a testa.
Agora a Domi anda pelos quinze anos e, como é natural, o seu coração oscila mais para a passerelle do que para a filosofia. Mas tempo é barro que lhe sobra e pode estender-se comodamente num sofá a pensar nisso.

© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) Cascais, 2008; (2) Cascais, 2011; (3) Cascais, 2010.





Nota: "Sofá No 2" é também uma composição de Frank Zappa (CD One Size Fits All, 1975; design da capa de Cal Schenkel).

10 abril 2011

ALL INCLUSIVE

Quando pediu a terceira caneca de cerveja, a empregada, uma mulata de olhos castanho-claro, perguntou:
“É all inclusive?”
Carlos levantou o braço, exibiu a pulseira de plástico vermelho:
“Podes falar-me em português! É, é tudo all inclusive, não vês a anilha?"
Ao ritmo de uma coladeira, Ângela dançava sozinha na pista de dança, na órbita do Luís e da Leonor que rodopiavam felizes como piões. Dava inveja, o modo como a cunhada e o marido, casados há mais de sete anos, se davam bem, como pareciam preferir a companhia um do outro a outra companhia qualquer.
Ele e Ângela, pelo contrário... Carlos tinha os nervos à flor da pele, fora uma coisa que herdara do pai, e Ângela uma mania de ver tudo cor-de-rosa num mundo que era mais cinzento do que outra cor. E aquela pachorra dela... irritava-o. Ainda há bocado... Tinham combinado com os cunhados encontrar-se às oito no Salinas, o restaurante  mais categorizado do resort; era a Noite Tropical, jantar ao som de música ao vivo, seguido de baile.
“Oito em ponto, lá”, assinara o pacto à porta do quarto, depois de chegarem da piscina, “se não arriscamo-nos a apanhar uma mesa de merda...”
Pois, Senhor, apesar disto, apesar de ter ouvido perfeitamente a combinação, Ângela demorara-se ainda a telefonar ao pai e à mãe, a descrever tudo quanto tinham feito durante o dia, o que tinham comido, a T-shirt rosa com I Love Cabo-Verde que tinha comprado para a Bebiana, a sobrinhita que ficara em Rio Tinto com os avós; o carago a quatro! Depois, enquanto ele tomara um duche e se vestira em dez minutos, ela fechara-se no quarto de banho durante mais de meia-hora donde saiu toda nua, a cara besuntada de creme, o cabelo enrolado dentro de uma toalha de banho! E ele, estirado na cama, já a começar a ferver, folheando o prospecto das excursões à ilha sem conseguir fixar uma palavra...
“Ângela, não sei se já reparaste: são oito menos quatro...”
E ela a tirar cruzetas do armário, a perguntar:
“Achas que leve o azul ou o preto?”
E ele:
“Leva o que quiseres, mas vê se te despachas..., o Luís e a tua irmã já devem estar à nossa espera lá em baixo...”
E ela, encostando os vestidos ao corpo em frente ao espelho, com cabide e tudo:
“Oh, isso é o que tu pensas – a Leonor ainda é pior do que eu a arranjar-se...”
E ele:
“Está certo, pode ser que sim, até podia ser paralítica, problema deles; mas nós combinámos às oito. Enquanto esperamos podemos ir tratando da mesa..."
(a espumar por dentro).
Quando saíram do quarto eram oito e trinta e dois e Carlos tinha dado a noite como estragada; empurrou com ódio a tentativa de abraço de Ângela, ignorou o sorriso contente dela, a pergunta:
“Estou bonita...?”
Quem, sem pergunta nenhuma, acabara por responder à pergunta fora o Luís que, ao entrarem na recepção, a brindou com um:
“Mas olha só que princesa! Já viste a tua irmã, Leonor?”
Apesar do restaurante estar bastante cheio, tiveram a sorte de arranjar mesa para quatro perto da pista de dança, pois o cunhado, que metia conversa com toda a gente por onde passava, fizera amizade com uma empregada que ás vezes também estava nos pequenos-almoços, uma mulata gordinha e de imponente cagueiro, dona de uns belos olhos castanho-claro.
E agora estava para ali, a olhar o palco, infeliz por não fazer parte do que nele se passava, mas honrando a zanga que começara no quarto. Carlos deu um gole na caneca, a cerveja soube-lhe a azedo, perdera o gás e a graça. Dali a três dias estariam outra vez lá, na bicha de trânsito para a Circunvalação, ele a atender telefonemas impantes de assinantes estúpidos que não sabiam sequer usar o telemóvel topo de gama que tinham comprado; ela a impingir vestidos na Lanidor a gajas que mal cabiam dentro deles.
Olhou a pista. A música tinha acabado, começara uma de ritmo lento e Ângela fizera menção de regressar à mesa, deixando a irmã e o cunhado a dançar agarradinhos. Mas eles não deixaram, a irmã passou-lhe o braço pelo ombro, o cunhado fechara o anel e faziam agora um trio dançante.
Carlos emborcou o resto da caneca. Logo a seguir sentiu qualquer coisa estalar e ceder dentro dele, aquelas putas daquelas mornas tinham um efeito estranho, mesmo sem perceber as palavras a música acendia nele uma nostalgia por algo de bom que, embora passado para sempre, sem remédio, se deseja de volta. Levantou-se, atravessou o espaço até ao palco em passo inseguro, tocou no ombro de Ângela, perguntou em voz pastosa:
“Dá-me a honra desta dança...?”
Ela acenou um sim húmido, abriu-lhe os braços e incluiu no pacote o mesmo sorriso que lhe arreganhara quatro anos atrás quando, pela primeira vez, a convidara para dançar no salão dos Bombeiros de Rio Tinto.

© Fotografia de Pedro Serrano, Mumbai (Índia), 2011.



09 abril 2011

Não está habituada!


Quando você gritou Mengo!
no segundo gol do Zico
tirei sem pensar o cinto
e bati até cansar.
Três anos vivendo juntos
e eu sempre disse contente:
minha preta é uma rainha...

João Bosco/Aldir Blanc ("Gol Anulado", 1976)

O jornal mais popular em Cabo Verde é o Expresso, um diário apregoado desde manhã cedo nas ruas. O número de 6 de Abril, uma quarta-feira cheia de sol, trazia uma reportagem intitulada Violência baseada no género: sociedade ainda não está habituada e, da sua leitura, colhi estranhos ensinamentos no texto do inquérito levado a cabo junto das mulheres cabo-verdianas.
Por exemplo, os inquiridores consideraram violência moderada o “deu-lhe pontapés”, o “bateu-lhe a soco com qualquer objecto que podia cortar” e o leitor só vem a perceber a razão desta categoria de agressão ser considerada moderada quando mergulha na descrição dos itens da violência física severa, onde constam joias comportamentais como: “ameaçou-lhe com faca” ou “tentou estrangular-lhe ou queimar”.
Finalmente, na violência sexual, para além do clássico “forçou fisicamente a ter relações sexuais”, encontra-se um enigmático “obrigou-lhe a praticar outro tipo de actos”, item que deixa em polvorosa as imaginações mais prodigiosas.

© Fotografia de Pedro Serrano, Mumbai (Índia), 2011.

Elis Regina, "Gol Anulado" (João Bosco/Aldir Blanc, 1976)

08 abril 2011

Natal em pleno Verão


Dei-o por barato aquela primeira vez; ia sair-me caro.
Deixava o Pão Quente, um café com padaria onde todos os dias ia procurar pequeno-almoço e o tomava com as idiosincrasias só possíveis em Portugal: carcassa com queijo flamengo, Ucal de chocolate, fresco, “ai, acabou-se? então traga-me um Sumol de ananás fresco”.
Vi-o pelo canto do olho, fingi que não, continuei a andar enquanto ele se punha ao nosso lado, marchava ao nosso ritmo, como se fosse um de nós. Pediu uma moeda, quis saber se estávamos mesmo bons…
“Estávamos”, respondi sem mover a cabeça, “até que apareceu aqui um mosquito…”
“Em Cabo Verde não há mosquitos”, respondeu prontamente, “costumava haver mas já não há…”
E foi-nos bombardeando com frases bem humoradas nos cem metros que nos separavam do nosso destino, de tal modo contente, inspirado e envolvente na insistência que, antes de entrar a porta, lhe dei os 100 escudos (cerca de 90 cêntimos de euro) que nos tinha pedido no princípio.
“Vais trabalhar, agora?”, perguntou.
“Vou”, respondi, olhando-o de frente pela primeira vez. Era magro, alto, vestia roupa amarrotada, não cheirava como um anjo, e não teria mais que catorze ou quinze anos.
“Bom trabalho”, desejou, dando meia-volta, “vemo-nos por aí…”
E vimos. No dia seguinte, pelas oito da manhã, quando saí do taxi à porta do Pão Quente encontrei-o, encostado à montra, vestindo, por cima da mesmíssima camisa amarrotada da véspera, um casaco vermelho de Pai Natal, orlado de pelinho branco e tudo.
“Então, meu amigo”, saudou-me com um grande sorriso, “vais tomar o pequeno-almoço antes de trabalhar?”
Depois confessou que ainda não tinha tomado o dele, que até se sentia mareado…
“Safas-te com isto?”, perguntei, metendo  a mão no bolso e estendendo-lhe 100 escudos.
“Claro”, agradeceu, os dentes todos expostos à magnífica luz da manhã e dando-me uma espécie de abraço conscientemente pouco apertado, como convém entre gente que se conhece pouco, “vemo-nos por aí…”
À hora do almoço, a meio do caminho para o Casa Grande, o restaurantezinho-tasca onde íamos sempre almoçar, apareceu, saudando efusivamente do lado de lá da rua:
“Hoje não te vou pedir mais dinheiro, já me deste 100 paus de manhã”, disse, mostrando que tinha uma ética pessoal, “só te peço que me ofereças um prato de arroz, não como nada desde manhã”.
Tínhamos chegado à porta do restaurante. Parei, convidei-o:
“Está bem, então, pago-te o almoço”, e abri a porta, convidando-o a entrar.
“Dá-me antes 300 paus”, propôs, “vou comer a outro sítio que conheço, a ti sai-te mais barato – esse restaurante onde vais é caro”.
Pegou nas moedas que lhe dei, tranquilizou-me:
“Não te preocupes, quando acabares de comer já estarei aqui à tua espera...”
No dia seguinte, não o vi de manhã, à porta do Pão Quente, mas encontrei-o à hora do almoço, descalço e com um ar preocupado.
“Descansa que não te vou pedir dinheiro, és meu amigo e tens-me dado de comer, só te peço se me ajudas a comprar uma havaianas... Fui à praia, tomar banho no mar, e quando voltei tinham-mas levado...” E, olhando, desolado, para os pés, como se fosse vergonhoso andar assim pelo cimento quadriculado quente: “Olha só...”
“E quanto custam umas havaianas?”
“Podia arranjar umas por 300 paus nos chineses, mas são uma porcaria – iam desfazer-se logo, era o mesmo que não comprar nada”, respondeu, pensando em alternativas válidas: “Por 600 escudos compro uma coisa boa”, concluiu, rápido.
Meti a mão ao bolso. Entre as abundantes notas de 2.000 e 1.000 escudos que lá tinha saquei discretamente uma nota de 500.
“Toma...”
“Não percebeste bem, eu disse 600...”
“Eu sei, mas não tenho mais que te possa dar...”
Pegou na nota e, num ápice, já estava no outro lado da rua, sossegando-me em voz sonora e satisfeita:
“Não te preocupes, vou arranjar os 100 paus por aí!”
Já estava eu a dobrar a esquina com a rua Andrade Corvo, apareceu-me, como caído pela chaminé do céu quente da tarde, para informar:
“Amanhã trago-te as havaianas novas, para veres que as comprei...”
E, de facto, na manhã seguinte, nem eram bem oito, lá estava, encostado à montra do Pão Quente, sorridente e descalço, um saco de plástico azul-bebé a tiracolo, fazendo contraste com o vermelho intenso do casaco de Pai Natal.
“Amigo, olha”, recebeu-me com o sorriso resplandecente, e extraiu do saco um par de sapatilhas de lona de um belo azul-escuro e solas de borracha branca.
“Consegui-as por 500 paus e ainda mais isto...”, esclareceu, levantando as bainhas esfiapadas das calças e exibindo uma espécie de polainas em borracha, uma coisa com ar de acessório de surfista.
Último dia na Praia, ilha de Santiago. Chego ao Plateau, a zona da cidade em que estou a trabalhar e onde reina o meu jovem amigo, com a ideia de lhe tirar uma foto, saber-lhe o nome, confirmar a idade. Não o encontrei de manhã, mas, à hora do almoço, saído do nada e como por milagre, apareceu-me já eu ia em plena rua Miguel Bombarda, a rua do restaurante Casa Nova.
“Onde está o teu casaco de Pai Natal?”, inquiri, algo desiludido, “gostava de tirar-te uma fotografia com ele...”
“Nunca uso casaco a esta hora, é muito calor! Só o uso para dormir no carro, e de manhã, quando ainda está frio...”
Depois reparou no blazer azul que eu trazia vestido, emendou a mão:
“Tu tens de usar casaco, és um senhor de posição; mas eu não...”
E logo arranjou uma solução:
“Não te aflijas, vais trabalhar e, quando acabares, procuras-me na montra do Pão Quente, vou estar lá e levo o casaco vestido...”
Quando, pelas três e meia da tarde cheguei à montra do café, vi-o sair de um carro, estacionado na berma do passeio, um automóvel já sem pneus e vidros nas janelas, com o ar arruinado e triste dos carros abandonados.
“É ali que moras?”
Era. Antes de lhe tirar as fotografias perguntei-lhe a idade, o nome, e para que não me esquecesse apontei-os num canto do cabeçalho do jornal que levava comigo. Ele seguiu atentamente a minha escrita, foi soletrando as letras à medida que eu as desenhava: o meu Pai Natal tem 15 anos e chama-se Nixon. Nixon Rodrigues Pedrigues, como fez menção que ficasse registado. 

© Fotografias de Pedro Serrano, Praia (Cabo Verde), Abril 2011.