Em casa da minha sogra há um patamar entre o primeiro e o segundo lance de escadas, suficientemente espaçoso para que ali caiba um sofá de dois corpos.
Frequentemente ali me sentava a escrever ou trabalhar no computador portátil, pois para além do recolhimento do local, o patamar era enquadrado por uma ampla janela por onde espreitava a ramagem da copa de um possante pinheiro manso, cuja copa verde quase negro condizia magnificamente com o verde-líquen do veludo do sofá.
Apesar de se encontrar num ponto de passagem e do seu ar algo órfão de quem estava ali porque era preciso pô-lo nalgum lado e se ranges demasiado vais parar à cave, não era o único a procurar esse sofá. À época em que mais usei este poiso (ano 2000, andava a escrever um livro chamado Coração Independente), as crianças da casa – os meus sobrinhos Dominique, Carolina, João Pedro e o meu filho Zé João – procuravam-no amiúde, calculo que pela mistura mágica de ingredientes que oferecia o local. Veja-se: o inesperado de um sofá num sítio onde não se espera um móvel de estar; a luminosidade, ora de túnel ora de fogueira que se derramava por uma janela que nos chegava aos pés; o meio caminho entre o silencioso andar dos quartos e o bulício quente do andar de baixo: a sala de estar e de jantar, a cozinha e, acima de tudo, infiro pelas minhas memórias de infância, esse isolamento que nos empurra a nós mesmos e nos revela, a nós próprios, como seres sozinhos e cheios de pensamentos reverberantes; essa ameaça que facilmente se podia reverter descendo uma dezena de degraus e entrando de rompante na sala cheia de gente.
Um dia, na calmaria de um começo de tarde, quando já se almoçou, da cozinha só chega o zumbido do motor da máquina de lavar louça e da sala o roçagar de páginas de jornal molemente folheadas, uma sombra loura pousou ao meu lado que, sentado no sofá do patamar, aflorava o teclado do computador. Uma voz infantil, com a inflexão cuidadosa e meiga de quem vai fazer um assalto, perguntou:
“Que estás a fazer...?”
Nessa tarde de Verão, a minha sobrinha Dominique Berhan Leth-Sørensen tinha cinco anos e, por força das circunstâncias de ter mãe portuguesa, pai dinamarquês e morar em Bruxelas, já se exprimia com fluência em português, francês e dinamarquês. Esta babel linguística dava à Domi uma encantadora e algo inusitada forma de articular as sílabas e de entoar as palavras, de modo que o seu falar português, de vocabulário rico e requintado, era (e assim se mantém até hoje) bem torneado, mas cruzado por milimétricas pausas para escolher o vocábulo preciso que exprimisse a ideia que nos pretendia fazer chegar.
“Estou a escrever uma coisa...”,
respondi vagamente, nesse instante ainda a sentir a interrupção do meu pensamento, em vias de se transformar em palavra escrita, como uma intrusão à produtividade.
“Que coisa?”
“Uma história sobre uma doença que tive...”
“Ah...”, disse ela, e nesse momento já se tinha sentado etereamente ao meu lado e espreitava o ecrã, “estiveste quase a morrer não foi?”
“Foi.”
“Seguiu-se um silêncio, que ela aproveitou para enfiar os pés descalços debaixo do rabo, se encostar ao meu ombro e dizer:
“Podes continuar a escrever, que eu só fico aqui a ver-te...”
Escrevi durante uns minutos, reparando, surpreso, que aquela presença não me perturbava, pelo contrário era uma companhia calmante. No entretanto ela olhava-me atentamente, depois perguntou:
“Tiveste medo de poder ir morrer...?”
A conversa que se seguiu tivemo-la a um ritmo de mãos enlaçadas e desentrelaçadas e olhos nos olhos, como é adequado a um diálogo sobre a vida e a morte, e eu siderado com as reflexões que ela tecia em torno dos factos e dos conceitos – era, visivelmente, um assunto que lhe interessava, porventura por se ter apercebido recentemente da sua própria finitude.
Da esquerda para a direita: Domi e Carolina. |
Voltei a ter, mais tarde e sempre por ignição dela, algumas outras conversas sobre o tema, fosse no sofá verde ou na rede em que me balançava ao som da brisa, suspenso entre duas árvores do quintal de Cascais, rede para a qual ela trepava sem esforço e sem cerimónia.
“Domi, deixa o tio Pedro em paz...”, admoestava-a a mãe ou a avó.
“Deixa estar, gosto de falar com ela... Sabes, Nita, acho que a tua filha, quando for grande ou vai ser filósofa ou modelo!”
“Achas?”, perguntava a mãe, uma ruga de genuína preocupação a vincar-lhe a testa.
Agora a Domi anda pelos quinze anos e, como é natural, o seu coração oscila mais para a passerelle do que para a filosofia. Mas tempo é barro que lhe sobra e pode estender-se comodamente num sofá a pensar nisso.
© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) Cascais, 2008; (2) Cascais, 2011; (3) Cascais, 2010.
Nota: "Sofá No 2" é também uma composição de Frank Zappa (CD One Size Fits All, 1975; design da capa de Cal Schenkel).
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