Dei-o por barato aquela primeira vez; ia sair-me caro.
Deixava o Pão Quente, um café com padaria onde todos os dias ia procurar pequeno-almoço e o tomava com as idiosincrasias só possíveis em Portugal: carcassa com queijo flamengo, Ucal de chocolate, fresco, “ai, acabou-se? então traga-me um Sumol de ananás fresco”.
Vi-o pelo canto do olho, fingi que não, continuei a andar enquanto ele se punha ao nosso lado, marchava ao nosso ritmo, como se fosse um de nós. Pediu uma moeda, quis saber se estávamos mesmo bons…
“Estávamos”, respondi sem mover a cabeça, “até que apareceu aqui um mosquito…”
“Em Cabo Verde não há mosquitos”, respondeu prontamente, “costumava haver mas já não há…”
E foi-nos bombardeando com frases bem humoradas nos cem metros que nos separavam do nosso destino, de tal modo contente, inspirado e envolvente na insistência que, antes de entrar a porta, lhe dei os 100 escudos (cerca de 90 cêntimos de euro) que nos tinha pedido no princípio.
“Vais trabalhar, agora?”, perguntou.
“Vou”, respondi, olhando-o de frente pela primeira vez. Era magro, alto, vestia roupa amarrotada, não cheirava como um anjo, e não teria mais que catorze ou quinze anos.
“Bom trabalho”, desejou, dando meia-volta, “vemo-nos por aí…”
E vimos. No dia seguinte, pelas oito da manhã, quando saí do taxi à porta do Pão Quente encontrei-o, encostado à montra, vestindo, por cima da mesmíssima camisa amarrotada da véspera, um casaco vermelho de Pai Natal, orlado de pelinho branco e tudo.
“Então, meu amigo”, saudou-me com um grande sorriso, “vais tomar o pequeno-almoço antes de trabalhar?”
Depois confessou que ainda não tinha tomado o dele, que até se sentia mareado…
“Safas-te com isto?”, perguntei, metendo a mão no bolso e estendendo-lhe 100 escudos.
“Claro”, agradeceu, os dentes todos expostos à magnífica luz da manhã e dando-me uma espécie de abraço conscientemente pouco apertado, como convém entre gente que se conhece pouco, “vemo-nos por aí…”
À hora do almoço, a meio do caminho para o Casa Grande, o restaurantezinho-tasca onde íamos sempre almoçar, apareceu, saudando efusivamente do lado de lá da rua:
“Hoje não te vou pedir mais dinheiro, já me deste 100 paus de manhã”, disse, mostrando que tinha uma ética pessoal, “só te peço que me ofereças um prato de arroz, não como nada desde manhã”.
Tínhamos chegado à porta do restaurante. Parei, convidei-o:
“Está bem, então, pago-te o almoço”, e abri a porta, convidando-o a entrar.
“Dá-me antes 300 paus”, propôs, “vou comer a outro sítio que conheço, a ti sai-te mais barato – esse restaurante onde vais é caro”.
Pegou nas moedas que lhe dei, tranquilizou-me:
“Não te preocupes, quando acabares de comer já estarei aqui à tua espera...”
No dia seguinte, não o vi de manhã, à porta do Pão Quente, mas encontrei-o à hora do almoço, descalço e com um ar preocupado.
“Descansa que não te vou pedir dinheiro, és meu amigo e tens-me dado de comer, só te peço se me ajudas a comprar uma havaianas... Fui à praia, tomar banho no mar, e quando voltei tinham-mas levado...” E, olhando, desolado, para os pés, como se fosse vergonhoso andar assim pelo cimento quadriculado quente: “Olha só...”
“E quanto custam umas havaianas?”
“Podia arranjar umas por 300 paus nos chineses, mas são uma porcaria – iam desfazer-se logo, era o mesmo que não comprar nada”, respondeu, pensando em alternativas válidas: “Por 600 escudos compro uma coisa boa”, concluiu, rápido.
Meti a mão ao bolso. Entre as abundantes notas de 2.000 e 1.000 escudos que lá tinha saquei discretamente uma nota de 500.
“Toma...”
“Não percebeste bem, eu disse 600...”
“Eu sei, mas não tenho mais que te possa dar...”
Pegou na nota e, num ápice, já estava no outro lado da rua, sossegando-me em voz sonora e satisfeita:
“Não te preocupes, vou arranjar os 100 paus por aí!”
Já estava eu a dobrar a esquina com a rua Andrade Corvo, apareceu-me, como caído pela chaminé do céu quente da tarde, para informar:
“Amanhã trago-te as havaianas novas, para veres que as comprei...”
E, de facto, na manhã seguinte, nem eram bem oito, lá estava, encostado à montra do Pão Quente, sorridente e descalço, um saco de plástico azul-bebé a tiracolo, fazendo contraste com o vermelho intenso do casaco de Pai Natal.
“Amigo, olha”, recebeu-me com o sorriso resplandecente, e extraiu do saco um par de sapatilhas de lona de um belo azul-escuro e solas de borracha branca.
“Consegui-as por 500 paus e ainda mais isto...”, esclareceu, levantando as bainhas esfiapadas das calças e exibindo uma espécie de polainas em borracha, uma coisa com ar de acessório de surfista.
Último dia na Praia, ilha de Santiago. Chego ao Plateau, a zona da cidade em que estou a trabalhar e onde reina o meu jovem amigo, com a ideia de lhe tirar uma foto, saber-lhe o nome, confirmar a idade. Não o encontrei de manhã, mas, à hora do almoço, saído do nada e como por milagre, apareceu-me já eu ia em plena rua Miguel Bombarda, a rua do restaurante Casa Nova.
“Onde está o teu casaco de Pai Natal?”, inquiri, algo desiludido, “gostava de tirar-te uma fotografia com ele...”
“Nunca uso casaco a esta hora, é muito calor! Só o uso para dormir no carro, e de manhã, quando ainda está frio...”
Depois reparou no blazer azul que eu trazia vestido, emendou a mão:
“Tu tens de usar casaco, és um senhor de posição; mas eu não...”
E logo arranjou uma solução:
“Não te aflijas, vais trabalhar e, quando acabares, procuras-me na montra do Pão Quente, vou estar lá e levo o casaco vestido...”
Quando, pelas três e meia da tarde cheguei à montra do café, vi-o sair de um carro, estacionado na berma do passeio, um automóvel já sem pneus e vidros nas janelas, com o ar arruinado e triste dos carros abandonados.
“É ali que moras?”
Era. Antes de lhe tirar as fotografias perguntei-lhe a idade, o nome, e para que não me esquecesse apontei-os num canto do cabeçalho do jornal que levava comigo. Ele seguiu atentamente a minha escrita, foi soletrando as letras à medida que eu as desenhava: o meu Pai Natal tem 15 anos e chama-se Nixon. Nixon Rodrigues Pedrigues, como fez menção que ficasse registado.
© Fotografias de Pedro Serrano, Praia (Cabo Verde), Abril 2011.
Sem comentários:
Enviar um comentário