19 abril 2011

BRUMA SECA


Daniel era, principalmente, motorista de táxi, um Toyota com uma suspensão um tanto arrombada, e foi assim que o conhecemos. Mas, como todos os chauffeurs de táxi das redondezas, acumulava com a competência de guia turístico.
No dia em que nos foi buscar ao hotel para uma visita completa à ilha (coisa que se consegue numa manhã se a ilha é árida e tem uma dúzia de km de comprimento por meia-dúzia de largura), criticou asperamente o copo-de-leite de cabeça rapada e mochila às costas que encabeçava o destino de uma trintena de turistas que o seguiam como carneiros pela rua principal de Santa Maria:
“Olha p’rá’quilo! Veio três vezes ao Sal e já acha que conhece a história de Cabo Verde... E pagam-lhe!”
Apesar de só ter dois turistas à disposição nessa manhã, Daniel revelou-se um guia especial, do subtipo condutor de homens. Levou-nos onde muito bem entendeu e todas as sugestões que lhe fizemos, e que não constavam do seu esquema mental, foram soberbamente ignoradas. Assim, não fomos visitar a estação de dessalinização da ilha nem experimentar a moreia frita à cidade de Espargos.
Mas teve o cuidado de nos demonstrar que não era um guia ignorante do colorido local, como o branquela que víramos ao sair do hotel, e, dado o nosso interesse pelo tratamento da água, levou-nos a ver um depósito de água e o respectivo camião-cisterna, uma esquadra de polícia, e o club desportivo de Palmeira. O momento especial, no entanto, guardou-o como revelação para um trecho do trajecto entre Olho Azul e Pedra de Lume. De repente, sem qualquer aviso, fez sair o Toyota da estrada e, sem abrandar a velocidade, pôs-se a percorrer um trilho de terra, levantando atrás de nós um tornado de poeira, ao mesmo tempo que, como um prestidigitador que prepara a audiência, nos advertia:
“Estão a ver, não se vê nada aqui, pois não? Não há nenhuma água de um lado nem do outro, pois não?”
Confessámos que não, que não se via ponta de água: no chão só terra calcinada, no ar só poeira fina, no céu só azul e nem esperança de uma gota de chuva; daquele ponto nem o mar se enxergava.
Daniel continuou a guiar durante um km ou dois, perguntando-nos, a cada 200 metros, se víamos outra coisa que não deserto, aridez, bruma seca. Depois, aparentemente realizado com o nosso derradeiro “não”, fez com que o Toyota descrevesse um pião e apontasse o para-brisas para a sarça ardente que acabáramos de percorrer.
“E agora?”, perguntou, controlando as nossas expressões por um retrovisor onde se reflectia uma fiada de dentes felizes.
À nossa frente, bruxuleando na torreira do meio-dia, uma aprazível toalha de água azul cobria a terra, pareceu-me até ver uma ou duas palmeiras no horizonte.
“Ah... é uma miragem”, exclamei.
Quando lhe expliquei que também tínhamos daquilo em Portugal, pareceu pouco interessado e não descansou enquanto não tirámos uma ou duas fotografias ao local, pedindo para espreitar o visor da máquina, assegurando-se que a nitidez era suficiente para a posteridade que aí vinha.
Sorridente, abriu o guarda-luvas e tirou de lá um pano, após o que abriu a porta do carro e saiu para a inclemência. Algo incrédulos, vimo-lo dar a volta ao carro e limpar cuidadosamente os vidros das portas traseiras, dando especial atenção à borracha que lambe a folha de vidro quando o mecanismo eléctrico de abrir as janelas é accionado. Dando-se conta do nosso espanto, informou em voz que se ouvisse através dos vidros:
“É para que não fiquem cobertos de pó quando abrirem as janelas...”
Esmagados por aquele zelo, não dissemos palavra na meia-hora seguinte e eu fiquei mesmo sem saber se a imagem de uma vaca que vi surgir do nada, atravessada na paisagem, seria animal de carne e osso ou simplesmente o holograma de um bovino miraculoso.  

© Fotografias de Pedro Serrano, ilha do Sal (Cabo Verde), Abril 2011.

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