A fita de papel fora, à justa, vomitada e a menina, ao entregar-me o recibo que tinha acabado de rasgar em dois na guilhotina serrilhada da máquina de Multibanco, informou:
“Com esta compra oferecemos um seguro contra roubo, válido por seis meses... E, sorrindo:
“É muito vantajoso, pois já sai daqui seguro. Só tem de passar pelo nosso stand no segundo piso...”
Olhei o relógio, indeciso entre se iria tratar disso de imediato ou se voltaria noutro dia. Passava das sete e meia da tarde, tinha bilhete para o cinema, sessão das dez, e devia jantar antes... Por outro lado, a esta hora era capaz de não estar ninguém a tratar de seguros. Resolvi arriscar e saltei graciosamente para a lâmina de metal da escada-rolante que, de imediato, se transformou em degrau ascensor.
O stand dos seguros era um open space com quatro mesas de recepção. Apenas um funcionário estava sentado atrás de uma delas e, em frente, dispondo no chão os característicos sacos com triângulos verde-e-negro do El Corte Inglés, acabava de se instalar uma senhora. Apesar disso, não havia mais ninguém por perto e eu achei a aposta boa. O rapaz dos seguros, enfarpelado num fato preto com risquinhas cor de giz, perguntou que tipo de seguro procurava e pediu-me que me sentasse um pouco a uma das mesas vazias, pois atender-me-ia logo de seguida.
Retirei cuidadosamente a máquina fotográfica Leica da caixa de cartão e comecei a conferir o seu conteúdo, que fui dispondo em cima da mesa. Depois, de entre uma série de livros de instruções em várias línguas, escolhi a versão inglês-francês, pu-la em frente aos olhos e fui observando o que se passava.
A senhora que reinava entre sacos de plástico estava ali para fazer um seguro do recheio da sua casa e um tanto nervosa por não saber responder com precisão às perguntas do segurador que, na realidade, eram embaraçosas:
“Diria que a sua casa tem mais ou menos de 120 metros quadrados?”
Enquanto ela pensava, o rapaz aguardava de dedos expectantes sobre o teclado do computador, os grandes olhos espantados (um pouco como um Marty Feldman não estrábico), o fato fúnebre, a massa espetada e lisa de cabelo negro, conferindo-lhe um toque Família Adams, um recorte de corvo de desenhos animados.
Entretanto aproximou-se um par de novos clientes: uma senhora com a sua jovem filha e, após indagar o tipo de seguro a que se propunham, o jovem Marty fê-las sentar em outra das mesas vagas, o que elas fizeram com toda a calma ficando a conversar em voz de sala de espera de dentista. Voltei à leitura do folheto e ao modo de evitar olhos de coelho nas fotografias com flash, quando um novo personagem se aproximou. Desta vez era um tipo novo, de calções caqui pelos tornozelos e t-shirt, ar de quem está em férias, mas com a pose irritante do colérico que está, em permanência, a patrulhar os seus direitos. Entrou pelo stand dentro, ignorando precedências e perguntando ao empregado quanto tempo ia demorar a ser atendido. O rapaz respondeu que era difícil prever: estava a atender uma pessoa, havia mais duas à frente dele...
“E não há aqui mais ninguém que me possa atender?”
Marty fez um gesto de horas mortas, de “como vê...”
Irritado, o outro quis saber:
“E não há, por exemplo, uma senha que eu possa tirar e ir dar uma volta sem ter de estar aqui à espera?”
Quando, paciente e cortês, o rapaz dos seguros o informou que não, o outro deu uma meia volta cortante e desapareceu de cena cuspindo um:
“Isto não existe...”
e deixando-nos a todos mergulhados numa transitória sensação de irrealidade, tipo Strawberry Fields Forever ou assim.
Chegou a minha vez e, após registar os meus dados vitais no sistema, Marty fez um ar muito sério e disse:
“Agora vou-lhe explicar como dever proceder perante uma tentativa de assalto. É assim: primeiro, o importante é não oferecer resistência, não tentar reagir e entregar de imediato o produto ao assaltante...”
Assenti que sim, que faria logo isso.
“Depois”, continuou ele, “pode haver outros tipos de abordagens: a coação psicológica, a agressão verbal ou física; o saque por esticão. Em todas estas circunstâncias, o mais importante é que o senhor....”
“Entregue logo o produto...”, completei, mostrando que tinha apreendido a explicação e a técnica.
Satisfeito comigo, passou a explanar a parte boa do assunto:
“Depois só tem que nos aparecer aqui com o talão de venda, o contrato do seguro e uma declaração da polícia onde conste, o mais pormenorizadamente possível, o assalto e a descrição das características do produto.”
Acenei afirmativamente, fiquei a vê-lo completar a apólice, martelando as teclas do computador com uma energia física superior à necessária para que o computador processasse os caracteres; antecedendo cada sequência de digitação de um desdobrar aéreo de movimentos digitais que dariam para escrever um conto ou executar um prelúdio & fuga; todo aquele nervosismo informático sublinhado pela gincana constante a que obrigava o rato, o indicador magro, onde brilhava um anel de metal branco, clicando o dispositivo como se fosse um emissor de sinais morse.
“Ah!”, acrescentou, levantando para mim o arregalado dos olhos, na correção satisfeita e atempada de um esquecimento fulcral, “o seguro é válido para assalto ocorrido em qualquer país do mundo!”
Transmutei-me para uma esquadra de Guangdong, vendo-me a explicar ao comissário o que me tinha acabado de acontecer, a necessidade de levar ao Corte Inglês uma declaração policial abalizada:
“Eu estava no restaurante, tinha acabado de empunhar a minha máquina fotográfica nova para fotografar o pato lacado... Sabe, é que eu mantenho um blog, tenho responsabilidades para com os meus leitores...”
A autoridade arrebitou as orelhas, desconfiada com aquela de andar a ser fotografada propriedade chinesa para divulgar na net... Seco, inquiriu, o lápis Chung Hwa, suspenso:
“Qual nome do jolnal na intelnet?”
“Não é um jornal, é um blog! Chama-se semcompromisso, isto é, corrigi, semcomplomisso...”
Quando o homem acalmou, continuei a descrição do incidente:
“Estava a tental fotoglafal o pato, quando o enelgúmeno apaleceu de lepente e glitou:”
“Mãos ao al, isto é um assalto!”
“Importa-se de assinar aqui, por favor?”, uma voz interrompeu o meu devaneio. Rubriquei em frente ao espaço que o indicador anilhado me apontava. Perguntei:
“Já está? É tudo?”
“É tudo”, respondeu Marty com um sorriso ternamente intimidante, estendendo-me a mão.
Cá fora, uma noite cálida tinha caído sobre a cidade. Atravessei a rua olhando em volta, fixando os transeuntes com quem me ia cruzando na busca de um eventual meliante. Mas consegui fazer todo o trajecto até à mala do carro sem ser incomodado e entrei no restaurante vagamente desiludido, sem outra preocupação que não fosse a de chegar a horas à sessão das dez.
© Fotografia de Pedro Serrano, 2009.
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