Em termos de suspense, de deixar a curiosidade do leitor ou do ouvinte sobre brasas, não há, talvez, melhor expressão do que “mal ele sabia...”, frase que ultrapassa o clássico “Era uma vez...”. Enquanto a segunda expressão apenas exige continuidade da atenção e paciência a quem escuta, o “mal ele sabia” agita, de imediato, diante dos olhos do ouvinte a promessa de que poderá contar com reviravoltas na rotina do inocente que, em suave inconsciência, embarca num acontecimento que nunca mais o deixará na mesma.
Penso que a palavra culpada, a que introduz toda esta tensão, é “mal”, no seu duplo sentido de “pouco” e de “oposto de bem”, uma entidade bafejada por tonalidade sinistra. A expressão é um mundo e alberga tudo, da risonha surpresa do happy-end ao funil negro e revoltoso do tufão que se aproxima das costas da grávida que caminha nas areias da praia vazia...
Só de olhar, dá para desconfiar que este “mal ela sabia” é produto de mente latina, tem aquela marca-de-água dramática e excessiva de povo que se empanturra de azeitonas sob um céu azul-ferrete, que exercita as cordas vocais e se abraça aos caixões nos velórios... Os de língua inglesa, por exemplo, diriam quase o mesmo, de um modo muito mais neutro, usando a delicada expressão “little does she know...” O que lhe falta em premonição, sobra-lhe em elegância. Vem isto a propósito da expressão que, muito retrospectivamente, tento escolher para mim próprio na catalogação de um acontecimento que, mal eu sabia, ia modificar a minha vida para sempre.
Foi a minha mulher que, com ar sorridente, apareceu com a ideia perfeitamente cozinhada e como se nos tivesse saído a sorte grande:
“E se ficássemos com a Teresinha durante o tempo que a Isabel vai para New Orleans? Não gostava? Não acha que podia ser tão bom...?”
Depois apareceu a Isabel com o mesmo sorriso luminoso de quem encontrou a solução perfeita e, logo em seguida, o Fernando, pai da Teresinha, falou comigo sobre o assunto como se fosse assunto decidido e eu estivesse de alma e coração no negócio. Não estava e, perante o facto consumado, sentia-me, de facto, consumido.
À época, a Isabel e o Fernando eram nossos amigos recentes, ela médica e ele arquitecto, especialista em arquitectura árabe. Em breve, o Fernando teria um trabalho no Yemen, por onde deveria demorar-se dois anos. A Isabel tinha acabado de ganhar uma bolsa Fullbright para efectuar um mestrado na Universidade de Tulane, fora de ideia poder levar a filha, de 3 anos, na bagagem. As soluções que passavam pelo núcleo familiar do casal não eram muito viáveis ou interessantes para o bem-estar da Teresinha: os avós paternos eram gente de idade e à avó materna, uma senhora viúva, cujo signo astrológico esqueci mas de ascendente arame-farpado, não se recomendavam os antecedentes em educação infantil.
“E então a Isabel pensou logo em nós...”, dizia a minha mulher (deserta por fazer um estágio maternal) com um brilhozinho nos olhos, a voz envolvente, “e você gosta tanto da Teresinha, ela de si...”
Bem, eu era um daqueles gajos que tinha escolhido Medicina para um dia ser psiquiatra, lidar com essas ferramentas fascinantes que são a mente e a loucura. Depois isso passou-me, mas entretanto fartara-me de ler livros sobre psicologia e temas psiquiátricos: o eu dividido, o eu e os outros, a noção de família, capitalismo e esquizofrenia, et al. Tinha aprendido que os três anos de idade é um período decisivo na estruturação psicológica da personalidade, que as coisas que correm mal nessa fase deixam marcas profundas, com frequência irreversíveis, na psique da vítima. E tinha muitas dúvidas, medo, um medo que pouco mais fiz do que balbuciar, pois tudo estava já decidido e, para complicar, havia uma não negligenciável parte de mim (digamos, uns 90 %) a quem tentava a experiência em perspectiva.
Mas mantinha-me receoso, inseguro. Que efeito poderia vir a ter numa criança de três anos ver desaparecer os pais durante um ano inteiro? Um ano é uma eternidade para quem vive no presente, como as crianças. Houve um passado, que se vê desaparecer, e o futuro, a paciência e a sabedoria de esperar por ele, não existe.
Nesses tempos morávamos em Trás-os-Montes e a Teresinha, menininha lisboeta, loura, ranhosa e frágil, acabou por se adaptar àquele ambiente com extrema rapidez: ganhou as cores saudáveis de uma maçã camoesa de produção biológica; andava com os dedos das mãos calejados de frieiras; o seu ranho evoluiu do verde-ervilha para um saudável baba de caracol e passou a exprimir-se em dialecto local para, por exemplo, caracterizar o estado de um suíno exposto na montra de um talho:
“Aquele reco tá a botar sangue pelo nariz...”
Tão depressa como deixou de falar constantemente no pai e na mãe (começou a chamar-me ‘pai’ e ‘mãe’ à minha mulher), passei eu a não imaginar como podia ser a vida antes dela. Tão extraordinária pressentia ia ser aquela experiência que, nos primeiros dias, ainda comecei a escrever um diário sobre a estadia dela no nosso terceiro-andar com vista para o campo e para a serra. Mas foi vontade de pouca dura, pois a realidade da sua presença, as fraldas, os banhos, o tomate que se disfarça em melancia para que se torne tragável, atropelaram rapidamente as minhas intenções de biógrafo.
A Teresinha andou no infantário local, onde a íamos buscar ao regressar a casa do trabalho. Uma tarde, ao aproximarmo-nos da parede envidraçada da porta de saída, libertou a mão da minha para apontar um vidro estilhaçado que quase fora causa de uma tragédia e que eu vira da perspectiva do serviço de urgência umas horas antes:
“Olha, o Bruno fez um sol no vidro com a cabeça...”
Lá em casa, dormia no quartinho ao lado do nosso e, às vezes, acordávamos a meio da noite com vozes vindas do seu quarto. Dávamos com ela, sentada no tapete, a conversar com os pesos de metal amarelo da balança de cozinha que não mais conseguimos usar para fins culinários, pois ela transformara a sucessão de pesos nos diversos elementos de uma família: o de 10 gramas era o bebé, o de 25 o irmão mais novo, o de 50 a irmã e por aí fora até ao anafado avô representado pelo peso de meio-quilo (o peso de 1 kg fora ostracizado da família pois era um tanto perigoso para a idade dela). Sempre teve a mania das famílias, a rapariga, ainda hoje tem, passou toda a adolescência a ler e coleccionar aplicadamente as revistas Pais & Filhos, Avós & Netos, Tias & Sobrinhos. Adivinho que, hoje em dia, se entretenha também a ler as variantes Noras & Sogras.
Vem desses dias a alcunha que lhe dei e que ficou um sinal de reconhecimento entre nós: “loura maluca”. Ela tinha aquela bela cabeça loura, um corte de cabelo em forma de sino, e, se eu chegava a casa depois dela, mal abria a porta, investia do fundo do corredor em direcção a mim com a alegria de um sol e a determinação de uma locomotiva. O remédio era pôr-me de cócoras e receber em braços abertos aquele impacto. Foi aí, quando saem pela boca fora palavras desconexas que brotam directas do coração, que uma tarde lhe disse:
“Eta, sua loura maluca...” Um ano passa muito rápido, a mãe voltou da América e, como se nada fosse, foi buscá-la para voltarem a viver em Lisboa. Um dia, há três ou quatro anos atrás, ela perguntou-me:
“O que é que te custou mais quanto estiveste a tomar conta de mim?”
“Queres mesmo saber?”, atrasei eu a resposta, pois nunca tinha pronunciado o que ia dizer: “Foi entregar-te outra vez à tua mãe...”
Agora ela já fez trinta anos, a idade que eu tinha quando fiquei com ela, e tem um filho com a idade que ela tinha quando morou comigo em Trás-os-Montes. Já não é tão loura e, apesar dos meus receios, não ficou demasiado maluca, mas, para certa perplexidade da mãe e do pai, continua a dispor de mim com o à vontade e a leveza que lhe ficaram daqueles dias em que vinha a correr pelo corredor fora directa ao meu abraço.
Nota: A Teresinha surge como personagem no texto Remédio Santo, algures neste mesmo blogue.