16 julho 2010

VOU-TE CONTAR: 15. Não há duas sem três

Se o tempo permite, uma incógnita que se mantém até ao anoitecer, come-se mesmo cá fora. 
Na noite de 23 de Junho de 2006, um pouco como todos os anos na noite de S. João, houve uma sardinhada em casa do meu pai. Nesse ano não compareci, estava em Porto Santo, mas o esquema seguiu o costume dessa noite em casa dos meus pais, em tantas outras casas do Porto, suponho, basta olhar o céu invadido de balões... Grelham-se sardinhas, febras e pimentos. Há saladas, azeitonas, broa, caldo verde a ser vertido em malgas e, antes de seguir viagem, a ser abençoado com uma rodela de chouriço. No resguardo da sala de jantar vazia há multas sob a forma de sobremesas, cobiçadas às escondidas pelos olhos em dieta das mulheres e esfuracadas pelos dedos das crianças. Depois do jantar, lá para as onze da noite, deita-se fogo preso e muitos balões, pois metade arde, entre parafina derretida e gargalhadas, antes de adquirir lastro de ar quente suficiente para subir na noite e se perder no intenso tráfego aéreo.
Nesse dia, o tempo, ao contrário da morrinha tradicional das noites de S. João,  esteve quente no Porto e ao fim da tarde regou-se a tijoleira que atapeta o lado sul e poente da casa para refrescar o ar dos convidados que iam chegar.
Pelas onze e meia da noite o meu telemóvel tocou, vi no visor que era a minha irmã mais nova.
“O pai escorregou na tijoleira, partiu o colo do fémur, ficou internado no hospital de S. João...”
Encostado à balaustrada que separa o terraço do Hotel Porto Santo do relvado que, dois metros abaixo, conduz à praia, franzi-me por dentro. Uma fractura do colo do fémur não é brincadeira em idade nenhuma: precisa sempre de ser operada, incapacita uma pessoa durante meses, os dias que se seguem à operação implicam um risco de embolia não desprezível... E isso que eu pensava nesse momento, sabia-o o meu pai perfeitamente nos seus noventa anos de vida, muitos desses de experiência como médico. Foi o que me disse, logo que ficámos a sós, uns dias depois, na primeira visita que lhe fiz ao hospital, operação já feita e o risco de complicações imediatas afastado:
“Agora é que estou arrumado... Já viste, por causa de uma merda de uma tijoleira molhada?”
“Não está nada arrumado, pai, não diga isso, é uma coisa muito frequente e as pessoas vão ao sítio. É chato, mas resolve-se...”
Juntei aos meus argumentos alguns casos recentes e conhecidos de fracturas semelhantes, para relativizar e tornar o caso menos solitário. Sim, mas, olhando para trás, ele tinha mais razão do que eu queria admitir. Nunca mais voltou a ser quem era, nem a ter a mesma autonomia como pessoa e se tivéssemos que assinalar o início do declino visível com um marco, essa queda cumpria todos os requisitos. Metástases ósseas de um cancro na próstata para complicar a recuperação do osso, uma leucemia crónica para ajudar a que tudo fosse muito mais frágil na defesa do seu corpo em relação a infecções, cicatrização de feridas. Nada daquilo, e na idade dele, matava só por si, mas a conjugação de todos aqueles factores... Porra, por que raio aqueles ditos da sabedoria popular, do “não há duas sem três”, do “a má sorte vem em séries de três” se mostram tão verdadeiros, tão universais que têm até correspondência noutras línguas?!
Somando todas as contrariedades, mais o período inicial de recuperação, o meu pai esteve internado um mês por causa de uma tijoleira escorregadia. Mas, duro de roer, safou-se daquilo tudo e voltou para casa a meio do Verão.
Durante a ausência, eu e as minhas irmãs fomos preparando a logística do regresso em combinações de que o íamos pondo a par devagarinho, deixando-o respirar entre uma novidade e outra. É que todas elas tinham o travo da derrota física e psicológica, da perda de estatuto como ser humano pleno.
Toda a sua vida o meu pai foi o elemento agregador da família, o esteio, o seu ponto-forte – não íamos agora, lá porque era preciso passar a tomar conta dele, dispor da sua vontade de qualquer maneira!
E enquanto as obras no quarto de banho dele duraram, fui-o informando em cada visita ao hospital de como as coisas iam:
“Já arrancaram a banheira, estão a revestir a parede com um azulejo praticamente igual ao do resto da parede e o Sr. Sousa arranjou uma bela pedra de mármore rosa para parede exterior do local onde agora vai ficar o seu chuveiro.”
Era verdade: o empreiteiro conhecia o meu pai há uma ou duas dezenas de anos, fez o trabalho num ápice, dando-lhe esses toques de carinho em procurar que a pedra mármore fosse um pormenor que desse gosto olhar. E essas obras, esses pormenores tranquilizavam-no:
“Agradece-lhe por mim, estás a ouvir? Uma banheira é, por natureza, um sítio perigoso, escorregadio; ainda para mais agora...”  
Mas a decisão que nos andava verdadeiramente a consumir era o arranjar e depois comunicar ao meu pai que seria preciso, dali para a frente e em carácter de permanência, uma pessoa nova lá em casa, para ajudar a cuidar dele. 

© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Porto, 2010; (2) Um quarto com vista, serviço de Ortopedia, Hospital de S. João, Porto 2006; (3) Porto, 2010.


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