31 outubro 2020

MORTOS, FINADOS & MAL PAGOS

Se aplicarmos uma regra de 3 simples aos nossos actuais, e modestos, 4.000 casos por dia de Covid19 (para a semana serão 7.000, depois talvez mais), 3 % destes irão morrer diariamente da doença (120 a 200/dia) e 1 % (40 a 60, dia) irão parar a Cuidados Intensivos em cada dia que passa. Mas estes resultados não se mostrarão equitativos, como gosta a política correcta: os mortos apagam-se num instante, não pesarão, morrem e está feito; já os dos cuidados intensivos não podem ser descontados com a mesma facilidade, pois irão permanecer por lá durante 3 ou 4 semanas, vão entupir aquilo, rebentar com aquilo, obrigar a que outros Serviços contribuam e venham reforçar esse papel, descurando as outras doenças que continuam a existir e a matar. 

No entanto, os mortos que nos mostram parecem poucos se comparados com os que era suposto esperar, e detenho-me um minuto de silêncio a pensar sobre uma particularidade que está a suceder com as mortes em geral: tradicionalmente, os portugueses são, na hora de decidir, avessos a morrer em casa, vão morrer, triste e abandonadamente, aos hospitais. Mas o que parece acontecer recentemente é que o número dos que morrem em casa está a aumentar. O que quererá isto dizer? A razão talvez seja simples: as pessoas acabam por morrer em casa por receio de ir bater à porta dos hospitais (encarados actualmente como locais perigosos), por o acesso se ter tornado mais complicado, e ainda por estas instituições terem sido obrigadas, pela pandemia, a encolher os Serviços que recebem outras doenças graves (como AVC ou enfartes), alguns deles reconvertidos para se dedicar ao Covid19. Do lado dos hospitais, não há outra solução, não os podemos criticar por isso, adaptam-se ao tsunami que lhes bateu à porta e, avisadamente, não esperam por orientação de Lisboa, sobretudo se na outra ponta da balança o poder se entretém em negaças e cócegas à realidade e às soluções que esta exige, já. No que, por exemplo, diz respeito aos mortos acontecidos o que faz quem tem a varinha mágica? Decreta que todos os mortos serão louvados na data apropriada: 2 de Novembro, dia de luto nacional. Bom e barato.

Agora, que a segunda vaga (ou onda, ou chicotada) se abate sobre o país como granizo - e irá piorar até longe em Novembro, até que o vírus se canse e hiberne um pouco -, o que se ouve, com estupefação, através da TV? O Governo irá tomar medidas robustas em Dezembro, para precaver o Natal e os seus perigos. Isto é, pré-anuncia que irá tomar medidas daqui a um mês! Um mês? E, entretanto, até lá? A gente sabe lá como vai chegar a Dezembro, de que modo este Novembro irá condicionar Dezembro! Basta olhar em volta, já, para ver como gemem os nossos vizinhos europeus, todos a apressar e a pôr em prática medidas fortes, lógicas. E nós? Bem, para já vão-se experimentando corridas de automóveis para 27.000, a ver o que daí advém; interdita-se a ida aos cemitérios nos Finados; torna-se a máscara obrigatória, mas com generosas excepções, para não melindrar ninguém. Depois, em Dezembro proíbe-se o Natal e o Ano Novo, a não ser que venha a ser demonstrado que é inconstitucional, ou desproporcional, ou a evidência demonstre que o champagne protege do vírus. É com isso que, para já, andam entretidos em Lisboa, enquanto os lares (de idosos) continuam a estourar como castanhas e as escolas fervilham de casos e surtos e as famílias e os professores andam loucos com o que fazer aos casos, aos contactos, aos contactos dos contactos. Mas os ministros continuam serenos, dizem que não há evidência, que são situações pontuais, que tudo vai andando em direcção ao sucesso; e, atrás deles, os secretários de estado vêm e dizem que até já estivemos pior em Abril. 

Não há contraste mais flagrante do que o ver e ouvir falar os médicos (ou outros profissionais, sobretudo hospitalares) que trabalham no olho do furacão e comparar a sua aflição amarga com a ruminação política e o refluxo dos outros que, embora técnicos de saúde, cumprem o papel de esteticistas do poder. 

Nenhum dos primeiros pestaneja ou se encolhe a descrever o que se passa, o que lhes bate à porta, ou a avisar o que vai acontecer e o que ainda pode ser feito, enquanto os douradores à chamada continuam, com vagar, a pintar a pílula, a anunciar que irão reunir para a semana, a garantir que há ainda virtualidades e flexibilidades no Sistema, que os serviços de saúde privados, conforme os dias e a latitude, talvez ajudem ou talvez não. 

É supremo mistério o motivo pelo qual estes Eleitos (embora, internamente, não desconheçam o que se passa ou avizinha) não desistem, para o exterior, de negar a realidade, de a tentar mascarar ou esconder a todo o custo, e, se ela extravasa pelas costuras (tão visivelmente que qualquer jornalista se aperceberá), continuarão a tentar esbatê-la pela comparação pacóvia com os que ainda estão piores que nós, a meter os pés pelas mãos. Bastar-lhes-ia, supõe-se, um nadinha de coragem para comunicar o que as coisas são, com o que se pode contar, ninguém iria levar a mal e todos agradeceriam. Mas um dogma, por definição, não se explica: está fora de causa falar claro e coerentemente, e ai do primeiro que se atreva. Entretanto, no quadro mundial de casos confirmados de Covid19, Portugal, uma migalha de dez milhões de almas, saltou rapidamente do 50.º lugar, onde se mantinha há meses, para o 37.º Que importa? Não sejamos tão pessimistas: estamos ao lado dos grandes e, mesmo assim, quase tão bem como a Coreia do Norte. 

Actualização: Publicado há apenas 3 dias, os números que invocava já foram ultrapassados pela crua realidade. Hoje (4 de novembro) os casos confirmados serão cerca de 7.500, os mortos 60 (um com menos de 45 anos) e brevemente rondarão os 200/dia. É de esperar que os cuidados intensivos venham a atingir mais de 600 internados em breve. Alguns hospitais assemelham-se já ao que vimos acontecer em Itália, com doentes a morrer pelos corredores. E qual continua a ser a atitude geral de quem comanda? Lixiviar a coisa, branquear, mandar calar quem tiver notícias desagradáveis a mostrar. Em nome de "não instalar o pânico", dizem eles, mas, de facto, para manter os fundilhos colados ao poder pelo seguimento cego da voz do dono. Vem-me à mente a letra da velha canção: "Quanto custa aquele cãozinho ali na montra, aquele com a cauda a abanar?"       

© Fotografia de cima: Carolina Berhan, Manteigas 2020.

20 outubro 2020

ÀS VEZES, À NOITE: 11. Na Xai-Xai

 “Diz à avó que mando um beijo e lhe desejo Boas Festas”, recomendou a Rosarinho ao deixá-las à porta da mãe. Chovia e ajudara a transportar os pertences das catraias para a entrada coberta do edifício, pois tinham tendência a ficar paralisadas na hora de mudar de turno. Rosarinho já tocara à campainha e ouviu-se a voz metalizada de Zita a avisar pelo intercomunicador que ia descer. Acocorou-se, abraçou Micéu e reforçou o pedido, pois a filha mais velha era algo despistada a dar conta de recados. 
“Dá um beijo meu à vovó, querida, diz que o papá deseja Feliz Natal. Não te esqueças.” 
E correu para o carro, onde ficou à espera de ver a ex-mulher surgir e considerar as miúdas entregues. Depois meteu um braço pela janela, acenou vigorosamente ao arrancar. Adeus, feliz Natal, até à próxima; puta que pariu! Durante minutos guiou sem rumo, sem pensar, só para se afastar dali, e um velho automatismo levou-o a Santos Pousada onde acabou, como dantes, a uma mesa da Xai-Xai. Do sítio onde estava sentado conseguia ver a 4L estacionada no larguinho do lado de lá da rua, ao lado do prédio onde morara, cobrindo-se de perlas de chuva como se nunca tivesse saído dali. Talvez levasse três ou quatro bolos-reis para cima, para oferecer, que aqueles de Vila Real eram uma merda. Cinco, ficaria com um em casa, a competir com as cores do presépio que as miúdas tinham improvisado a um canto da sala com bonecos de S. João comprados no Sousa. 
“A ovelha está a fazer de vaca, papá”, avisara Micéu quando o fora resgatar ao quarto, onde estivera confinado até elas darem a surpresa como pronta.  
Fora a uma daquelas mesitas que, muitos anos atrás, tivera uma longa conversa com a sogra, chamada de urgência pelas colegas de apartamento de Zita, que não sabiam o que fazer ao ser transtornado que aparecera em casa na madrugada de Domingo para segunda-feira. O resto do Domingo, após ter chegado de Ponte de Lima, passara-o ele deitado no colchão sem estrado do quarto em Santos Pousada. A casa estava deserta, nenhum dos outros habitantes chegara ainda da ida à terra no fim-de-semana, e no apartamento errava o odor triste do lixo por despejar, das camas por fazer. Engoliu um brandy com uma cápsula de Medipax e apagou-se; sentiu alguém chegar e chamar, notou que estava escuro; depois viu gotas de chuva a cintilar, penduradas dos interstícios dos estores, mas não se conseguiu levantar para fechar a janela; o rumor do trânsito perturbou-o toda a noite mas não conseguiu levantar-se para fechar a janela, ia e vinha num sono artificial. Alguém meteu a cabeça pela frincha da porta e disse baixinho: 
“Barbosa, estás aí?”.
No dia seguinte, ao fim da tarde, como era o costume, apareceu em Faria Guimarães, quem atendeu o intercomunicador foi Aurora que, estranhamente, não abriu o trinco e avisou:
“Espera aí em baixo, por favor, vai descer alguém...”
Nessas circunstâncias sombrias conhecera Maria do Céu, chegada de Alvarelhos nesse mesmo dia. A mãe de Zita era pequenina e muito cerimoniosa, mal o vira encetara desculpas por aparecer sem aviso, por se intrometer na vida dele – “na vossa vida”, corrigira – mas, acrescentou, sentia que lhe devia uma explicação, uma vez que a filha não estava em condições de o fazer.
“Mas não devíamos ficar aqui, à chuva, não lhe parece?... Eu, do Porto, mal conheço..., o Dr. Raul não poderia sugerir um local onde pudéssemos conversar um pouco?”
E Raul, atrapalhado com o Dr., apreensivo com os augúrios, incomodado por se sentir empurrado a ir falar de coisa íntima com uma estranha, uma potencial inimiga, pensou no habitáculo do Peugeot 404, pensou no apartamento em Santos Pousada, espaços que logo afastou como hipóteses pouco acertadas. Depois lembrou-se da Xai-Xai, pouco iluminada e pouco movimentada àquela hora.
Não estava ninguém na confeitaria, o empregado, sentado ele mesmo a uma das mesas, pasmava para um Comércio do Porto, acenou quando o reconheceu, trouxe o chá e o café e deixou-os em paz no confessionário improvisado à parede do fundo. A senhora remexia o chá e Raul olhava o Peugeot estacionado no lado de lá da rua, enchendo-se de perlas de chuva, abençoado Neca que, extravagante na generosidade, lhe propusera que conservasse o carro emprestado.
“A sério, fica com ele mais uns dias, não vou precisar; tenho sempre algum dos da garagem para as minhas voltas.”
“Nem sei por que ponta...”, começou ela de repente como se tivesse decidido arregaçar os braços e mergulhar. “Queria que soubesse que estou a par do que aconteceu este fim de semana, que o passou com a Zita lá no Norte...” E, talvez temendo que esse preliminar pudesse soar como censura, exibiu o antídoto: “Sei também que a terá pedido em casamento, ela mesmo o disse...”
“Como está ela...?” 
Maria do Céu não respondeu logo, olhou-o de uns olhos muito escuros e algo protuberantes, como se o quisesse beber antes de se arriscar ao que vinha dizer. Não havia parecença entre ela e Zita, eram como a água e o vinho. A aflição que lhe tomava o olhar e os gestos também eram pouco concordantes com a imagem de mulher distante que a filha descrevia.
“Não muito bem... As raparigas telefonaram quase de madrugada, vi logo que alguma coisa grave se teria passado. A Zita tinha chegado a meio da noite, desatou a tocar à campainha, embora tivesse chave.... Viemos por aí abaixo numa correria. Soube que a terá deixado em Ponte de Lima a meio da tarde de Domingo...”
Sentiu-se acuado, na voz de terceiros aquilo assemelhava-se à descrição de uma deserção; explicou-se:
“Quando já regressávamos ao Porto, ela quis ir a Ponte de Lima, não explicou porquê. Mal chegámos, saiu do carro dizendo que não regressava comigo. Depois de o estacionar fui à procura dela, mas tinha desaparecido; estive por ali mais de duas horas, não consegui voltar a encontrá-la.”
“Entrou numa pensão e tomou um quarto... Conta que saiu dali só quando era noite, para jantar...”
“Mas como veio para o Porto, assim, a meio da noite!?”
Maria do Céu desviou a face para a janela, a ganhar tempo, mas ele via-lhe os olhos, reflectidos no vidro, rolando aflitos. Como é que a filha saíra tão branca e quase loura, de olhos tão claros?
“Acho que agora não vale a pena fingir que não sabemos: todas aquelas raparigas que moram com ela já conhecem a história, pela boca dela...”, disse como se lamentasse a indiscrição da filha. “A Zita – nem é nada dela – bebeu ao jantar, foi para um café e meteu conversa com um homem que a trouxe depois ao Porto, no automóvel dele. Deixou a pensão sem pagar, o meu marido está para lá a tentar liquidar a dívida antes que resolvam comunicar o assunto às autoridades  ainda nem voltou. Apareceu em casa com o tal cavalheiro a reboque, também ele bebido, tiveram de o expulsar dali, as raparigas chegaram a ter medo.”
Raul deixara de participar na conversa, deixara de fazer perguntas, esmagado pelas revelações, e Maria do Céu penetrava mansamente pelas brechas.
“Perdoe a dureza de tudo isto”, disse com olhos dissolvidos, “mas acho que lhe devemos esta franqueza, sobretudo após a proposta de futuro que fez à minha filha... Nem pode imaginar como fiquei comovida quando soube...”
“Foi ela que lhe contou?”, perguntou ele com voz embargada, como se essa possibilidade pudesse ser um lenitivo. 
“Não, ela nunca nos tinha falado de si. Não que eu não sonhasse da sua existência, pois uma mãe vai juntando peças. Tinha-o contado às amigas, no meio de lágrimas e risos, como louca! Aurora diz que dizia: ‘vejam só o material de que sou feita, como dou cabo de tudo e transformo as rosas em... em caca!’ – ela empregou um termo mais forte”. 
“Parece estar arrependida...”, retorquiu ele, surpreendido por dar consigo a defendê-la.
“Parece...”, Lívia olhou-o fixamente. Em seguida baixou os olhos para a mesa, considerou a chávena vazia.
“Quer mais chá, talvez comer alguma coisa?”
Ela abanou a cabeça. Devia ter tido um belo cabelo preto, forte, mas agora havia inumeráveis borbotos brancos a riscá-lo, a torná-lo crespo. 
“Acho que não conseguiria comer, sinto o estômago dorido, como se tivesse levado sopapos! Talvez um pouco mais de chá...”, acabou por pedir como quem sugere que a conversa ainda não está acabada.
Raul virou-se para chamar o criado, mas este continuava absorto no jornal. Levantou-se e os momentos que esteve em torno do balcão pareceram-lhe leves como os de uma liberdade condicional. Por trás do mostrador viu croissants com um brilho tentador, mas, embora sentisse uma fome danada, não teve lata de se imaginar a comer um em frente dela.
Voltou à mesa e ficaram em silêncio até que o empregado pousou o novo bule, o novo café, levantou o cinzeiro e trouxe outro. O curto passeio, o ter visto, de cima, o aspecto encolhido e abatido da sua companheira, tinham-lhe reanimado esperanças e projectos.
“De qualquer modo, queria que soubesse que nada do que sucedeu muda as intenções que tenho em relação ao noivado...”, disse sentindo a voz soar-lhe alheia à medida que deixava cair as palavras.
Maria do Céu erguera os olhos da chávena, estavam a transbordar de lágrimas, uma mão avançara sobre a mesa e pousou na sua, muito ao de leve. Raul achou – isso sim – que o toque fora gémeo do da mão que, há dois dias, a filha estendera sobre a toalha da mesa do hotel em Santa Luzia, quando lhe propusera que casassem. Tudo aquilo era absurdo e sentia-se como se tivesse saído do corpo e passeasse por ali, vendo tudo como se nada fosse com ele.
“A Zita é nova e acho que se assustou um pouco com a sua proposta, talvez não se achasse preparada para a escutar. Mas tenho fé... Ela é uma rapariga frágil, muito nervosa, um pouco especial. Aos quinze anos – quando estava interna no colégio – teve um esgotamento nervoso muito grande, o médico aconselhou a que interrompesse os estudos e descansasse. Esteve connosco, na quinta, três meses, depois tudo passou como um sonho mau, o seu colega ficou espantado com a recuperação, embora tenha dito que as crises podiam voltar, sobretudo se fosse submetida a grandes tensões. Talvez tenha sido o que aconteceu, uma novidade destas..., uma coisa para a vida.”
“Talvez...”, Raul tentou tornar simples aquele silêncio que se estabeleceu e onde se enredavam alguns pormenores de acontecimentos pregressos e que brilhavam agora, sinistros como peixes a boiar à tona de água. Mas manteve-se calado, eram do domínio privado, que adiantaria a uma mãe – ou mesmo a um psiquiatra – saber que a filha amarrava ligaduras em volta do torso para amarfanhar e negar a existência de umas mamas tão vistosas e cobiçadas? Ou que, uma única vez, por brincadeira, na cama, a meio do sexo, lhe envolvera o pescoço numa echarpe e quase o ia asfixiando, os olhos duros fixando-o além da compaixão? Ele próprio desvalorizara aquilo ou, ainda mais, considerara-o como segredos um pouco perturbantes, mas com o seu quê de picante, algo que poderia um dia vir a ser comentado, com um sorriso, na intimidade de um leito desfeito. Nunca lhe passara pela cabeça que pudessem vir a ser estrelas numa constelação tormentosa. 
“De qualquer modo”, repetiu-se, “é como diz: ela é ainda nova, somos ambos novos, temos tempo...”
“Raul, vou pedir-lhe um favor, mais um: tente não pressionar já a Zita em relação ao futuro, a um casamento para breve. Se bem a conheço, vai reagir ao contrário do que se espera dela, ainda para mais culpada como se sente em relação a si... Amanhã vamos com ela a um especialista, um neurologista.... Veríamos o que aconselha, voltaríamos a conversar se ainda lhe restar paciência para mim.”
“Certo”, anuiu, intrigado com aquela mania das pessoas se referiram aos psiquiatras como neurologistas, como se tudo quanto estava doente numa alma se resumisse a fios que podiam puxar-se com esticões ou martelar com poções mágicas. 
Quando saíram da confeitaria parara de chover e as nuvens tinham-se afastado, deixando ver algum céu estrelado. Maria do Céu suspirou, comentou:
“Fiquei há pouco, quando vínhamos, com a sensação de não estarmos muito longe do apartamento em Faria Guimarães... Será que poderíamos ir a pé? Passei todo o meu dia enclausurada, sentada, saber-me-ia tão bem esticar as pernas...”
Raul recordava aquele passeio nocturno pela concentração em comedir a passada para não se adiantar à companhia, pela preocupação em lhe dizer “cuidado” de cada vez que um automóvel passava e chapiscava água da valeta sobre eles. Na altura não sentiu mais do que isso, mas, nos meses seguintes, deu por si a pensar naquela mulher com simpatia. Os anos confirmaram o sentimento, deram-lhe um estatuto de carinho. Já após o divórcio lhe vinha muitas vezes à memória aquela primeira conversa, sempre que atravessava aquele cruzamento se recordava mais da Xai-Xai do que do apartamento onde morara em Santos Pousada. O Neca dizia que era uma aberração, um homem sentir tal coisa por uma sogra, ele refutava:
“Que queres, foi assim comigo. Visto de agora acho que sempre me entendi melhor com ela do que com a minha ex-mulher!” 
O divórcio, no entanto, provocou um afastamento dos sogros, tinha de ser, ele compreendia que os pais eram forçados a encostar à causa dos filhos. O nascimento de Micéu – baptizada com o nome da avó por sugestão sua e aceite com relutância por Zita – poderia ter propiciado uma aproximação, não fora Zita estar vigilante dos contactos entre ambos como um guarda da Revolução Cultural chinesa. 
Raul encolhia os ombros, mas sentia mágoa por essa secura que trazia a vida.
 

 (continua)