Nunca, mas nunca na vida eu imaginei
que pudesse ser obrigado a ver uma professora de matemática em fato de banho e,
ainda menos, vê-la a conversar com a minha mãe, tricotando crochet como se nada
fosse!
Estava-se em 1968, eu fizera quinze
anos, os Moody Blues tinham editado no Natal anterior o fabuloso álbum Days of Future Passed e matemática era pesadelo
de que julgara ter-me livrado, pelo menos durante os três meses das férias
grandes, e agora ali estava ela, lustrosa como uma foca, no seu fato de banho preto,
assombrando-me a paz de espírito, obrigando-me a permanecer na areia, arredado
das riscas paralelas da minha própria barraca, a tentar evitar tangentes e
secantes...
Ao menos não era minha professora, nem
sequer professora no meu liceu, mas, de qualquer modo, era professora de
matemática e dava aulas no Carolina Michaelis, o liceu de raparigas a escassa
centenas de metros do meu, isto é: deveria ter conhecimentos e influência
suficiente para me poder prejudicar, bastava-lhe mexer o mindinho! É claro que
sendo eu assíduo frequentador da hora de saída do Carolina já a conhecia de
vista, sabia até a alcunha de mãe-preta
pela qual era conhecida entre as raparigas, rótulo que lhe vinha do fácies um
tanto negroide e de nariz esborrachado, à boleia de uma canção de protesto que
estava na moda naqueles anos de estrebucho colonial. Mas uma coisa era mirá-la,
vestida, do lado de lá do passeio, outra vê-la, de um ano para o outro, aterrar
no verão da Praia dos Beijinhos, em Leça da Palmeira, nesse agosto em que tinha,
à justa, acabado de surgir In Search of
the Lost Chord, o esperado novo álbum dos Moody Blues, obra que confirmava
a esmagadora surpresa do disco anterior e afirmava no firmamento o rock
sinfónico, uma variação musical inaugurada (como era costume) pelos Beatles na
primavera de 1966 com “Eleanor Rigby”, uma canção de nos pôr de joelhos, com um arranjo de violinos e violoncelos que parecia
música de câmara!
De tudo isto se ia falando, pernas
cruzadas, lambuzados de Ambre Solaire, a uns metros das barracas, as nossas
mãos, feitas ampulhetas, peneirando punhados de areia fina para o chão, os olhares
demasiado tímidos para se fitarem de frente. A Lena e o Eduardo, dois tipos
novos no nosso círculo da praia, eram, precisamente, grandes fãs dos Moody, possuíam
em casa o Days of Future Passed e
tinham já encomendado o Lost Chord e
isso emprestava-lhes um valor inestimável, pois colecionávamos pessoas como
quem coleciona discos.
Subitamente, no meio do meu
entusiasmo, eis que descubro, arrepiado, que a Lena e o Eduardo eram filhos da mãe-preta, moravam perto de mim no Porto
e, horror dos horrores, a Dr.ª Albertina (que era esse o seu inusitado nome)
oferecera-se até para passar a dar-me boleia para o liceu no ano lectivo
seguinte. Não, era mau de mais para estar a acontecer, a minha mãe a suspirar e
a confessar à outra que a “matemática é o espinho dele, Dr.ª Albertina, isso e
a Física, não há maneira... Este ano teve-me um 7 no segundo período!”
E a outra, entre duas remadelas nas
agulhas do tricot, a interessar-se, a querer saber quem era o meu professor no
liceu, pois que, com toda a certeza, o conheceria...
“Pedro”, aproveitou a minha mãe quando
eu, a escorrer da gélida água dos mares do norte, acabava de chegar em busca de
uma toalha perdida, “como se chama o teu professor de Matemática...?”
E eu, diminuído mentalmente por um
couro cabeludo enregelado, a tentar lembrar-me como caralho se chamava mesmo o professor, a catar por entre a
alcunha de sobe e desce como alguns o
conheciam (o homem tinha uma perna mais curta do que outra) e a de se-te-apanho-fodo-te, como outros, os
menos piedosos – entre os quais me incluía, se lhe referiam na intimidade, uma menção
bicéfala ao seu defeito e ao facto de ser titular de uma disciplina temível...
Mas a adolescência é um tempo de perplexidade
e contradição e era com espanto e um tributo mental de admiração ao pai que
constatávamos diariamente ter a filha do sobe
e desce, igualmente aluna do Carolina, um perfeito e ambicionado par de
pernas... E acabou por ser por uma mistura de pernas e discos dos Moody Blues que
aceitei a tal boleia para o liceu: agora, todas as manhãs, ao rondar das oito
horas, batia à porta de casa da Dr.ª Albertina na esperança de ver surgir a
filha ao cimo das escadas, a saber quem chegara. Nessa época estavam na moda
uns collants de cor branca, opacos, e que transmitiam às pernas um picante ar
cadavérico.
“Ah, és tu...”, dizia ela, pairando lá
cima ou desfilando escadas abaixo a gritar pela mãe e pelo irmão.
E eu, paralisado na soleira como num embaraço
de entrar em casa alheia, ficava-me ali como se já estivéssemos em 1969, ano em
que os Moody Blues nos visitariam com o seu novo álbum On the Treshold of a Dream.