Ela estava, mais do que sentada, apoiada
ao murete e quando manter os olhos nos dela se tornava demasiado intenso,
deixava o olhar circunvagar, como um papagaio tomado por um vento ébrio, por
sobre o rio que corria lá baixo, no manto de água entre o amarelo e o plúmbeo
que assume o Douro no outono.
Aquela aproximação parecia-lhe durar
há séculos, embora, por uma bitola fria, a história pudesse ser mirrada em
semanas. Mas ela era esquiva e, se igualmente pressa poderia ter, a urgência
parecia feita de inquietude, como se tentasse garantir solidez a uma matéria
volátil, e uma coisa fora chegar ao seu paradeiro, às suas rotinas, conhecer os
seus tiques externos, outra muito diferente estava a ser conseguir sintonizar o
que lhe ia na alma.
Olhando-lhe o pescoço altivo, a cabeça
delicada, o cabelo fino, de pontas embutidas na gola levantada do casacão
escuro, os olhos de estepe, suspeitava que a vontade dela em estender as mãos
na procura de um abraço igualava o seu desejo surdo de a fazer rodar 360 graus
num abraço. Mas a distância entre essa suspeita e uma certeza não podia ser encurtada
ou resolvida por palavras... Como indícios pouco mais coleccionara que um certo
tipo de olhar oblíquo, um riso nervoso e tão agudo como o contacto fugaz da
palma da mão no cotovelo dela quando sincronizavam a travessia de uma rua.
Essa tensão aumentava cada dia que
passava e as migalhas sorridentes que levava consigo quando se separavam à hora
conveniente do jantar desvaneciam-se totalmente durante a noite e, no dia
seguinte, voltavam a encontrar-se sem acrescento de intimidade, quase tão nus
de certeza e conforto como estavam a ficar as árvores das ruas alcantiladas
sobre o rio por onde se perdiam em longas caminhadas.
Poderia isto ser o quê?
Um dia, um fim de tarde tão sem
esperança como só novembro engendra, ela encostou-se, mais do que se sentou, ao
murete que a separava do declive pontilhado por lixo e de uma queda que só
seria travada pelas águas geladas e, tal quem viu empalar-se, uma a uma, nos caules
espinhosos do talude todas as cautelas, moveu as mãos, engatilhadas nos bolsos como um letreiro de “cuidado com o cão”, e fê-las deslizar em direcção à
cintura dele, onde continuariam ocultas pelas abas de um sobretudo tão escuro
como o seu.
Então, as mãos friolentas dele deixaram os bolsos,
abraçaram pelos ombros aquele ser tremente e o seu nariz excessivo tomou posse das
reminiscências a Bien-Être do cabelo
dela, os olhos fitando sem ver o lado de lá do rio e o mundo que deixara de existir.Nota: O título deste texto é citação do poema da canção "Porto Sentido", de Rui Veloso/Carlos Tê.
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