01 novembro 2012

QUEM VEM E ATRAVESSA O RIO


Ela estava, mais do que sentada, apoiada ao murete e quando manter os olhos nos dela se tornava demasiado intenso, deixava o olhar circunvagar, como um papagaio tomado por um vento ébrio, por sobre o rio que corria lá baixo, no manto de água entre o amarelo e o plúmbeo que assume o Douro no outono.
Aquela aproximação parecia-lhe durar há séculos, embora, por uma bitola fria, a história pudesse ser mirrada em semanas. Mas ela era esquiva e, se igualmente pressa poderia ter, a urgência parecia feita de inquietude, como se tentasse garantir solidez a uma matéria volátil, e uma coisa fora chegar ao seu paradeiro, às suas rotinas, conhecer os seus tiques externos, outra muito diferente estava a ser conseguir sintonizar o que lhe ia na alma.
Olhando-lhe o pescoço altivo, a cabeça delicada, o cabelo fino, de pontas embutidas na gola levantada do casacão escuro, os olhos de estepe, suspeitava que a vontade dela em estender as mãos na procura de um abraço igualava o seu desejo surdo de a fazer rodar 360 graus num abraço. Mas a distância entre essa suspeita e uma certeza não podia ser encurtada ou resolvida por palavras... Como indícios pouco mais coleccionara que um certo tipo de olhar oblíquo, um riso nervoso e tão agudo como o contacto fugaz da palma da mão no cotovelo dela quando sincronizavam a travessia de uma rua.
Essa tensão aumentava cada dia que passava e as migalhas sorridentes que levava consigo quando se separavam à hora conveniente do jantar desvaneciam-se totalmente durante a noite e, no dia seguinte, voltavam a encontrar-se sem acrescento de intimidade, quase tão nus de certeza e conforto como estavam a ficar as árvores das ruas alcantiladas sobre o rio por onde se perdiam em longas caminhadas.
Poderia isto ser o quê?
Um dia, um fim de tarde tão sem esperança como só novembro engendra, ela encostou-se, mais do que se sentou, ao murete que a separava do declive pontilhado por lixo e de uma queda que só seria travada pelas águas geladas e, tal quem viu empalar-se, uma a uma, nos caules espinhosos do talude todas as cautelas, moveu as mãos, engatilhadas nos bolsos como um letreiro de “cuidado com o cão”, e fê-las deslizar em direcção à cintura dele, onde continuariam ocultas pelas abas de um sobretudo tão escuro como o seu.
Então, as mãos friolentas dele deixaram os bolsos, abraçaram pelos ombros aquele ser tremente e o seu nariz excessivo tomou posse das reminiscências a Bien-Être do cabelo dela, os olhos fitando sem ver o lado de lá do rio e o mundo que deixara de existir.
Nota: O título deste texto é citação do poema da canção "Porto Sentido", de Rui Veloso/Carlos Tê.

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Porto, 2012; (2) Santiago (Cabo Verde), 2011.

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