Com o à vontade do tipo habituado a
milagres, Jesus produziu rapidamente um chicote a partir de um pedaço de corda
e, a explodir de raiva pela falta de respeito para com a casa do seu pai,
zurziu com ele os vendilhões do templo, o homem que vendia pombas, pôs em
pantanas os expositores dos banqueiros... Em seguida, causando um arrepio de
horror nos construtores civis presentes assegurou que, sozinho, conseguiria
demolir e reconstruir em três dias o templo que demorara 46 anos a edificar.
Encolhido de frio na quinta fila da
nave, encaixado entre as minhas irmãs, era a quinta vez que ouvia esta história
em anos consecutivos. Já a sei de cor, mas, este ano, o padre Avelino, um oficiante
inesperado na missa das sete, aproveitou as metáforas do evangelho segundo S.
João para traçar, em tons sombrios, um lúcido retrato da penúria em que se
encontra a igreja católica e a fé dos poucos crentes que esta ainda vai arrastando.
Nada de mais verdadeiro, bastava olhar:
Na plateia, a congregação reduzia-se a
uma escassa trintena de assistentes e não fora os frades e os noviços presentes,
flagrantemente oriundos da longínqua lusofonia africana, mal se ouviria o coro
de responso às invocações do altar. Antecedendo a chegada do padre, no púlpito,
um seminarista de traça indonésia, provavelmente um timorense, enumerou, num
português emperrado, o nome das almas por quem a missa fazia intenção,
transformando o Serrano do patronímico do meu pai em ‘Sereno’... “Nunca pior”, ruminei
para mim, entalando as mãos entre as coxas e enterrando o pescoço no cachecol.
No final de tudo, enquanto os fiéis,
ainda zonzos da hóstia, se arrastavam para a saída, deslizei do meu banco e
bati discretamente no vidro martelado da porta da sacristia, após o que a entreabri
e chamei:
“Padre Avelino, dá licença?”
“Quem é lá...?” ouvi responder do outro
lado da enorme cómoda de madeira escura com tampo de mármore onde se guardam
sotainas e paramentos. Mas só quando
cheguei perto ele me reconheceu e abriu os braços para um abraço onde se fundia
a amizade de muitos anos e a entoação profissional da saudação:
“Ó Pedro, que felicidade ver-te por
aqui...”
“Vim à missa do meu pai, fazem hoje
cinco anos que morreu...”
“Cinco anos, já!? Como o tempo voa...
O nosso querido Dr. Serrano...”
E ficamos por ali uns momentos,
sabendo um do outro, ele interessando-se pelo meu trabalho, eu querendo saber da
sua saúde, uma vez que é diabético de longa data.
“Estou bem, estou bem; estou como vês...
Também já tenho oitenta e um anos... E o teu menino, as tuas irmãs?”
Estava a contar-lhe que, também, o meu
menino já ia nos 23 anos, que estava na Alemanha, quando as minhas irmãs
irromperam pela sacristia tomando conta da actualização das suas próprias
notícias.
No fim da visita ele veio
acompanhar-nos à porta da sacristia, ficou-se um pouco a ver-nos afastar, eu ia
progredindo na nave e virando-me para trás num repetido gesto de adeus que
ambas as partes sabem agora que pode sempre ser um último.
Cá fora não estava muito mais gelado
do que no interior e Novembro fazia descer sobre a escadaria da igreja e o par
de candeeiros que a iluminam uma névoa alaranjada. Do outro lado da rua, tão
vizinha da igreja que se poderia assistir a uma missa das janelas, a casa do
meu pai esperava, como sempre, o limoeiro espreitando por cima do musgo do muro.
Mas desta vez, das vezes que se seguem, a casa está fechada, envolta em negrume
e silêncio e nenhum de nós vai meter a chave no portão, descer os degraus até
às luzes que costumavam brilhar por trás de estores corridos ou pelas das
vidraças da cozinha nem o meu cunhado Gil cruzará a ombreira para, faminto, ir
levantar as tampas a tachos e panelas para espreitar o jantar que, paciente
como a senhora Berta que dormitava sentada num banco, se aprimorava para quem chegava
da noite.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Cochim, Índia, 2012; (2) Porto, 2011.
Agora deu-me uma saudade do avô Eduardo e da casa do Porto...
ResponderEliminarBeijos,
Loura maluca
@ Semi-nómada: Como diria o teu tio Jorge: "Pois..." Beijo grande.
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