Alemanha: antes e depois. |
Na ressaca da II Guerra Mundial foi necessário dividir a
Alemanha em fatias para que ela não ficasse com ideias. Os despojos foram
partilhados entre a União Soviética, a Inglaterra, os Estados Unidos e a
França. Com o seu pedaço e a rica experiência anterior em criar repúblicas
independentes, a URSS imaginou a República Democrática Alemã (mais conhecida
por Alemanha Oriental ou do Leste), território de grande utilidade para que o
colosso comunista farejasse de perto o que se passava na Europa Ocidental.
O regime da Alemanha de Leste (a RDA) ficou conhecido pela
sua ortodoxia e dureza e os russos não poderiam ter sonhado com melhores
discípulos, pois nem nas suas mais devotas repúblicas federadas, como a
Lituânia, a Ucrânia ou o Cazaquistão, conseguiram tanto ordenamento do
território...
Um dos pilares da montagem e manutenção deste sistema foi o
Ministério da Segurança do Estado (cuja sigla STASI se tornou famosa), um
ministério totalmente dedicado ao policiamento político do país e arredores, com
90.000 funcionários a tempo inteiro e, no seus melhores dias, quase dois
milhões de informadores, incluindo crianças, o que fazia com que a RDA tivesse
cerca de 1 espião por cada 63 habitantes. Imagino que nas bordas da Península
Ibérica o nosso ditador caseiro se babava de inveja.
A STASI, criada em 1950, teve as suas raízes na Gestapo
alemã e absorveu com eficácia todos os métodos e requintes da sua congénere KGB
com quem, aliás, mantinha estreita colaboração. A sua estrutura e interesses abrangiam
todos os ramos possíveis da actividade humana, tendo até um departamento
central cuja função era o controle do lixo, secção onde, como é do conhecimento
geral, se podem obter informações vitais para o desenvolvimento de um país.
A sede nacional da STASI ficava em Berlim Leste, ocupava um
quarteirão e tinha arquivos com cerca de 170 km de documentação. Mas nas outras
cidades da RDA a STASI tinha filiais e Leipzig, no nordeste do país, era uma
delas.
No passado Domingo, não em completo à vontade, subi as
escadas da antiga sede da STASI de Leipzig, um edifício maciço e tristonho,
agora transformado em museu, situado numa das principais avenidas da cidade e
fronteiro à escola de música Felix Mendelssohn onde
o Zé João e mais 600 alunos fazem os seus estudos musicais.
Há várias sombras que impressionam numa visita destas, a
primeira das quais é a de ainda em 1989 tudo aquilo ser uma realidade operante
e não o comboio-fantasma obsoleto em que os seus corredores se transformaram e onde
o equipamento técnico repousa envidraçado: máquinas para abrir correspondência
subrepticiamente, carimbos falsos de todas as cidades do mundo; cabeleiras
postiças comidas pelo tempo; máquinas fotográficas disfarçadas em carteiras de
senhora cujo couro engelhou...
Embora a STASI não fosse uma polícia política
particularmente carniceira (nos anos 50 e 60 o cheiro a carne chamuscada na
Europa era ainda uma memória vívida e a violência física mal vista), lá está,
discreta na parte inferior de um placard, a fotografia a preto e branco de um
pequeno forno crematório, uma coisa quase nada, quase só uma torradeira para o desenrasque
de situações urgentes.
Mas uma das vitrines que mais provocam uma sensação de
mal-estar, pegajosa e duradoura, é a que protege uns grandes frascos de vidro
cilíndricos, com tampa de enroscar e umas flanelas amareladas enroladas lá
dentro. Que porra seria aquilo, enquadrado entre as máquinas fotográficas
dissimuladas atrás de botões de casaco e os diminutos gravadores de fita
acoplados a telefones? Pois é um catálogo de cheiros! Perante cada objecto
suspeito, encontrado abandonado, os agentes da STASI aplicavam-lhe um pano
altamente absorvente que captava as moléculas olorosas geradas pelo seu dono
potencialmente fora da lei. Mais tarde, quando esse dono era chamado a
interrogatório, sentavam-no numa cadeira com uma flanela nova dissimulada sob o
assento, a qual se impregnava do odor específico de quem ali se sentara. Para a
prova de compatibilidade entre as duas flanelas a STASI possuía (em 1988) 41
cães treinados para isso mesmo: cheirar quadrados de panos e providenciar
evidência científica da culpa dos habitantes extraviados de Leipzig.
Finalmente, e isso é pormenor que só se sente cá fora,
respirando o ar puro das ruas pacatas de Leipzig, os aromas das alamedas
frondosas e dos seus jardins bem tratados, a gente fica a perguntar-se por onde
andarão essas pessoas que ainda há menos de 25 anos faziam parte deste jogo
repressivo. O que pensarão, hoje em dia, quando se cruzam, sorridentes e em
liberdade, connosco e vão à sua vida como se nada fosse? Nada, é o mais provável.
Com excepção do mapa, © Fotografias de Pedro Serrano, Leipzig (Alemanha do ex-Leste), Junho 2012