O Kemps Corner é uma zona intensamente
urbanizada do sul de Mumbai (a antiga Bombaim) e, não fora a extensa área
arborizada que se lhe encosta a sul, não veríamos mais do que prédios altos
como horizonte e grandes aves a planar no céu pálido. O mar, o mar que anda
sempre por perto em Mumbai, não se vê dali, é necessário ainda percorrer umas
boas centenas de metros pela Desai Avenue abaixo até lhe chegarmos.
Nos semáforos da parte alta da avenida
há homens vestidos como mulheres a pedir esmola e quando o sinal é favorável
aos automóveis vão reunir-se ao pequeno grupo de outros homens vestidos de
mulher que, sentados, desenham um círculo no passeio adjacente. São
prostitutas, são pedintes, fazem parte de uma casta? Um pouco de tudo, estamos
na Índia.
Quanto ao terreno arborizado referido,
que à primeira vista se poderia confundir com um esquecido jardim público onde
as árvores e a vegetação cresceram à mão de um jardineiro distraído, é ali a
Torre do Silêncio (Tower of Silence), o local onde os Parsi – uma pouco
numerosa mas poderosa etnia de origem persa – dão destino aos seus mortos. Os
Parsi acreditam não ser boa prática contaminar a terra, a água ou mesmo o ar,
com os restos mortais dos seus entes queridos e, como alternativa para um
embalamento até à eternidade, expõe os cadáveres à bondade dos abutres e outras
aves de rapina, até que apenas ossos restem na torre circular e sem cobertura
onde são deitados.
Foi esta zona da cidade que Leonard
Cohen escolheu para habitar durante as suas estadias na Índia, país que visitou,
assídua e demoradamente, durante a segunda metade da década de 90 e a primeira
da década de 2000. Uma qualquer teoria apressada, baseada em associação
fantasiosa, seria tentada a explicar a escolha do local pela omnipresença da
Torre do Silêncio, justificando a tese pelo fascínio de Cohen com os assuntos da
morte e invocando como argumento as torres assombradas das suas canções... Mas
acontece que não foi nada disso e o homem escolheu o local pela proximidade da
residência de um mestre indiano em cujos ensinamentos andava interessado. Mr L.
Cohen tinha lido obras dele e decidiu que o melhor era ir procurá-lo em carne e
osso, hospedando-se num hotel das redondezas que lhe permitisse percorrer a
distância dos encontros a pé. Na área havia dois hotéis, quase vizinhos, mas
Cohen não escolheu o razoavelmente mais sofisticado Shalimar Hotel, optando
pelo Kemps Corner Hotel.
O Kemps é um hotel de duas estrelas, mas
pela bitola hoteleira seria mais apropriado chamar-lhe pensão, aquilo é mesmo
uma coisa modesta, o oposto do que se estaria à espera numa figura pública de
cinco estrelas.
Na recepção, pedi à menina de serviço
se podia ver um quarto, perguntei-lhe há quanto tempo trabalhava ali. Que sim,
que esperássemos um pouco na salinha ao lado, que trabalhava no hotel há três
anos. “Não serves”, pensei enquanto observava o cubículo onde mal cabia o sofá
de outros tempos. Depois chegou um rapaz
que nos convidou a subir num elevador onde dificilmente entraria mais alguém. O
quarto que nos queria mostrar ainda estava a ser arrumado, havia dois
empregados lá dentro que, apressadamente, passaram os lençóis usados e as
braçadas de toalhas para o quarto em frente, pois eu perguntara se podia tirar
uma fotografia. Uma cama de madeira, estreita, encostada a uma parede, uma
pequena secretária de madeira amparada a outra, lá ao fundo a janela por onde
tentava entrar uma claridade esverdeada, esbracejando na cortina de tela que
tapava a metade superior da janela e o aparelho de ar condicionado encastrado
na metade que sobrava. Paredes meias, em frente à porta de entrada, a casa de
banho: funda e estreita como o quarto; uma retrete, um lavatório e um bocal de
chuveiro a meio de uma parede, com um balde de plástico ao lado, no chão. Era
tudo e o rapaz deve ter farejado o meu modo incompleto, pois ofereceu-se para
nos ir mostrar um outro quarto, maior, com cama de casal.
O novo quarto ficava, pelos vistos,
noutro edifício, pois saímos para a rua, onde voltei a cumprimentar o velho
porteiro que saudava quem chegava à sombra do toldo, enfunado em verde e branco,
que emprestava um ar levemente festivo à entrada. O novo edifício ficava nas
traseiras do anterior, um outro toldo listrado em verde e branco prolongava a
continuidade, atenuava a fachada conspurcada. Foi por aí que perguntei ao nosso
guia há quanto tempo trabalhava no Kemps Hotel.
“26 anos”, disse.
“26 anos! Como é possível?”, respondi
enquanto fazia contas rápidas de cabeça: 2016-26=1990. “Quanto anos tem o
senhor?”
“44”, disse ele.
Comentei que parecia ter trinta e,
tendo em consideração os anos há que ali trabalhava, sugeri que, se calhar,
teria conhecido o – hesitei no termo – escritor e cantor Leonard Cohen.
“A very nice gentleman”, respondeu de
imediato, “morreu há duas semanas...” E acrescentou, como que iluminado pelo
assunto e levantando um indicador em direcção ao céu, “ficava sempre neste
edifício, sempre num mesmo quarto lá de cima, do último andar...”
Quis saber se o poderíamos visitar. Que
não, que estava ocupado de momento, mas que era igual ao que já tínhamos
visitado no outro edifício.
“Tão pequeno?”, perguntei.
Sim, tão pequeno, era uma pessoa muito
simples, passava grande parte do dia no quarto, a ler e a escrever; saía para
passear um pouco e ir nadar numa piscina no fim da Warden, o velho, e ainda
usado, nome do tempo dos ingleses da Desai Avenue.
"A very nice gentleman”, voltou a dizer
e foi à sua vida, pois percebra que o nosso verdadeiro interesse não era imobiliário.Cá fora, à luz forte do fim da manhã, sob o toldo raiado, o velho porteiro foi mais crédulo e não nos deixou partir sem nos entregar uma página, tipografada nalguma impressora de cartuchos estafados, com as tarifas praticadas pelo hotel. Apertámos as mãos; “take care”, disse ele na despedida. No final da álea, antes de me dissolver na avenida, virei-me, a olhar uma última vez o toldo azul e branco e dei com ele a seguir-nos os movimentos, a levantar a mão num adeus, quem sabe se um até breve caso tomássemos em consideração o preçário convidativo do Kemps Hotel.