No Verão de 1967, entre os treze e os catorze anos, cumpri um castigo, determinado
pelo meu pai e aceite por mim como justo, que consistiu em trabalhar como
funcionário indiferenciado na firma de um tio meu.
O meu tio Mário, casado com a irmã
mais nova da minha mãe, era sócio maioritário e gerente da Repor, Representações Portuenses Limitada, uma empresa que, entre
outros bens comercializáveis, se dedicava à importação de azulejo de pastilha
italiana e ao seu processamento e distribuição.
Como se tratava de um castigo, comecei
na cave das hierarquias e daí não passei, pois um mês deu mais para evidenciar
as minhas manhas do que as minhas capacidades laborais. O meu trabalho
principal consistia em montar placas de pastilha de azulejo para revestir
paredes e floreiras dos prédios do Porto e, secundariamente, em fazer fila nos
bancos no guichet de depósito de cheques; em ir aos correios entregar e
levantar correspondência, entre outras tarefas avulsas do género. Um aladrilhado
moço de recados, poder-se-ia dizer.
Pois, como castigo, aquele contacto
com o mundo real saiu furado às intenções punitivas dos meus pais e recordo-o
como um tempo feliz da minha vida. As coisas que não podiam acontecer ao longo
de um dia de jornada!
Habitualmente, vinha almoçar a casa,
pois um dos empregados da Repor, o Zé
da Aida (sendo esta Aida uma empregada ruiva permanente da minha avó),
repastava na cozinha dos meus avós e a casa dos meus pais era do outro lado da
rua...
Às vezes, só às vezes, quando perto da
uma e meia da tarde me apresentava no terreiro onde o Zé tinha deixado a
carrinha Volkswagen pão-de-forma estacionada à sombra da tília, dava de caras
com o meu tio e patrão que, também ele, findo o almoço, se preparava para regressar
à rua de Sá da Bandeira, onde ficava a sede da firma. E por vezes, só por
vezes, ele olhava-me do seu olhar sonolento e levemente trocista e dizia:
“Vais para baixo...?”
E como eu acenasse que sim, ele escancarava
na minha direcção a porta do lado do passageiro e, sem me dirigir palavra,
gritava por cima do para-brisas do descapotável:
“Ó Zé, hoje o rapaz vai comigo...”
E o meu coração de moço de recados
acelerava ao sentar-me no lugar ao lado do meu tio...
Acontece que, por vezes, a vida me
leva ao Porto e, dentro desse acontecimento, sucede percorrer de carro a rua do
Amial em direcção à Circunvalação. E no cruzamento da rua do Amial, que outrora
me parecia uma avenida pela largueza, e a rua Nova do Tronco, onde todos nós
morávamos nos anos que recordo, vejo surgir um Alfa Romeu, vermelho e vistoso
como unhas recém-esmaltadas, que anuncia a sua chegada ao cruzamento em felina prioridade.
Ao volante vai o meu tio Mário e eu afundado ao lado, tentando imitar, com o
meu antebraço ainda demasiado curto, a descontração de o levar apoiado no vão da
janela. Os dias são quentes, a capota foi recolhida, os vidros vão baixados e a
brisa causada pela deslocação do carro faz ondular ao de leve as ondas do
cabelo bem acondicionado do meu tio que, ciente do seu impacto visual, se
entrega contente ao tráfego da avenida, enquanto, sem facilitar a harmonia da
condução, escrutina pelo retrovisor lateral um ser de saia travada que teima em
perturbar o trânsito
com o seu andar ondulado.
© (1) Mário Braga, 1964, Lisboa, fotógrafo desconhecido; (2) Alfa Romeo Giulia Sprint GTC, 1964.