26 outubro 2015
22 outubro 2015
O PROVADOR-MOR
Ei, Passos Coelho! Ei, António Costa!
Levantam, por um momento, os olhos da papelada e observem o fenómeno que se
mostra às vossas janelas. Porra! Já passou; ei-lo que sobrevoa os céus sobre
Vila Franca de Xira, ajustando a visão de raios-X às chaminés que vomitam
os seus fumos cinzentos no azul. Registou e continua, não tem tempo a
perder, o seu rumo é determinado por um único fito: Portugal à Frente! Vai, a
caminho do norte inclemente, restituir a confiança, abalada naquele canto do
país pelas consequências de acontecimentos funestos, porém reparáveis.
Há dias, um perigoso surto de
botulismo (uma doença neurológica, prima agravada do Botox, e gerada por
conservas mal produzidas) afectou as alheiras de Mirandela, pôs uma meia-dúzia
de portugueses entre a vida-e-a-morte e, sobretudo, abalou a confiança naquele
produto regional certificado (verifique sempre o brinco de chumbo que atesta a origem),
um ex-libris da zona e do país. Não, a coisa não podia ficar assim e ver
aquelas quebras de 80 % nas vendas era de partir o coração, sobretudo com um
ministro da Economia demissionário, ou quase. Era preciso agir. Murmurou
entredentes Portugal à Frente/Recuperar a
Confiança! e dizendo à secretária “vou sair em serviço”, mas sem precisar o
destino, desceu à cabine telefónica na qual costuma fazer a mudança de
traje e onde guarda as Super-capas. Esta manhã escolheu a de Provador Oficial e aí vai ele, esticando
o braço e fechando o punho, para ganhar impulso na descolagem, e já fazendo
uma graciosa curva em seta no céu alaranjado da enclítica manhã: é que tem de
estar no Palácio dos Távoras ao meio-dia-e-meia, foi essa a hora combinada, para
degustar a Simbólica Alheira perante as câmaras, as Municipais e as Outras.
Um jornalista, infeliz na alegoria,
comparou o feito à iniciativa anterior de um ministro da Agricultura, que
ingerira uma perigosa mioleira em tempo de vacas-loucas. O Provador Oficial não
gostou da comparação: “esse risco não era zero, mas o da alheira é nulo.” Nada
como a segurança de um risco nulo para se ser herói sem perigo, mas,
arriscaríamos inferir que, face a tal coragem e temperamento – ao contrário do
obscuro e esquecido ministro – o nosso Super-Heroi poderia também, sem a surpresa
de mudança, ter ingerido sem perigo a tal mioleira assanhada. São os
desta fibra que se vão do decreto-lei da morte libertando.
E enquanto nos perdemos aqui em
considerações palavrosas, estéreis e
supérfluas, eis que já se fita o céu em Trás-os-Montes, já se apertam os botões
dos casacos e se endireitam as gravatas: é ele que chega a tornar a alheira
saudável.
Classificação:
SOCIEDADE
08 outubro 2015
BACK IN THE U.S.S.R. (you don't know how lucky you are boy)
Dos russos, diz-nos a caricatura que
são excessivos. Excessivos nas emoções, no dramatismo dos gestos, na avidez
pelas pelas bebidas destiladas...
T. chegou ao encontro um pouco
atrasado ao nosso encontro, explicou o motivo:
“Sou médico do embaixador da Rússia e
ontem o gajo meteu-se nas comidas picantes, bebeu demais, está com uma crise
tremenda de hemorroidal... O desgraçado nem se consegue sentar, não tem
posição, não dormiu a noite inteira!”
“E tu que lhe receitaste?”,
interessei-me, já a pensar em lhe fornecer a minha solução milagrosa para
aquilo, caso ele não a conhecesse.
T. receitara-lhe as pomadas e os
comprimidos do costume, solução muito demorada para quem está sobre chamas.
Hemorroidas assanhadas ou encravadas podem ser um inferno na terra pela dor,
comichão, falta de posição, completa captura do pensamento e da vontade! É
coisa para se desejar ao pior inimigo!
“Não conheces o método da luva?”,
perguntei então. Ele não conhecia.
“Pegas numa luva cirúrgica, de
borracha, enches de água e dás um nó no sítio do punho, para vedar aquilo.
Depois pões a congelar, com o cuidado de que um único dedo fique esticado e os
outros dobrados...”
Em seguida, em tom chocarreiro, sugeri
que o dedo a escolher deveria ser o indicador ou o médio, pois o mindinho era
muito curto e o polegar muito grosso... T. riu; já tinha antecipado o restante
procedimento, mas quis saber detalhes. Forneci-lhos com gosto:
“Depois mandas o gajo deitar-se e
enfiar aquilo entre as nádegas – é o segredo do dedo, de que outro modo
conseguirias tu levar gelo ao olho do cu, lá tão ao fundo da estreita ravina?.
Ele que encoste ao esfíncter a ponta do dedo, devagarinho, e deixe estar o
tempo que aguentar. E vai repetindo o procedimento, até aquilo estar
resolvido...”
T. estava entusiasmado com a ideia,
dizia:
“Vou já telefonar ao homem... mandar à
embaixada uma enfermeira que o ajude a fazer aquilo.”
Igualmente entusiasmado, eu discorria
sobre as razões que tornavam aquele método tão democraticamente acessível e
eficaz:
“O gelo é um analgésico imediato,
incomparável: mal o dedo gelado toca no cu, deixas de sentir a zona. E, para
além disso, tem um efeito anti-inflamatório poderoso, reduz o tamanho daquilo
rapidamente, faz com que tudo possa voltar para dentro... E o facto de o frio
queimar um pouco aquela pele é igualmente positivo: faz com que ela descame e
seja substituída por uma nova...
Mas T. já estava ao telefone a falar
com o russo, com a mão aberta pedia que me calasse um pouco, para entender o
outro melhor, poder concentrar a atenção nas perguntas do diplomata, feitas num
português matrioskónico.
Na manhã seguinte, T. apareceu,
sorridente, a dar novidades sobre a evolução das coisas no bloco Leste:
“Eh, pá, o gajo está mesmo agradecido,
parece outro. Estava tão estafado do sofrimento que adormeceu como um bebé e
dormiu a noite inteira! Diz que já não lhe dói nada, está um pouco dorido mas
está como novo...Recostei-me na cadeira, satisfeito por ter levado paz à alma russa, por ter contribuído – a modesta escala, é certo – para o estreitamento das relações entre os nossos três países.
Fotografia de cima: © Pedro Serrano, Bissau (Guiné), Outubro 2015.
Nota: "Back in the U.S.S.R." é uma canção de Lennon/McCartney, 1968, do álbum The Beatles.
03 outubro 2015
UM MUNDO MELHOR
A sede da Ordem dos Médicos funciona
provisoriamente em instalações cedidas pela farmácia Rama.
As instalações, sala e pequeno anexo,
são, respectivamente, a antiga marquise e cozinha de uma velha moradia
colonial, uma daquelas alegres casinhas que os portugueses de classe média
construíam nos trópicos, um novo lar, a relembrar na traça e arrebiques as
casas que tinham deixado, mas adaptando-se já ao exílio no telhado prolongado
em alpendre – a defender os habitantes do sol impiedoso – ou nas paredes perfuradas
para promover toda a ventilação possível.
A entrada, couraçada por uma espessa
porta de metal e um grosso cadeado, deita para um pátio em que ainda se
reconhece o coradouro e os arrumos, e onde agora uma família de pai, mãe e
filho fazem a extensa parcela ao ar livre da sua vida. Há também um altivo garnisé
macho e respectiva franga. Curiosa, como todas as do seu sexo, esta aparece às
vezes na ombreira da porta a espreitar as reuniões, enquanto o companheiro,
indignado, obriga a pausas nos trabalhos até que o seu canto estridente deixe
de se sobrepor aos diálogos.
Já passa das quatro da tarde e enquanto
espero que cheguem os outros, sento-me num banco de madeira que existe no
pátio, vizinho da esteira onde o locatário e filhito dormem a sesta e um dos rapazes
que apoia o funcionamento da Ordem, às devidas horas e depois de lavar os pés
com a água de uma garrafa, se ajoelha de empréstimo, virado a leste, para
dirigir a Alá as suas preces.
Olho noutra direcção, a resguardar a
sua intimidade: do lado de lá da rua é o hospital principal do país e entre mim
e ele, a um metro do muro, na berma da rua sem passeio, amontoa-se, a céu
aberto, o lixo das redondezas. Com excepção dos resíduos de tipo IV (radioactivo,
quimioterapia e outros venenos classificados), todo o restante lixo hospitalar
vem parar a lixeiras destas, onde se entrelaça ao lixo doméstico, pelo que é possível
ver restos humanos, como tripas, dedos, ou pernas amputadas, a serem violentamente
negociados entre os cães e os abutres que vasculham o lixo da cidade.
“Hoje está um calor do caraças...”,
desabafo a T., que chegou agora, como se ontem ou anteontem tivesse estado
fresco.
“Yá, é das chuvas... Viste o que
choveu ontem à noite? A água cai no chão, encharca, depois evapora com o calor,
cai mais água de cima e nós no meio a levar com aquilo tudo, sem ter para onde
fugir!”
T. é muçulmano e, por isso ou até por
isso, um tanto fatalista, embora essa característica não o impeça de esbracejar
por um mundo melhor para o país dele. Sabe que é difícil, por vezes encolhe os
ombros como se fosse impossível e o olhar cansa-se-lhe, entristece-se, a raiar
a desistência. Mas não há volta a dar e estão a chegar outros para a reunião.
Dentro da sala a luz é vermelha, tem a ver com a toalha encarnada sobre a
comprida mesa de plástico que ocupa todo o espaço, com as cortinas que cobrem
as janelas que separam a marquise do logradouro, onde o miúdo encheu e
transporta um balde de água mais pesado do que ele, enquanto a mãe recolhe a
roupa da corda e o pai atira grãos de arroz às galinhas.
Na sala, separada da farmácia por
portas de madeira tristemente imóveis, cheira a remédio e uma solitária
ventoinha espadana do tecto um abençoado ventinho, ameaçando fazer voar da mesa
o papel solto no qual o miúdo dos vizinhos fez os trabalhos de casa da
escola.
A reunião acabou, os convidados
dispersaram, lá fora o crepúsculo não trouxe o alívio que se espera dele e um
calor húmido agride-nos como uma toalha molhada.
“Vamos tomar alguma coisa?”, proponho?
A umas dezenas de metros, numa rua de
terra batida pontuada de mangueiras, o Comandante está sentado à sua esplanada
como um soba destingido pelo sol. Dirige da cadeira todo o movimento do
restaurante, dos numerosos empregados ao que há-de ver-se no ecrã de plasma
amarrado a uma coluna, até às saudações que vai atirando a quem passa na rua. É
alentejano, monárquico, destemperado, remoto descendente de Giraldo Giraldes –
o Sem Pavor – e, apesar de ter jazigo reservado em Évora, está em África há
tanto tempo, conhece-a tão bem, que não passa sem ela, sem o seu mato, as suas
rolas, as suas pescarias; diria que sem a sua gente, embora se exprima – para
padrões ocidentais sentimentalmente correctos – como um bruto.
“Levaram-me ontem à sua antiga
quinta...”, resumo-lhe o meu passeio de Domingo à tarde.
“Ah, nem me fale nisso, aquilo já não
é meu...”, responde ele no seu sotaque alentejano pausado e interrogativo,
“esses cabrões roubaram-ma... vinte e nove milhões de francos para o caralho”,
diz, abrangendo no esses o meu impecável
acompanhante, médico e deputado da Assembleia Popular Nacional. T. ri-se, dá
uma palmada amigável no ombro do outro.
Vamos sentar-nos na minha mesa
predilecta, lá ao fundo, sob uma ventoinha, alegrada por uma toalha azul com
uma miríade de figurinhas pretas. T. fala do Comandante com admiração e
amizade. Por aqui toda a gente lhe conhece as idiossincrasias, a mansa loucura
que insidiosamente embebe quem vive sozinho e longe dos da sua raça, e respeita
a determinação, a iniciativa, o contributo do homem para o progresso local. T. aprecia os resistentes, o Comandante é desses.
Lá longe, esparramado na sua
cadeira, impedido de reagir rapidamente pelo porte volumoso, imponente como o
dos hipopótamos do sul de que fala com temor e fascínio, o Comandante acabou de
atirar uma das bases de palha entrançada onde se pousam os pratos ao gatito que
anda por ali.
“Inácio, apanha aquilo por favor: o
filho da puta do gato andava a ver se me caçava uma das lagartixas, coitaditas...”
Sorridente, Inácio, atravessa vagaroso
o espaço e entra no canteiro a recuperar a rodela de palha.
O Comandante tem profundo apego às
osgas que serpenteiam pelas traves do tecto da esplanada, pelos camaleões, por
um sapo que canta no meio dos canteiros, a que se refere como o meu sapo e a quem gaba a beleza e
utilidade.
“Ainda hoje de manhã o vi atravessar
aqui o terraço, todo contente. Sabe que estes filhos da puta aqui têm medo de
camaleões, os cabrões?”
“Ai, sim”, admiro-me, sentado em
frente a ele, pois, ao fim de uma semana de chegado, distinguiu-me com um
convite para acampar na mesa reservada, onde mais ninguém se pode sentar, onde
sempre reside e come, partilhando-a apenas com alguns outros convidados,
criteriosamente seleccionados entre brancos, pretos e mestiços.
“Sim! Acham que é bicho com feitiço ou
assim... Divirto-me imenso a gozar as velhas: pego num e penduro-o numa orelha,
ele fica ali, e elas todas fodidas, a resmungar...” E batendo com as mãos nas
portentosas coxas, ri-se até às lágrimas, chama um dos empregados mais atados:
“Diz aqui ao senhor doutor o que faço
eu com os camaleões...”
O homem, com o ar de quem se está a
invocar assunto grave, confirma a história do brinco que muda de cor pendurado
na orelha; eu pergunto o que acha ele disso.
“É muito perigoso...”, responde com a
gravidade de quem teme pela vida do Comandante e até da sua, por andar perto e
assistir a tais atrevimentos.
É aí, no café-restaurante, que amiúde encontro
T. quando ali chego, sistematicamente à mesa do Comandante que, vendo-me frequentemente em companhia dele,
comenta-o:
“Tipo muito sério e homem inteligente,
homem competente. É um fula, sabia? Os fulas são gente séria, não são como a
outra cambada de vigaristas e filhos da puta que por aí andam; alguns
portugueses incluídos” E, baixando a voz, com comiseração: “Sabe que, durante a
guerra civil, os cabrões de merda lhe mataram mais de vinte familiares
chegados?”
Por trás do balcão, Inácio sorri o
sorriso abrangente e caloroso de um Cristo perante os que não sabem o que dizem
e Emília olha-me sem modificar a expressão, mas com uns olhos onde brilha um:
“É assim, o meu patrão, que é que se há-de fazer...?” e há uma certa
resistência, consciente e resignada, no modo como arrasta as chinelas e o andar
no cumprimento das permanentes directrizes e interpelações do outro. Emília é de etnia Balanta e por isso animista, uma gente que, religiosamente falando, venera pedras, plantas e animais, pois tudo são manifestações divinas.
“Eu já te disse aí umas quarenta mil
vezes que a colher é para estar fora do açucareiro, no prato, por causa da
humidade... Mas vocês parece que não aprendem! Irra!”
Sentado lá ao fundo, como um branco
recém-chegado, mirando, distraído, as aves raras da cooperação internacional
que por ali param – e cuja presença faz com que o Comandante seja mais
reservado nos comentários – sorrio, divertido, deixando cair para baixo da mesa
pedacinhos de frango à cafreal, para proveito e delícia do gatito e da mãe, que
vivem no recinto de casa e pucarinho.
“Deixe estar”, interrompo, “gosto dos
seus gatos...”
“Dos meus gatos?! Porra, eles não são
meus, andam por aí...”, resmunga ele.
T. chegou e o Comandante, embora finja
não se interessar, pergunta-lhe novidades da situação política: o país está –
outra vez – sem Governo, a situação arrasta-se há dois meses e os dois
principais partidos continuam sem se entender. T. suspira; andam ainda em
conversações mas a coisa não dá em nada. O país todo parado, as pessoas exasperadas,
indignadas, falam abertamente do tema: apaixonadamente, intensamente, ainda não
foram atingidas pela indiferença da política que atacou o Ocidente. T., sentado
à mesa do Comandante, rilhando uns rissóis de camarão com arroz de tomate, vai
contando o que sabe, vai comentando o país, depois voa e fala do assunto enquadrando-o
num contexto regional, a seguir plana para uma visão africana global;
finalmente, numa abordagem geoestratégica,
fala agora da II Guerra Mundial, dos russos, dos europeus, dos americanos.
“E os militares”, pergunta alguém, “o
que dizem eles?”
“Estão à espera, a ver o que dá...”
“Doutor, o senhor vai ver que isto
ainda vai dar merda...”, confidencia o Comandante quando ficamos sozinhos. “Foi
sempre assim; vai ver que isto não vai lá sem porrada, sem matarem três ou
quatro gajos... E logo, os seus olhos vivos adquirem um brilho irónico,
provocador:
“Depois quero ver como vai jantar, com
os gajos aos tiros aqui na rua...”
“Acho que nessa altura é melhor o
senhor mandar servir o jantar debaixo da mesa...”, digo, levantando-me e
despedindo-me: “Até logo, obrigado por me ter cedido uma fatia da sua
melancia...”
“Minha melancia?! Ora essa, a melancia
está aí para os clientes...”
“Não foi o que a Emília me disse:
quando lhe pedi ela disse-me que estava reservada para o patrão, que para nós, comuns mortais, só havia papaia e maracujá...”
“Emília...”, chamou o Comandante.
Mas Emília, avaliando com olhar rápido
a premência do assunto, não se move: está entretida ao portão da esplanada a
receber uma rapariga, que segura na mão um balde de plástico preto.
“É a Edi”, informa o Comandante com uma
cintilação terna nos olhos, e logo esquecendo o momento anterior: “É quem cuida
do porco da casa ali em frente, vem aqui buscar a lavagem... Coitadinha, tem
uma variz enorme numa das pernas. Acha normal naquela idade, pode ser perigoso?”
“Numa perna só? Que idade tem ela?”
“Não sei, é muito nova, para aí uns...
Ó Edi”, berra o Comandante, “anda aqui mostrar a tua perna a este senhor, que é
médico...”
Muito envergonhada, a rapariga vem até
à nossa mesa e reconheço-a no cacho de cabelos que lhe emolduram a face:
tirei-lhe, logo num dos primeiros dias, uma fotografia que ficou uma beleza;
quase por acaso, à queima-roupa; a cor de chocolate dela contra o rosado de um
muro, as flores da camisola a contrastar com um fundo de verde das plantas
locais. Por insistência repetida do Comandante, Edi arregaçou uma das pernas
das calças elásticas e mostra-me a pele: tem, de facto, uma tremenda variz,
unilateral, do joelho para cima, da grossura de um dedo, mas, descubro que já
foi diagnosticada em Portugal, vai ser operada para o ano em sítio aconselhado
e seguro.
“Uma moça como deve ser”, louvou o
Comandante quando Edi se foi, “e, para além de trabalhar, estuda, sabe, anda a
estudar...”
“Ai, sim, e estuda o quê? Com vinte e
um anos já deve ter terminado o liceu... Andará na Universidade?”
Mas o Comandante não sabe, só sabe que
toma conta do porco da Dona Cármen - um ex-combatente do PAIGC e antiga Ministra da Saúde, que mora ali em frente -, que tem a variz e que anda a estudar.
Chega T., para me buscar, e à entrada
cumprimenta Emília com um beijo e grande familiaridade. À saída, pergunto:
“Conhece-la bem?”
“Sim, é sobrinha de um primo meu.”
“Vocês, aqui, são todos primos uns dos
outros!”, exclamo, suportado na frequência com que o vejo abraçar, beijar,
parar para falar com gente em todo o lado, desde colegas de profissão a
empregados de restaurante ou humildes serventes dos ministérios.
T. está parado no meio da rua e, como
não tem carro próprio, faz sinal a um dos numerosos táxis azuis que circulam
por Bissau. Depois, comenta:
“Sim, somos todos mais ou menos
família...”
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau, Setembro/Outubro 2015.
Classificação:
ESBOÇOS e RETRATOS,
GUINÉ
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