Dizia Nabokov que cada escritor tem uma constância e um fôlego próprio em termos do número de páginas dos seus livros: uns andam na casa das 300, outros ficam-se nas 250, e por aí fora. Chico Buarque tem sido, nos seis romances que nos deu até hoje*, um autor de tipo breve, despacha o que tem a dizer, em média, em 150 páginas.
Essa Gente é, para mim, o mais bem-humorado dos romances de Chico Buarque, lê-se como um divertimento, apesar de nem tudo serem rosas por ali. Não quer dizer que o humor não esteja sempre presente nos seus livros (o sentido de humor é uma das características mais aparentes da sua personalidade), mas nalguns deles ele era mais ácido ou mais abafado por outros humores sombrios, não se tornando a corda que sussurra ao longo da história. Neste último livro, o bom-humor vibra em permanência e fica-se com a sensação de que se terá divertido 'um monte' durante o processo.
Essa Gente trata o clássico tema do artista em crise de inspiração, assunto glosado por muita gente, da escrita ao cinema. Há um Duarte que quer escrever e não consegue e o universo das pessoas que giram em torno dele, umas antigas e outras novas, e que o livro, sob a forma de entradas de diário, cartas, telefonemas e, até, notícias de jornal, vai sugando para dentro do enredo. Há mulheres, muitas mulheres, Chico sempre se fascinou muito com elas e sempre as cantou e interpretou nos seus livros e canções.
E há, como de habitual nos seus livros, o personagem principal meio confuso, meio perdido, meio flutuante, e a obsessão com o processo criativo da escrita, e um cuidado amoroso em regar palavras da língua que mal são já usadas, mas de que não desiste nem nos livros nem nos poemas das canções: lépida, verazes, veros... O que não impede que Essa Gente, talvez mais do que em livros anteriores, esteja juncado de termos do calão brasileiro, semeado de americanices, e do aportuguesamento instantâneo de palavras canibalizadas a outras línguas.
Chico aproveita o livro para dizer muita coisa, para mandar recados e clarificar o que pensa em relação a vários assuntos que, ao contrário de outros artistas, não se apressou a vir afirmar na comunicação ou nas redes sociais: é claríssimo o que pensa do estado actual do Brasil e do tipo de gente que o governa, e lá estão as armas a mais, a violência policial a mais; a supremacia tribal e desprezível, o isolamento esquizoide dos poderosos; as queimadas na Amazónia e as fortunas feitas à falta de sombra disso; a corrupção da Justiça; o abismo económico e social entre quem mora nas favelas e nos condomínios fechados, gap que o personagem principal se entretém a saltar. Há também, dispersos pelo livro, recados às feministas radicais que - em modo de leitura e interpretação bastante estúpido - o sinalizaram como machista em canções do seu último disco (Caravanas, 2017). E não apenas recados: Chico Buarque diverte-se a confundi-las, a elas e aos outros que vivem obcecados por detectar incorrecções nos posicionamentos sobre sexo, género ou a falta dele.
Finalmente, apesar de mais poder ser dito em louvor, Essa Gente é o livro de Chico Buarque em que a presença, a familiaridade com Portugal é mais vincada: estão lá os poetas (Pessoa e Camões), estão lá os apontamentos geográficos (o Castelo de S. Jorge, o lisboeta Bairro Azul) e, mais do que isso e apontando à triste deriva do Brasil actual, o novo êxodo de lá para cá em nome da segurança e da liberdade de respirar à vontade.
Essa Gente foi editada pela Companhia das Letras e custa uns 15,9 bem empregues euros.
* Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014) e Essa Gente(2019).