15 dezembro 2019

ESSA GENTE (romance de Chico Buarque)

Muito bom, é o que merece dizer-se de Essa Gente, o último romance de Chico Buarque, aparecido nas bancas portuguesas já no começo deste Dezembro de 2019. Essa Gente lê-se dum sopro, seja porque a extensão do volume é breve, seja porque o enredo cativa o leitor com celeridade e se, nas primeiras páginas, nos sentimos intrigados com quem é quem, rapidamente somos enrolados na trama do que está a ser contado e do que irá acontecer. 
Dizia Nabokov que cada escritor tem uma constância e um fôlego próprio em termos do número de páginas dos seus livros: uns andam na casa das 300, outros ficam-se nas 250, e por aí fora. Chico Buarque tem sido, nos seis romances que nos deu até hoje*, um autor de tipo breve, despacha o que tem a dizer, em média, em 150 páginas.
Essa Gente é, para mim, o mais bem-humorado dos romances de Chico Buarque, lê-se como um divertimento, apesar de nem tudo serem rosas por ali. Não quer dizer que o humor não esteja sempre presente nos seus livros (o sentido de humor é uma das características mais aparentes da sua personalidade), mas nalguns deles ele era mais ácido ou mais abafado por outros humores sombrios, não se tornando a corda que sussurra ao longo da história. Neste último livro, o bom-humor vibra em permanência e fica-se com a sensação de que se terá divertido 'um monte' durante o processo.
Essa Gente trata o clássico tema do artista em crise de inspiração, assunto glosado por muita gente, da escrita ao cinema. Há um Duarte que quer escrever e não consegue e o universo das pessoas que giram em torno dele, umas antigas e outras novas, e que o livro, sob a forma de entradas de diário, cartas, telefonemas e, até, notícias de jornal, vai sugando para dentro do enredo. Há mulheres, muitas mulheres, Chico sempre se fascinou muito com elas e sempre as cantou e interpretou nos seus livros e canções.
E há, como de habitual nos seus livros, o personagem principal meio confuso, meio perdido, meio flutuante, e a obsessão com o processo criativo da escrita, e um cuidado amoroso em regar palavras da língua que mal são já usadas, mas de que não desiste nem nos livros nem nos poemas das canções: lépida, verazes, veros... O que não impede que Essa Gente, talvez mais do que em livros anteriores, esteja juncado de termos do calão brasileiro, semeado de americanices, e do aportuguesamento instantâneo de palavras canibalizadas a outras línguas.    
Chico aproveita o livro para dizer muita coisa, para mandar recados e clarificar o que pensa em relação a vários assuntos que, ao contrário de outros artistas, não se apressou a vir afirmar na comunicação ou nas redes sociais: é claríssimo o que pensa do estado actual do Brasil e do tipo de gente que o governa, e lá estão as armas a mais, a violência policial a mais; a supremacia tribal e desprezível, o isolamento esquizoide dos poderosos; as queimadas na Amazónia e as fortunas feitas à falta de sombra disso; a corrupção da Justiça; o abismo económico e social entre quem mora nas favelas e nos condomínios fechados, gap que o personagem principal se entretém a saltar. Há também, dispersos pelo livro, recados às feministas radicais que - em modo de leitura e interpretação bastante estúpido - o sinalizaram como machista em canções do seu último disco (Caravanas, 2017). E não apenas recados: Chico Buarque diverte-se a confundi-las, a elas e aos outros que vivem obcecados por detectar incorrecções nos posicionamentos sobre sexo, género ou a falta dele.  
Finalmente, apesar de mais poder ser dito em louvor, Essa Gente é o livro de Chico Buarque em que a presença, a familiaridade com Portugal é mais vincada: estão lá os poetas (Pessoa e Camões), estão lá os apontamentos geográficos (o Castelo de S. Jorge, o lisboeta Bairro Azul) e, mais do que isso e apontando à triste deriva do Brasil actual, o novo êxodo de lá para cá em nome da segurança e da liberdade de respirar à vontade.
Essa Gente foi editada pela Companhia das Letras e custa uns 15,9 bem empregues euros.

Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014) e Essa Gente(2019). 

06 dezembro 2019

THE IRISHMAN - Velhos amigos

Esquerda para a direita: Joe Pesci, Al Pacino, Martin Scorsese,
Harvey Keitel e Robert de Niro, 2019. 
Quando se pensava que, na sequência da trilogia O Padrinho (The Godfather I, II, III, 1972/1974/1990), do filme Tudo Bom Rapazes (Goodfellas, 1990) ou da série Os Sopranos (The Sopranos, 1999/2007) - cada um excelente à sua maneira e na época respectiva - quando se achava que tudo estava dito sobre a Mafia e os mafiosos, eis que Martin Scorsese, aos 77 anos de idade, nos presenteia com uma obra-prima que volta a glosar o tema.
Não só estritamente a Mafia, pois o filme aborda e explora ainda as ligações entre famílias de diferentes proveniências (italianos, judeus, irlandeses), entre estas e os sindicatos (Jimmy Hoffa) e entre todos e a alta esfera da política, assumindo sem rebuços ter sido a Máfia (italiana) quem esteve por trás do assassinato de JF Kennedy, presidente dos Estados Unidos, e do seu irmão Robert, procurador-geral dos Estados Unidos e encarado como grande ameaça por mafiosos e sindicalistas.
Como se não fosse já bastante, para nos contar a história o filme fá-lo a partir do ponto de vista de dois velhos mafiosos (Robert de Niro e Joe Pesci), em viagem com as respectivas esposas, e vai-a desenrolando sabiamente através da irrupção das memórias visuais de Robert de Niro sobre o seu trajecto na vida. É, igualmente, uma narrativa sobre o envelhecimento e a inutilidade do poder e da violência, pois uma das vagas que há-de vir a seguir afogar-nos-á e tudo termina na solidão e na impotência do costume: os temidos e poderosos de outrora acabam num lar de terceira idade, sem visitas, como qualquer beneficiário da pensão mínima. A inevitável invencible defeat, como se lhe referia Leonard Cohen.
Com a duração longa das três horas e meia (invocando a respiração pausada das anteriores sagas do The Godfather), o filme contou com um orçamento superior a 100 milhões de euros e foi produzido em exclusivo para a Netflix, o que significa que, pelo menos para já, só pode ser visto na TV e para quem tem acesso a este canal.
O argumento é excelente, a fotografia é excelente, o ritmo da história narrada é perfeito. Os actores são magníficos, com especial menção para Joe Pesci, maravilhoso num papel tão contido e distante da sua persona cinematográfica mais habitual que demorámos a reconhecê-lo. Magnífico, também, o grande Robert de Niro, bloqueado no interior da sua personagem, um ser que aceita o que lhe é imposto sem o questionar e onde só os olhos, aqui e ali, traduzem a sua aflição e impotência perante o mundo esmagador para o qual o irlandês do título resvalou quase por acaso. Al Pacino, no papel de Jimmy Hoffa, é uma estrela pálida em relação aos dois anteriores e mantém-se colado ao modo histriónico e algo rígido a que nos habituou ao longo dos anos. No ecrã aparece ainda, entre outros óptimos actores, o excelente, e também aqui dificilmente reconhecível, Harvey Keitel, e também Steven Van Zandt - Silvio Dante nos Sopranos, que, na série, imitava Al Pacino no Padrinho para gáudio dos mafiosos do Bada Bing - contribui, num curto papel, para o elenco e para uma piscadela de olho ao portento e novidade que foi a série de David Chase em termos de narrativa cinematográfica usando a TV.
Bob Dylan e Robbie Robertson.
Uma última palavra para a banda sonora, excelentemente conseguida como em todos os filmes de Scorsese, um amante de música, que volta aqui à mesma receita da maioria dos seus outros filmes, preferindo - em detrimento de música composta para o filme - usar uma sequência caprichada de música popular da época retratada. Em The Irishman, o realizador decidiu entregar a responsabilidade da escolha e do tratamento musical a Robbie Robertson, o mítico guitarrista dos The Band, a banda que acompanhou Bob Dylan ao longo de vários anos (1965-1969) e de que, aliás, Scorsese imortaliza o último concerto em The Last Waltz, o filme de 1978. 
Velhos amigos! The Irishman é um filme que reflecte também a passagem do tempo, o amadurecimento e a amizade de quem espreita por trás das câmaras. 


PS: Entretanto, os três críticos de cinema em serviço no jornal O Público classificaram o filme com uma nota (média) de 3,3 em 5 estrelas possíveis, isto é: aproximadamente um 'Suficiente'. Gostava de ver o caixote do lixo deles! Os mesmos avaliadores que, em afectivo derretimento nacionalista, classificam amiúde com 4 estrelas um daqueles filmes portugueses impossíveis de tragar, ora porque o argumento é acabrunhante  e frouxo, a fala dos actores deveria ser legendada pois parece que os respectivos realizadores ainda não descobriam as regras da captação de som ou os mistérios da pós-sincronização; a iluminação deixa barbas de sombra pelas paredes e pelos cantos; a representação dos actores é tão débil e sem orientação que estes vegetam pelos cenários como zombies, declamando as falas como se fossem rãs estimuladas com choques elécticos.