HOJE EM DIA, discoteca é local onde se
vai dançar e boîte é casa de putas,
mas quando era novo uma discoteca era uma loja onde se compravam discos e uma boîte um local onde se ia dançar.
Frequentei muito as primeiras (a dos discos) e bastante menos as segundas, mas
em todo o caso...
A primeira boîte onde me lembro de ter entrado foi a Kontiki, situada na cave do Hotel
Faro, e na visita iniciática franqueei a porta escondido na sombra
protectora do Sr. Fagulha, gerente dos apartamentos Garantia, sitos à Rua
Conselheiro Bivar, em Faro... Mas permitam-me um certo recuo para que as coisas
surjam como mais claras.
Como por aqui contei ao longo de cinco
folhetins (Vou-te Contar: 29. O Céu da boca a 33. Uma pálida sombra) durante a minha infância e começo de adolescência íamos a
banhos à Praia dos Beijinhos, em Leça da Palmeira; uma praia nortenha, isto é:
ventosa, rochosa e de águas geladas. Mas, de repente, instalou-se em todo o
país a coqueluche do Algarve, região que o Norte do país parecia desconhecer por
completo, como se tratasse de um outro país.
E a minha família desertou de Leça e
rumou ao Algarve, deveria andar eu pelos meus catorze anos. Durante uns dois
anos vogámos tipo ciganos, primeiro pela Praia da Rocha e depois pela
Quarteira, nessa época ainda um longo areal pouco contaminado por cimento armado.
Mas aquelas estadias tinham algo de tristonho: não conhecíamos nem gente nem os
locais, ficávamos instalados em hotéis, tropeçávamos em restaurantes;
tornava-se tudo impessoal e o ambiente familiar dos Beijinhos deixava saudades
a todos, só o azul-ferrete do céu, as noites azul-negro e a água quente do sul
nos faziam hesitar num regresso definitivo às praias do norte.
Acontece que o meu pai, entre outros
locais onde trabalhava, era médico da Companhia de Seguros Garantia, seguradora
que, por razões que desconheço, era proprietária do prédio de apartamentos em
Faro onde funcionava a filial do Algarve, apartamentos que alugava, a preços
razoáveis, para uso estival dos seus funcionários e familiares. De um ano para
o outro mudámo-nos para Faro e assim seria durante todos os meses de Agosto de
longos anos seguintes. Connosco fomos arrastando outra gente: os meus tios (e
com eles os meus primos), amigos dos meus pais e respectiva prole; até um doente
do meu pai, que fabricava panelas de pressão em São João da Madeira lá chegou a
veranear um ano com mulher e filhas, que referíamos entre nós como as meninas
Silampos.
Faro tornou-se rapidamente um sítio de
culto, um local de peregrinação por onde começaram a aparecer os meus amigos,
os amigos dos meus primos e também amigos destes, gente que com sorte e
jeitinho conseguiam tomar um banho num dos apartamentos, ver um jantar no Centenário pago pelo meu pai ou, na pior
das hipóteses, podiam deixar guardados bens perecíveis no frigorífico das
nossas cozinhas, gémeos na prateleira com a melancia que o meu pai ali punha
religiosamente a refrescar e de que, ao fim da noite, sorvíamos ruidosas
talhadas mirando da varanda as varandas iluminada do Hotel Eva, para onde davam
as nossas traseiras.
O rapaz louro e bocejante que aparece
a meu lado na fotografia, sentados no chão do passeio encostado aos
apartamentos Garantia, é o Zé Augusto Amorim, primo dos meus amigos Amorim, que
viria a desaparecer do mapa no final dos anos 70 e ainda hoje o seu destino e
paradeiro são um mistério para toda a gente. Diz-se que terá sido visto a
última vez para os lados de Marrocos. Disperso-me...
No primeiro andar dos apartamentos
Garantia ficava o quartel-general da companhia de seguros propriamente dita, um
escritório gerido pelo senhor Fagulha,
algarvio com pinta de bon vivant
e excelente public relations. Com ele
trabalhavam duas moças na casa dos vintes, Natália e Nídia, sendo esta última o
motivo real para as nossas frequentes descidas ao escritório, a queixar-nos de
uma lâmpada fundida ou que um autoclismo pingava. Nem eu nem os meus primos,
nem sequer os amigos do Porto que por lá caíam, estávamos familiarizados com os
efeitos provocados por temperaturas quase tropicais sobre os decotes e as
rachas das saias das algarvias de gema, ainda para mais contextualizados num
escritório cujas paredes eram forradas a papel prateado estampado com sereias
sem roupa ou resguardo acima das escamas caudais.
Mas isto que conto foi já um pouco
depois, já os 70 rolavam e eu me movia como peixe na água nos recantos mais
escuros da Kontiki e “Lola”, dos
Kinks, era o grande êxito desses agostos. Antes disso, a primeira estadia nos
apartamentos Garantia, teria eu os meus dezasseis anos, foi tão solitária como
os dias da Quarteira e o meu pai, porventura impressionado com o meu isolamento
tímido, pediu, para minha grande vergonha e humilhação, ao Sr. Fagulha que me
ambientasse um pouco pelas redondezas. E este, sem mais, uma noite depois do
jantar pegou em mim e levou-me por uma entrada que havia em frente às traseiras
do Café Aliança até às entranhas da boîte
Kontiki, onde me apresentou ao barman
e anunciou que, sendo eu uma espécie de seu protegido, passaria a ser
frequentador assíduo. Como se não fosse pouco, pagou-me uma cola Canada Dry ao
balcão e rodando sobre o assento do banco alto, enquanto o olhar sabedor e
lúbrico se passeava pela pista de dança, perguntou-me:
“Então, amigo Zé Pedro, agrada-lhe...?”
Limitei-me a acenar com a cabeça,
enterrando a tromba no limão da cola.
Quem explorava a outra boîte mais famosa da cidade era o Hotel
Eva, na altura um hotel novo, com piscina no rooftop e recheado de ingleses e nórdicos. A boîte deles chamava-se Xerazade,
funcionava no rés-do-chão do hotel e, quem não fosse hóspede, podia tentar
passar pelo escrutínio do porteiro através de uma porta que deitava para a rua,
rasgada numa das fachadas laterais do hotel.
Acho que só consegui entrar uma vez no
Xerazade, pois mais do que a façanha
de contornar o porteiro, atemorizava-me, dobrada essa tormenta, o confronto com
aquela reserva de louras, umas angélicas outras distantes, que povoavam em
brancos e dourados o local. Deus do céu, que poderia eu balbuciar a divindades
daquelas e, sobretudo, em que língua e com que sotaque! Não, mais valia a pena
ir refocilar a minha ansiedade no rosado corrediço da melancia.
Há umas semanas estive em Faro,
hospedado no hotel Eva. Na ruela onde eram a entrada traseira do que foi o Café
Aliança não se nota sequer o desnível onde ficava a entrada do Kontiki e a porta para a Xerezade, embora ainda lá esteja, é
agora uma triste e esconsa porta de serviço.
© Fotografias em Faro: (1) Traseiras dos apartamentos Garantia vistas do Hotel Eva, Pedro Serrano, 2010; (2) fotógrafo desconhecido, 1974; (3) Pedro Serrano, 2014.
© Fotografias em Faro: (1) Traseiras dos apartamentos Garantia vistas do Hotel Eva, Pedro Serrano, 2010; (2) fotógrafo desconhecido, 1974; (3) Pedro Serrano, 2014.