26 fevereiro 2014

VOU-TE CONTAR: 64. SEREIAS E OUTROS MOLUSCOS

HOJE EM DIA, discoteca é local onde se vai dançar e boîte é casa de putas, mas quando era novo uma discoteca era uma loja onde se compravam discos e uma boîte um local onde se ia dançar. Frequentei muito as primeiras (a dos discos) e bastante menos as segundas, mas em todo o caso...
A primeira boîte onde me lembro de ter entrado foi a Kontiki, situada na cave do Hotel Faro, e na visita iniciática franqueei a porta escondido na sombra protectora do Sr. Fagulha, gerente dos apartamentos Garantia, sitos à Rua Conselheiro Bivar, em Faro... Mas permitam-me um certo recuo para que as coisas surjam como mais claras.
Como por aqui contei ao longo de cinco folhetins (Vou-te Contar: 29. O Céu da boca 33. Uma pálida sombra) durante a minha infância e começo de adolescência íamos a banhos à Praia dos Beijinhos, em Leça da Palmeira; uma praia nortenha, isto é: ventosa, rochosa e de águas geladas. Mas, de repente, instalou-se em todo o país a coqueluche do Algarve, região que o Norte do país parecia desconhecer por completo, como se tratasse de um outro país.
E a minha família desertou de Leça e rumou ao Algarve, deveria andar eu pelos meus catorze anos. Durante uns dois anos vogámos tipo ciganos, primeiro pela Praia da Rocha e depois pela Quarteira, nessa época ainda um longo areal pouco contaminado por cimento armado. Mas aquelas estadias tinham algo de tristonho: não conhecíamos nem gente nem os locais, ficávamos instalados em hotéis, tropeçávamos em restaurantes; tornava-se tudo impessoal e o ambiente familiar dos Beijinhos deixava saudades a todos, só o azul-ferrete do céu, as noites azul-negro e a água quente do sul nos faziam hesitar num regresso definitivo às praias do norte.
Acontece que o meu pai, entre outros locais onde trabalhava, era médico da Companhia de Seguros Garantia, seguradora que, por razões que desconheço, era proprietária do prédio de apartamentos em Faro onde funcionava a filial do Algarve, apartamentos que alugava, a preços razoáveis, para uso estival dos seus funcionários e familiares. De um ano para o outro mudámo-nos para Faro e assim seria durante todos os meses de Agosto de longos anos seguintes. Connosco fomos arrastando outra gente: os meus tios (e com eles os meus primos), amigos dos meus pais e respectiva prole; até um doente do meu pai, que fabricava panelas de pressão em São João da Madeira lá chegou a veranear um ano com mulher e filhas, que referíamos entre nós como as meninas Silampos.
Faro tornou-se rapidamente um sítio de culto, um local de peregrinação por onde começaram a aparecer os meus amigos, os amigos dos meus primos e também amigos destes, gente que com sorte e jeitinho conseguiam tomar um banho num dos apartamentos, ver um jantar no Centenário pago pelo meu pai ou, na pior das hipóteses, podiam deixar guardados bens perecíveis no frigorífico das nossas cozinhas, gémeos na prateleira com a melancia que o meu pai ali punha religiosamente a refrescar e de que, ao fim da noite, sorvíamos ruidosas talhadas mirando da varanda as varandas iluminada do Hotel Eva, para onde davam as nossas traseiras.  
O rapaz louro e bocejante que aparece a meu lado na fotografia, sentados no chão do passeio encostado aos apartamentos Garantia, é o Zé Augusto Amorim, primo dos meus amigos Amorim, que viria a desaparecer do mapa no final dos anos 70 e ainda hoje o seu destino e paradeiro são um mistério para toda a gente. Diz-se que terá sido visto a última vez para os lados de Marrocos. Disperso-me...
No primeiro andar dos apartamentos Garantia ficava o quartel-general da companhia de seguros propriamente dita, um escritório gerido pelo senhor Fagulha,  algarvio com pinta de bon vivant e excelente public relations. Com ele trabalhavam duas moças na casa dos vintes, Natália e Nídia, sendo esta última o motivo real para as nossas frequentes descidas ao escritório, a queixar-nos de uma lâmpada fundida ou que um autoclismo pingava. Nem eu nem os meus primos, nem sequer os amigos do Porto que por lá caíam, estávamos familiarizados com os efeitos provocados por temperaturas quase tropicais sobre os decotes e as rachas das saias das algarvias de gema, ainda para mais contextualizados num escritório cujas paredes eram forradas a papel prateado estampado com sereias sem roupa ou resguardo acima das escamas caudais.
Mas isto que conto foi já um pouco depois, já os 70 rolavam e eu me movia como peixe na água nos recantos mais escuros da Kontiki e “Lola”, dos Kinks, era o grande êxito desses agostos. Antes disso, a primeira estadia nos apartamentos Garantia, teria eu os meus dezasseis anos, foi tão solitária como os dias da Quarteira e o meu pai, porventura impressionado com o meu isolamento tímido, pediu, para minha grande vergonha e humilhação, ao Sr. Fagulha que me ambientasse um pouco pelas redondezas. E este, sem mais, uma noite depois do jantar pegou em mim e levou-me por uma entrada que havia em frente às traseiras do Café Aliança até às entranhas da boîte Kontiki, onde me apresentou ao barman e anunciou que, sendo eu uma espécie de seu protegido, passaria a ser frequentador assíduo. Como se não fosse pouco, pagou-me uma cola Canada Dry ao balcão e rodando sobre o assento do banco alto, enquanto o olhar sabedor e lúbrico se passeava pela pista de dança, perguntou-me:
“Então, amigo Zé Pedro, agrada-lhe...?”
Limitei-me a acenar com a cabeça, enterrando a tromba no limão da cola.
Quem explorava a outra boîte mais famosa da cidade era o Hotel Eva, na altura um hotel novo, com piscina no rooftop e recheado de ingleses e nórdicos. A boîte deles chamava-se Xerazade, funcionava no rés-do-chão do hotel e, quem não fosse hóspede, podia tentar passar pelo escrutínio do porteiro através de uma porta que deitava para a rua, rasgada numa das fachadas laterais do hotel.
Acho que só consegui entrar uma vez no Xerazade, pois mais do que a façanha de contornar o porteiro, atemorizava-me, dobrada essa tormenta, o confronto com aquela reserva de louras, umas angélicas outras distantes, que povoavam em brancos e dourados o local. Deus do céu, que poderia eu balbuciar a divindades daquelas e, sobretudo, em que língua e com que sotaque! Não, mais valia a pena ir refocilar a minha ansiedade no rosado corrediço da melancia.
Há umas semanas estive em Faro, hospedado no hotel Eva. Na ruela onde eram a entrada traseira do que foi o Café Aliança não se nota sequer o desnível onde ficava a entrada do Kontiki e a porta para a Xerezade, embora ainda lá esteja, é agora uma triste e esconsa porta de serviço.

© Fotografias em Faro: (1) Traseiras dos apartamentos Garantia vistas do Hotel Eva, Pedro Serrano, 2010; (2) fotógrafo desconhecido, 1974; (3) Pedro Serrano, 2014.


23 fevereiro 2014

ÚNICO


Meu filho único
É único
Como só as coisas sem par
Aquelas que gostaríamos
De levar a dobrar, mas
De todo não podemos, pois
“É o único que temos...”
E não o podemos deixar
Por menos
Porque é único



© Fotografia de Pedro Serrano, Kamakura (Japão), 2006.

19 fevereiro 2014

GAVINHA SÉPIA

© Fotografia de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Fevereiro 2014.

15 fevereiro 2014

QUEM DERA QUE AS MINHAS PALAVRAS

Quase o adivinhei quando, já no final, o vi dirigir-se ao púlpito e desdobrar duas folhas de papel A4... Duas folhas, a serem ditas por um filho, num ambiente tão emotivo – o tipo não ia conseguir.
Antes disso, os netos mais velhos tinham subido ao mesmo púlpito e lido algumas passagens dos livros sagrados de um modo impecável, numa dicção clara, pausada, serena. Mas eram apenas algumas linhas de um texto impessoal, escrito por terceiros há uns milhares de anos! Ele deve ter pensado que iria conseguir o mesmo desempenho, esqueceu-se que as suas eram palavras íntimas, que era um ror de duas páginas...
Por mim, já tinha tido tempo para tomar o pulso ao ambiente emocional, estava na quarta ou quinta fila e dali via tudo o que se passava: o padre lá à frente, o caixão entre ele e a assistência; a família mais chegada nas primeiras duas filas de bancos, à direita do padre. Havia, do outro lado da nave, um violoncelo e uma guitarra acústica que, em pontos determinados, tocavam qualquer coisa; a meio da cerimónia fez-se ouvir a belíssima Área para violoncelo em sol, de Bach. E quando a música nos brindava as lágrimas brotavam, silenciosas e lentas, nos olhos das filhas, das netas; eu próprio – remotamente ligado ao grosso daquele rebanho – dava comigo a olhar para a abóboda da Basílica a tentar retê-las no bordo da pálpebra inferior.
Engraçado como sendo a música algo tão abstracto se presta tão bem e de forma tão imediata a canalizar emoções, a servir-lhes de transporte. Estas e outas coisas soltas ia alinhavando à medida que o meu pensamento fazia gincana por entre as palavras do padre sobre o defunto e fugia, ascendia, ascendia àquele espaço imenso por cima das nossas cabeças.
Sim, estivera com ele e com a mulher (Dona Maria Helena) várias vezes em casa da minha sogra, sobretudo em natais – durante alguns anos eles costumavam ir lá uma das noites e eu via-os sempre chegar com uma curiosidade mesclada de compaixão, pois ouvia-se dizer que no outro dia,  aquele em que não estavam ali e ficavam em casa, comeriam como se fosse outro dia qualquer, podiam até mandar vir piza pelo telefone! Quem se desalentava com esse desapego pela comida dos pais era a filha Margarida, minha cunhada e um bom garfo por degeneração do ADN.
Sim, recordava-os dos encontros de festa em Cascais, mas, curioso, a minha memória mais vívida dele datava da China, há, exactamente, vinte anos atrás! Era Dezembro de 1993, eu acabara de chegar, em trabalho. Nessa época Macau ainda era território português e não era servido pelo aeroporto que os portugueses construiriam antes de passar aquele pedaço de terra a Pequim; tornava-se necessário apanhar um jetfoil entre Hong Kong e Macau. Estava precisamente no porto de Hong Kong à espera do ferry quando ouvi um ruído de pás de helicóptero ali ao lado e um certo borburinho. E então vi-os aos dois, a ele e à Dona Maria Helena, e percebi que eram o centro da agitação, compreendi serem eles que iam tomar aquele transporte especial para Macau, posto à disposição do Provedor de Justiça de Portugal. Ao reconhecerem-me na sala de espera, tão longe da sala de estar de Cascais, ficaram tão surpreendidos como eu, quiseram saber ao que ia, desejaram-me uma boa estadia e lá se foram por sobre o rio das Pérolas, ascendendo, ascendendo...

Entretanto o padre dava por terminada a cerimónia, perguntou se alguém da família queria dizer alguma coisa e o filho subira ao púlpito, tirara do casaco uns papéis. Quando os desdobrou e percebi que eram duas folhas quase adivinhei que... O texto era um visão muito pessoal, quase íntima, do pai, do trajecto de vida, da mãe que morrera, também ela, há três anos atrás... E depois aconteceu aquilo que acontece nestas situações e que a vontade não é senhora de controlar ou contornar: uma mão de férreo veludo aperta-nos a garganta e não há volta a dar, não se consegue continuar, como se a emoção se concentrasse toda a afogar as cordas vocais. Ele ainda tentou chegar até ao fim, mas as duas irmãs avançavam já até ao púlpito e, ladeando o irmão sufocado, uma delas concluiu as palavras por dizer.

Título tirado do livro de Job: “Job tomou a palavra e disse: ‘Quem dera que as minhas palavras fossem escritas num livro, ou gravadas em bronze com estilete de ferro, ou esculpidas em pedra para sempre!’.”

© Fotografias de Pedro Serrano, Lisboa, Fevereiro 2014.


10 fevereiro 2014

100.001

Insensivelmente, daqui a um mês semcompromisso.com atingirá os 4 anos de existência e lá apareceria eu, primavera à porta, com um ramalhete de estatísticas para partilhar com os meus amáveis ouvintes uma febre dos fenos, uma rinite alérgica.
Felizmente que um outro fenómeno atmosférico intercepta o anterior de forma antecipada, o que poupará toda a gente à enumeração dos textos que tiveram mais leitores; o dizer que Coração Independente atingiu as 4.040 leituras electrónicas, etc. e tal.
Durante o fim de semana, distraído que andava a fechar janelas com a aproximação do furação Stephanie, não me dei conta do momento, da hora, do dia em que este blog atingiu as 100.000 visitas!
Cem mil é um número que impressiona, mesmo tendo em conta que no universo dos blogs este é um de pequenas dimensões. Mas consolo-me com o facto de ao fim de um ano de vida o blog ter tido 10.000 visitas (veja o texto Now they know how many holes it takes); que ao fim de dois andava pelas 36.000 (veja Os Anéis de Saturno) e que ao atingir o terceiro aniversário (veja 1 + 1 + 1 = 3) esse número era de 76.000. Porra, lá resvalei eu, como um secretário de estado em aperto televisivo, para a paliçada das estatísticas.
Não era isso que queria deixar como última palavra, caras leitoras. Era antes mais, parafraseando os bem-falantes em dia de inauguração, deixar aqui um Grande Bem-Haja pela vossas visitas e generosos comentários. E, olhem, a rubrica mais famosa deste cantinho da rede é Vou-te Contar, que em cada um dos episódios acumula sempre um número de visitas....
“Está calado, carago! Prometeste que não lhes atiravas com resmas de números!”
“Eu sei, eu sei; já terminei...”
© Fotografia de Pedro Serrano, Kamakura (Japão), 2006.


07 fevereiro 2014

MALANDRICES

Gosto muito de arroz de polvo, seja ele seco ou molhado, mas prefiro o molhado e, por essa razão, quando num restaurante um menu me tenta com esse prato pergunto sempre ao empregado:
“O arroz de polvo é malandro?”
“Malandro” é o termo que se usa no Norte para arroz que nos é servido a nadar em água e onde os bracinhos do polvo, apesar de mortos e amputados, ainda podem brincar a que se escondem por detrás das anémonas do tomate ou das algas da salsa e dos coentros.
Pois no outro dia, penso que foi a sul do Tejo, perguntei se o arroz era malandro e a empregada retorquiu com um:
“Como...?”
Lá lhe expliquei, e ela:
“Ah! Aqui dizemos corredio...”
Ontem, em Faro, o mesmo espanto do empregado perante pergunta idêntica.
“Se é solto”, explicava eu, “se é seco ou vem com muito molho... Como é que vocês dizem aqui?”
“Caldoso...”, respondeu o homem puxando de um sinónimo igualmente apropriado.
“Então, é isso mesmo...”, respondi eu, fechando o menu com assertividade.


Nota: Quanto ao arroz da foto (© Pedro Serrano, 2012, foto e cozinhado), é de lingueirão, mas não tinha aqui nenhum retrato de arroz de polvo à mão de semear.