20 março 2011

VOU-TE CONTAR: 33. Uma pálida sombra


 Era a última manhã desse mês de Agosto em Leça da Palmeira e seria também, embora nenhum de nós  o soubesse ainda, a última vez que alugávamos casa de praia em Leça. No Agosto seguinte, explicava a minha mãe à D. Gumercinda, que na barraca ao lado da nossa reflectia sobre o ponto de cruz:
“Talvez tentemos o Algarve, dizem que as praias são maravilhosas e a temperatura da água do mar imbatível...”
A D. Gumercinda, esposa do Dr. Rufino, já ouvira falar de todas essas amenidades, mas, com os relatos do Algarve, chegara-lhe também o rumor de que os modos eram mais livres nas praias do Sul, cheias de estrangeiros do Norte da Europa, o que lhe causava temor na influência que poderiam ter sobre a Gracinha, a filha adolescente.
O dia amanhecera condizente com um último dia, uma despedida. Intermitente, a ronca bramia como um cão abandonado e uma camada de névoa, da cor de água de cal, recuava a custo em direcção ao mar, revelando o vulcânico soturno das rochas que ladeiam a minúscula baía da Praia dos Beijinhos. A girar, perdido na bruma, o sol palpitava fraco, alumiando o horizonte de um azul anémico que mal sublinhava o contorno das nuvens que se esfiapavam no céu sob a nortada.
“Uma sombra do que foi!”, a minha mãe caracterizava o fim da época balnear à D. Albertina, que, encaixada numa cadeira de praia ao lado da cunhada, a D. Gumercinda, tricotava furiosamente, “já se sente o Outono no ar...”
Sentado na areia, dois metros à frente da minha barraca para sublinhar que não tinha nada a ver com aquela gente, eu cobria os pés com punhados de areia fina, enquanto esperava, numa disposição saturnina, que chegassem as raparigas das barracas da ala direita da praia.
Verão de 1967, no número um dos tops está a canção “A Whiter Shade of Pale”, dos Procol Harum. Fizera 14 anos, mal podia fazer a barba por falta de espaço para mover a lâmina entre as colinas de acne, e não podia andar mais nos baloiços da praia. Conhecera esse choque no Verão anterior quando, em Viseu, correra alegremente para a roda de cavalinhos de madeira do parque infantil, um local amigo em frente ao Hotel Grão Vasco. Mal dera lanço à roda e pusera em frenesi duas miudecas que vegetavam nos assentos, um guarda aproximou-se e, com uma pronúncia a frigir de sshs:
“Estáss a asssustar asss meninasss. Não achass que já éss demasiado matulão para isto?”
Agora, na Praia dos Beijinhos, onde não havia guardas nem nenhum cartaz afixado com o limite “12 anos”, não queria passar por humilhação semelhante. Segurava-me e limitava-me a olhar de lado o baloiço vazio, que continuava a chamar por mim no doce balanço habitual.
Entretanto, as raparigas tinham chegado. As barracas delas estavam agora tomadas por um frenesi de cestos, roupões, toalhas e sapatos espalhados. Assisti, impotente, em alerta súbito e com o coração a entupir-me a garganta, à pala frontal de uma das barracas a ser baixada: era o momento de elas vestirem os fatos de banho... Mas nada, elas calafetavam as frestas com todo o cuidado e já saíam cá para fora completamente artilhadas!
Começávamos por nos reunir em frente às barracas delas, muito mais do que às nossas, e ficávamos ali a jogar ao prego. Depois, à medida que as mães, as tias ou as empregadas se iam esquecendo de nós, íamos deslizando para a parte de trás das barracas, um corredor de localização sombria em que a areia estava sempre húmida e o ar cheirava vagamente a urina, pois era onde se iam aliviar os aflitos que não tinham tempo ou disposição para se deslocar uns metros até ao quarto-de-banho oficial da praia. Mas, apesar destes inconvenientes, o local era recoberto de vantagens: escapávamos por momentos ao controlo e coscuvilhice dos adultos, podíamos nós espreitar e controlar o que se passava na praia (escavando a areia e levantando um pouco do pano das traseiras da barraca) e, até, pelo mesmo método, assaltar as provisões de comida guardadas num canto do fundo da barraca. 
Mas, por muito que nos esforçássemos por tentar uma vida autónoma dos adultos, as nossas tentativas eram sistematicamente rebentadas pela rede que,  parecendo observar o mar, se entretinha com o que se passava em terra.
“Sabes que andei no colégio com a tia e a mãe da tua amiguinha...?”, esclarecia a minha mãe mal eu me aproximava da barraca para esperar a mulher que vendia os bolos e se aproximava pelo areal.
“Qual amiguinha? Não tenho amiguinha nenhuma!”
“Oh, retorquia ela numa simplicidade odiosa, “aquela lourinha engraçadinha com quem estiveste a manhã inteira a jogar o prego...”
Cabisbaixo, ficava por ali sentado, a verter punhados de areia nos tornozelos, olhando os pés como se fossem o fundo de uma ampulheta. Ao lado, a minha mãe, enquanto recebia da Clarinha o porta-moedas para pagar os bolos à vendedeira, comentava para a D. Gumercinda:
“De quem eu era mesmo amiga, era da tia dela, que andava na minha sala. A mãe, era dois anos mais nova, andava noutra turma, via-a mas nunca tive grande intimidade... Quem andava também no Colégio era uma prima direita delas, que morava em S. Mamede Infesta, uma beldade – metia as primas num chinelo. Olhe, estive anos e anos sem a ver, mas encontrei-a outro dia na Casa Tamegão, a escolher uma cafeteira italiana de café. Coitada, até me fez impressão: está um caco, uma pálida sombra do que era!”  


© Fotografias (de cima para baixo): (1) Leça da Palmeira, anos 60, fotógrafo desconhecido; (2) fotografia de Pedro Serrano, Praia do Titã (Matosinhos), 2010.
     
             "A Whiter Shade of Pale", Procol Harum, 1967.

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