06 março 2011

VOU-TE CONTAR: 32. Os cotovelos de Maria



Ontem à noite fomos ao centro paroquial, pegado à igreja de Leça, ver um filme. Estava a sonhar com isso quando a Maria me acordou naquele jeito bruto de chamar o meu nome aos berros, destapar-me e puxar-me pelos pés. Deu cabo de tudo e o sonho evaporou-se tão depressa que, embora tenha ficado na cama uns bons minutos a remoer, não consegui lembrar-me mais do que me estava a acontecer nele.
Chateado, levantei-me e abri as portadas. Olhar lá para fora foi igual a estar a ver através de um copo de leite frio! Um nevoeiro grosso não deixava ver mais do que o outro lado da rua e um cão amarelo a olhar-me do passeio com aquele ar desolado que os cães às vezes têm.
“Nem sequer se vai poder sair”, gritei em direcção ao corredor, “para que têm a mania de me acordar tão cedo?!”
Não obtive resposta ou porque não ouviram, ou porque não me ligaram e, então, resolvi explorar a profundidade daquele silêncio o que me permitiu cortar uma gorda lasca de goiabada sem ser apanhado de imediato. Ainda a engoli-la, corri para o quarto de banho e lavei os dentes sempre a olhar pelo espelho. Consegui acabar antes e, quando a minha mãe entrou a dizer “ah, estás aqui”, já eu tinha fingido que lavara a cara e estava a secá-la na toalha.
“Pus roupa no teu quarto. Veste-te e arranja as tuas coisas, que vamos para a praia no fim do pequeno-almoço.”
“Mas não se vê nada lá fora, vai estar um gelo!”
“Não vai nada, é só uma ponta de nevoeiro – vai levantar. Ouvi no rádio, dizem que vai estar um dia fantástico...”
Vesti-me e fui despejar o resto de água de mar do baldinho azul: o camarão desapareceu logo, mas o peixe ficou ali a nadar como se estivesse num aquário com forma de retrete. Mijei-lhe em cima e puxei o autoclismo – com sorte, se o mijo não o intoxicasse, ainda ia parar outra vez ao mar. Meti a toalha, o balde, a pazinha, o espelho da Clarinha e o meu canivete no saco e fui ter com elas à cozinha onde já estavam todas sentadas à mesa a falar e a comer grossas fatias de regueifa com manteiga.
“Quero regueifa com goiabada”, pedi.
Quando saímos desta casa e a porta se fecha, a mão de metal que se usa para bater e chamar dá sempre um safanão e bate à porta, o que me faz impressão, pois é como estar a bater a uma casa onde já sabemos que não está ninguém! A quem pode ser dirigido tal batimento que não seja a um ser invisível, tipo bruxa?! Mas, era o que queria dizer quando falei nisso, logo que a porta se fechou sobre nós senti subir pelo nariz aquele cheiro que, em dias especiais, vem directo do mar e parece uma mistura de nortada, sal e algas. A minha mãe disse:
“Olhem só este cheiro a maresia! Faz-me sempre lembrar quando era menina e ia para a Barrinha de Esmoriz... Dizem que tem muito iodo!”
E como eu me detivesse uns metros mais abaixo, a fazer umas festas no cão amarelado, ela espicaçou-me:
“Vá, anda, olha que a maré vai estar vasa...”
E a minha irmã Clarinha, que é uma estúpida e tem de repetir tudo o que se disse, acrescentou:
“Anda, olha que a maré vai estar vasa...”
Demorámos imenso tempo de casa à praia, dá-se mesmo conta disso aos fins de semana quando vamos no carro do meu pai e é um instante. A pé, temos de descer a rua toda, chegar à avenida marginal, virar à direita e percorrer toda aquela extensão de passeio até à praia dos Beijinhos, que é a penúltima antes da praia Azul aos pés do farol da Boa-Nova.
A minha mãe tinha razão e a maré está completamente vasa, o mar anda lá ao fundo, tão longe e misturado no nevoeiro que praticamente só se ouve. Deixaram-me ir para as pocinhas das rochas com a condição de ter muito cuidado e prometer que não molhava as mangas da camisola, tenho de a levar vestida pois ainda está frio para ir só de fato de banho. De qualquer modo, mandou a Maria estar por perto e ela fica ali na borda da água, sem fazer nada, a molhar os pés.
A maré vasa é o que eu gosto mais no mar, é quando se pode estar sossegado, apanhar estrelas do mar e bichos que não se esperam e ver as pocinhas com atenção; pode-se estar um dia inteiro só a ver o que há em duas ou três pocinhas, isto é, podia-se se depois a maré não começasse a encher! Há muitos tipos de pocinhas, umas são minúsculas outras enormes, umas rasas e outras fundas, umas quase só tem areia e água, outras têm tanta coisa como se fossem um mar inteiro. Destas, as melhores são as que estão mais no meio das rochas, já encostadas às últimas pedras antes do mar aberto. São as melhores, mas as que metem mais medo lá estar. De repente é como se o mundo todo desaparecesse e estivéssemos sozinhos com um mar que está ali a lamber as rochas todo ajuizado, mas que se pressente ser fundo e não acabar mais. Daqui, em pé, já só vejo até aos cotovelos da Maria.
De cócoras, com todo o cuidado, agarro-me com uma mão à ponta de uma rocha e espreito: em baixo, a uma distância mais curta do que a minha, começa o mar aberto. A água tem transparência na parte de cima, mas, se se olhar na vertical, fica rapidamente azul-escura e depois perde-se numa cor que parece negro mas nem é bem isso, é de ser tão sem pé. Quando bate na rocha e recua faz um ruído como se estivesse a chupar tudo, como um desentupidor gigantesco. Se não tivesse toda a cautela ou me desse a loucura de saltar, bastava um passo e tombava naquela água, morria. Há tantos sítios onde se pode morrer a qualquer momento! Dei um passo atrás, subi acima de uma rocha, olhei para trás e lá está a areia e a linha das barracas, às listas vermelhas e brancas, umas, às listas azuis e brancas, outras, também há verdes. Vejo a minha mãe lá muito ao fundo, percebo que é ela pois tem aquele chapéu esquisito e a minha irmã pequenina sentada no colo. Quanto à Maria, continua ali a chapinhar na borda da água, a olhar para o mar como se dali pudesse aparecer alguma coisa que lhe sirva! Podia afogar-me mil vezes que ela nem dava conta e o meu pai despedia-a num abrir e fechar de olhos!
Nesta rotação, quando baixei de novo os olhos, topei com uma poça maravilhosa, daquelas como gosto: funda, mas não que não tenha pé se entrar nela; sem areia, por estar longe do areal e o mar que a alimenta ser tão fundo que já não a consegue cuspir àquela altura; para além disso tem uma fenda na rocha, exposta ao sol, quase a rasar a linha de água. Sei bem que aquilo deve estar cheio de caranguejos, embora de momento não veja nenhum. Pudera, sentiram-me chegar, estão escondidos lá ao fundo, na sombra, à espera que me vá. Em total silêncio pousei o baldinho ao meu lado, abri o canivete e tirei o espelho do bolso: vou fazer incidir luz de sol concentrada na fenda da rocha até os pôr a ferver de calor e os obrigar a sair; prevejo uma boa caçada. Mas eles não se intimidam facilmente, a fenda é profunda e o canivete é curto, não vou arriscar os dedos nas pinças deles... Se, ao menos, tivesse aqui uma cana ou um arame... De súbito, vejo uma sombra escorregar da parede para o fundo da poça! Foi uma coisa rápida, tão camuflada, que fiquei na dúvida se terá sido uma nuvem que projectou sombra na água. Viro o pescoço, olho o céu por cima de mim: o nevoeiro evaporou-se, não há uma única nuvem, e o azul do céu é tão intenso e puro que o sinto entrar em mim pelo ar que me enche o peito e me torna leve, tal se os meus ossos tivessem virado pneumáticos como o das gaivotas que planam lá longe.
Quanto à sombra, por exclusão de partes, só pode ser um polvo e a minha sorte nunca foi tanta.  

© Fotografias, de cima para baixo: (1) Composição sobre fotografias de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca 2010 + Lisboa 2010; (2) Zé João Serrano, Goa (Índia), 2003.
  

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