29 maio 2013
27 maio 2013
A ASSASSINA E O COVEIRO
Era pouco depois do almoço e estávamos
os três na varanda à entrada da casa a conversar uma conversa leve de Sábado,
quando ela passou ao fundo dos degraus atravessando o quintal de sul para
norte.
Talvez houvesse algo de furtivo no seu
passar que me fez olhá-la com mais atenção e reparar que, de inesperado, só
aquele curto tufo em forma de leque que lhe sobrava na boca.
De repente percebi o que seria e
gritei ao Ricardo que estava perto dos degraus e a conseguiu apanhar. Apanhada,
não teve outro remédio que não fosse abrir a boca e deixar cair o pequeno
pássaro que transportava aprisionado entre os dentes. O animalzinho, vivo por
uma pena, era muito jovem, possivelmente ave caída do ninho sem saber voar ou
apanhada pela gata logo à primeira tentativa de voo, mesmo antes de se lhe
revelar o impulso ascensional que contraria quem tomba. Salvo, mantinha-se
muito quieto na minha mão, sem tentar fugir ou mexer-se, um pânico instalado no
bater descompassado do coração e nos olhos negros que brilhavam de terror.
“Mia, sua estúpida”, invectivei,
atirando-lhe um torrão de terra para a manter longe de nós, já que rondava
vigiando as nossas distrações e tentando terminar a chacina. Como um desenho
animado, ela fugiu a toda a velocidade, saltando o muro para a vizinha, onde,
com ar despeitado, se colocou em pose de esfinge sob um canteiro de
estrelícias.
Mas nem meia-hora tinha passado e o
passarinho, após um estertor que lhe deixou as patas enclavinhadas e sujou
modestamente a palma da minha mão, finou-se, o brilho dos olhos a recuar para o
desconhecido e um corpo imóvel, à mercê de todos os movimentos que eu lhe
imprimia a tentar detectar vida. Acabámos por o enterrar, ainda morno, na cova
morna que lhe cavámos sob uma roseira vermelha. Levou uma pétala como almofada.
Sacudi as mãos de terra, olhei: a gata continuava, aninhada e amuada, sob as
estrelícias da Dona Luísa.
Ao anoitecer saí para fechar as
venezianas e encontrei na soleira da porta outro cadáver: desta vez era um
pardal cinzento, adulto, com o pescoço destroçado e um colar sanguinolento,
como que a demonstrar que ainda era capaz de cumprir o seu destino de caçadora
e que eu escusava de o tentar contrariar.
A noite esfriou muito e, apesar de
estarmos em Maio, acendi a lareira por uma última vez e, cada um no seu sofá,
fizemos as pazes e esquecemos, por entre o crepitar da lenha, os alvoroços
desse dia.
© Fotografia de Ricardo Ventura, Maio 2013.
Classificação:
ANIMAIS,
ESBOÇOS e RETRATOS
25 maio 2013
O VENTO E A ROSA
Nos Maias, o romance de Eça de Queiroz, a páginas tantas um dos personagens (o poeta Alencar) cita a Carlos da Maia um fragmento de um poema que escreveu e que reza:
Abril chegou! Sê minha
Dizia o vento à rosa.
Este ano, o vento bem que podia uivar por rosas em Abril, que nem um botão lhe responderia. Só em Maio, quando acalmaram as chuvas que nos fustigaram todo o inverno e entraram, até tarde, pela primavera, as rosas desabrocharam no meu jardim. As da foto, que pareciam ter por destino inaugurar o azul da jarra que comprei em Jaipur (e foi transportada no tuk-tuk de Mister Shyam), são primeira colheita e no quintal ondulam à brisa rosas brancas, vermelhas, amarelas e umas outras que se confundem numa quase tonalidade de salmão enquanto hesitam entre o rosa e o amarelo.
© Fotografia de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Maio 2013.
Classificação:
RUMINAÇÕES
14 maio 2013
ANIMAIS NOSSOS AMIGOS
Chamasse-se a firma Tricoelho ou, mesmo, Tetracoelho e eu teria passado pela camioneta como coelho, perdão, como cão por vinha vindimada. Mas aquele Pentacoelho fez-me cismar se o dono da firma, na hora de escolher o nome para a empresa, estaria a ser tão malandro na solução como eu imaginava que ele talvez estivesse a ser...
E como a mente é como o espaço Schengen, isto é, não tem fronteiras, eis que se me vem à tona da memória, embora sem coelhos, a chancelerina, numa imagem tornada famosa pela imprensa e datada do tempo em que os indígenas dos países do Sul ainda não a tinham enchido de cabelos brancos. © Fotografia com coelho da autoria de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Maio 2013.
Classificação:
SOCIEDADE
04 maio 2013
VOU-TE CONTAR: 57. TRAVESSA MUITA, COMIDA POUCA
Um arqueólogo familiar chegaria
rapidamente à conclusão que o silencioso e cortês processo de emancipação do
meu pai, em relação ao seu afirmativo sogro, se fez notar até na tipologia das
empregadas que foram servindo na minha família nuclear.
Quando se casou com a sua princesa,
filha mais velha de um banqueiro, escritor, homem de teatro e pessoa conhecida
na sociedade portuense dos anos 40, o meu pai, um desconhecido das berças
desesperado por clientela clínica, herdou, de imediato, uma casa onde residir,
moradia que se situava do outro lado da rua da mansão onde moravam os meus avós
maternos e da qual a minha avó, sem ter de recorrer a binóculos ou monóculo,
poderia espiar das suas janelas altivas o que se passava nas nossas.
Para além da benesse de casamento com
telhado incluído, os meus pais receberam também no pacote nupcial uma linhagem
de empregadas que eram arrebanhadas no mesmo lote e proveniência das que trabalhavam
em casa dos meus avós. Assim, as muito queridas Tomásia e Cândida que
acompanharam e enriqueceram a minha primeira infância, mantinham intrincadas
relações de parentesco, que nunca entendi muito bem, com as raparigas que
trabalhavam do lado de lá da rua... Pode-se adivinhar, nessa história nunca
escrita, a teia de informações e bem intencionadas conspirações que tudo isto albergava.
Mas era preciso desconhecer o meu pai,
o seu trajecto anterior e a sua obstinação sem propaganda, para acreditar que
ele se moldaria a tal berço de ouro. Lentamente, à medida que a vida lho
permitiu, foi estabelecendo fronteiras
e, juntamente com a exigência de pagar renda mensal ao meu avô pela casa onde
morámos no começo da nossa existência como família, as empregadas contratadas
para nossa casa passaram a ser recrutadas na aldeia do meu pai ou nas suas cercanias:
Natália, Prazeres, Belmira, Maria... Este processo de emancipação culminou com
a construção da nossa casa da Circunvalação, empreendimento que encheu o meu
pai de alegria e excitação ao longo de mais de dois anos e de que um dia destes
falarei aqui com mais detalhe. Para já, tenho ainda cerca de dez anos de idade
e moro na nossa casa mais antiga, cujo portão de entrada é fronteiro ao enorme
portão de madeira com chapéu de telha da casa dos meus avós.
Acabou de ser admitida para nossa casa
uma nova criada: chama-se Maria e veio de Quintela de Queirã, uma aldeia
satélite de Queirã, a aldeia na proximidade de Viseu e de Vouzela onde nasceu o
meu pai. Imagine-se! Se Queirã já é um buraco com uma centena de casas onde nem
uma mercearia, que se possa chamar como tal, existe, imagine-se o que poderá
ser uma terra que, o próprio nome o indica, existe por referência à outra! Toda
esta escanzelada proveniência, eu e a minha irmã Clarinha, que anda pelos
catorze anos, o fazemos sentir à nova rapariga quando, pejorativamente, a
chamámos usando o nome pelo qual descobrimos ser apelidada por lá, na sua
lonjura serrana.
Mas a Maria, cotovia ou não, irá
manter-se longos anos em nossa casa e atravessará connosco a rua para ir morar
na casa nova que o meu pai construirá. E com o tempo foi-se adaptando à cidade,
a nós, e revelando a sua personalidade de mulher inteligente, cujo bom humor e
tiradas rápidas passam a integrar o nosso tesouro doméstico:
“O Sr. Dr. parece uma andorinha
rasteira...”, interpela ela, directamente, o meu pai, ao vê-lo achinelando a
casa aos fins de semana, com o andar preso ao chão que esse tipo de calçado dá
aos pés.
Ou, pousando na mesa uma travessa e
comentando, em desafio à minha mãe que, antes de os ver mirrar pela cozedura,
achara aquele molho de grelos mais do que suficiente como acompanhamento para o
jantar:
“Isto é como os de Vila Pouca:
travessa muita, comida pouca...”
Um dia, como acontecia com elas todas
quando já dominavam as técnicas de confecção da massa tenra ou de cavalgar com
mestria uma tábua de passar a ferro, a Maria casou e regressou a Quintela para
jamais.
Nunca mais a vi, mas no outro dia, ao escrever aqui sobre um jantar de Natal na minha casa mais antiga, ela saltou
directamente da fotografia para a minha saudade.
Nota: A Maria pode também ser encontrada em VOU-TE CONTAR nos episódios número: 30. (A estação das bruxas), 31. Amanhã é longe de mais e 32. (Os cotovelos de Maria).
Nota: A Maria pode também ser encontrada em VOU-TE CONTAR nos episódios número: 30. (A estação das bruxas), 31. Amanhã é longe de mais e 32. (Os cotovelos de Maria).
© Fotografias: fotógrafo desconhecido, Porto, anos 60.
Classificação:
VOU-TE CONTAR
01 maio 2013
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