04 maio 2013

VOU-TE CONTAR: 57. TRAVESSA MUITA, COMIDA POUCA


Um arqueólogo familiar chegaria rapidamente à conclusão que o silencioso e cortês processo de emancipação do meu pai, em relação ao seu afirmativo sogro, se fez notar até na tipologia das empregadas que foram servindo na minha família nuclear.
Quando se casou com a sua princesa, filha mais velha de um banqueiro,  escritor, homem de teatro e pessoa conhecida na sociedade portuense dos anos 40, o meu pai, um desconhecido das berças desesperado por clientela clínica, herdou, de imediato, uma casa onde residir, moradia que se situava do outro lado da rua da mansão onde moravam os meus avós maternos e da qual a minha avó, sem ter de recorrer a binóculos ou monóculo, poderia espiar das suas janelas altivas o que se passava nas nossas.
Para além da benesse de casamento com telhado incluído, os meus pais receberam também no pacote nupcial uma linhagem de empregadas que eram arrebanhadas no mesmo lote e proveniência das que trabalhavam em casa dos meus avós. Assim, as muito queridas Tomásia e Cândida que acompanharam e enriqueceram a minha primeira infância, mantinham intrincadas relações de parentesco, que nunca entendi muito bem, com as raparigas que trabalhavam do lado de lá da rua... Pode-se adivinhar, nessa história nunca escrita, a teia de informações e bem intencionadas conspirações que tudo isto albergava.
Mas era preciso desconhecer o meu pai, o seu trajecto anterior e a sua obstinação sem propaganda, para acreditar que ele se moldaria a tal berço de ouro. Lentamente, à medida que a vida lho permitiu, foi  estabelecendo fronteiras e, juntamente com a exigência de pagar renda mensal ao meu avô pela casa onde morámos no começo da nossa existência como família, as empregadas contratadas para nossa casa passaram a ser recrutadas na aldeia do meu pai ou nas suas cercanias: Natália, Prazeres, Belmira, Maria... Este processo de emancipação culminou com a construção da nossa casa da Circunvalação, empreendimento que encheu o meu pai de alegria e excitação ao longo de mais de dois anos e de que um dia destes falarei aqui com mais detalhe. Para já, tenho ainda cerca de dez anos de idade e moro na nossa casa mais antiga, cujo portão de entrada é fronteiro ao enorme portão de madeira com chapéu de telha da casa dos meus avós.
Acabou de ser admitida para nossa casa uma nova criada: chama-se Maria e veio de Quintela de Queirã, uma aldeia satélite de Queirã, a aldeia na proximidade de Viseu e de Vouzela onde nasceu o meu pai. Imagine-se! Se Queirã já é um buraco com uma centena de casas onde nem uma mercearia, que se possa chamar como tal, existe, imagine-se o que poderá ser uma terra que, o próprio nome o indica, existe por referência à outra! Toda esta escanzelada proveniência, eu e a minha irmã Clarinha, que anda pelos catorze anos, o fazemos sentir à nova rapariga quando, pejorativamente, a chamámos usando o nome pelo qual descobrimos ser apelidada por lá, na sua lonjura serrana.
“Maria cotovia!”
Mas a Maria, cotovia ou não, irá manter-se longos anos em nossa casa e atravessará connosco a rua para ir morar na casa nova que o meu pai construirá. E com o tempo foi-se adaptando à cidade, a nós, e revelando a sua personalidade de mulher inteligente, cujo bom humor e tiradas rápidas passam a integrar o nosso tesouro doméstico:
“O Sr. Dr. parece uma andorinha rasteira...”, interpela ela, directamente, o meu pai, ao vê-lo achinelando a casa aos fins de semana, com o andar preso ao chão que esse tipo de calçado dá aos pés.
Ou, pousando na mesa uma travessa e comentando, em desafio à minha mãe que, antes de os ver mirrar pela cozedura, achara aquele molho de grelos mais do que suficiente como acompanhamento para o jantar:
“Isto é como os de Vila Pouca: travessa muita, comida pouca...”
Um dia, como acontecia com elas todas quando já dominavam as técnicas de confecção da massa tenra ou de cavalgar com mestria uma tábua de passar a ferro, a Maria casou e regressou a Quintela para jamais.
Nunca mais a vi, mas no outro dia, ao escrever aqui sobre um jantar de Natal na minha casa mais antiga, ela saltou directamente da fotografia para a minha saudade.

Nota: A Maria pode também ser encontrada em VOU-TE CONTAR nos episódios número: 30. (A estação das bruxas), 31. Amanhã é longe de mais e 32. (Os cotovelos de Maria).
© Fotografias: fotógrafo desconhecido, Porto, anos 60.

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