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ENTRETANTO NOS ALPES FRANCESES...
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FOTOGRAFIAS
03 janeiro 2016
NÃO VENHAS TARDE: 24. UMA QUESTÃO DE XÁ
3 de Outubro, Teerão
Não é fácil descortinar ou mesmo chegar à porta de entrada do Amir
Kabir! Ao nível do rés-do-chão existe uma grande loja de pneus, o que faz com
que a rua esteja constantemente atravancada por camiões, camionetas e jipes
apoiados em macacos ou com os eixos apoiados em tijolos. O hotel aloja-se num
edifício de três andares, formado por um corpo central de fachada semicircular,
ladeado, em perfeita simetria, por dois corpos de linhas rectas com o mesmo
pé-direito. O todo tem um perfume vagamente colonial, as janelas de madeira,
com bandeira no cimo, pintadas em verde-pistáquio, e uma atmosfera decadente
introduzida pela metamorfose amarela das paredes exteriores que se descascam em
várias tonalidades de cinzento. Interiormente, a toda a altura do edifício, há
um pátio central para onde dão os varandins que circunscrevem cada andar e as
portas dos quartos abrem para esses varandins. O efeito é interessante, pois
espreitando sobre o parapeito, vemos o que se passa lá em baixo, onde fica a recepção
e o bar, e, também, quem nos espreita dos andares superiores. À noite, veem-se
as estrelas: o pátio é aberto no topo superior. No nosso quarto, no primeiro
andar, ficou também alojado o senhor Hiroyuki Suzuki, o japonês que já nos
fazia companhia no Ayasofia e que continua, diligentemente e sempre mudo, a
coser roupa sentado sobre o leito. Parece-me um pouco flipado ou será que os
japoneses são todos assim? A frase preferida dele é “I see” e usa-a quando
percebe o que se lhe diz ou quando, pelo contrário, não faz a mínima ideia. Na
primeira noite em Teerão, derretidos da viagem, fomo-nos deitar cedo e, ao
entrarmos no quarto, demos com ele, de pernas cruzadas, sobre a cama a pontear
os jeans como uma esforçada costureirinha. Sem palavra, enfiámo-nos na cama,
lemos um pouco para entreter, até que ele se decidiu acabar a costura e apagar
a luz. Estávamos já quase a passar-nos para o lado de lá quando ouvimos uma
vozinha dizer do breu:
– Ainda nem sequer sei os vossos nomes…
Ao que o Rui, após uma gargalhada no escuro que o deve ter
desconcertado, acendeu a luz e, saindo do saco-cama, em t-shirt e cuecas,
declinou a sua identificação acompanhada por uma vénia profunda. Bem, mas não é
que o homem se levanta da cama e faz o mesmo, aprumado no pijama e curvado até
às primeiras listas das peúgas, forçando-me, por minha vez, a repetir a
cerimónia para que o conhecimento se pautasse pelas regras da convivência
civilizada?
Chegámos aqui à hora do almoço e o tempo está abrasador como um camarote
no inferno, de uma secura tal que me transformou o nariz numa miséria sangrante
cada vez que me tento livrar de uma mucosidade, pétrea como uma estalactite. O
hotel, se tem um ambiente agradável, deve-o exclusivamente à arquitectura do
edifício e ao pessoal que por aqui está instalado, pois a gerência sofre dos
tiques autoritários do Xá: no bar-café, que relembra pela clientela o Lâle Pudding Shop, não há música nem
esta se pode fazer ouvir e pelas paredes, juntamente com as fotos do imperador
e esposa, estão colados numerosos avisos antidroga e respectivas sanções. O
próprio sistema de segurança, à entrada e saída do hotel, tem qualquer coisa de
prisional o que torna o ambiente antipático e paranoide.
Toda esta asfixia contrasta intensamente com os iranianos propriamente ditos,
os que andam pelas ruas, que são gente afável, hospitaleira e muito curiosa de
quem chega de outras paragens. Eu e o Rui fizemos sensação, pois ficam muito
surpreendidos de sermos estrangeiros, de sermos europeus: acham que,
fisicamente, somos iguais a qualquer iraniano. E não deixa de ser verdade:
ambos somos de pele morena, cabelos escuros e olhos castanhos-escuros como esta
gente aqui. Não se pode dizer que haja em nós o que costuma descolorir um
inglês ou um alemão e não se pode dizer que haja neles o mínimo daquilo que
estamos habituados a pensar ser um toque asiático, e é vulgar encontrar pessoas
de olhos claros e mesmo intensamente azuis.
Teerão é uma cidade monstruosa, tem mais de cinco milhões de habitantes,
e está encravada entre montanhas e o deserto. Em quase qualquer ponto da cidade
onde se esteja avista-se o Damavand, o pico descomunal e nevado de uma
cordilheira. O trânsito é perfeitamente louco e, quando tentávamos atravessar a
nossa primeira avenida, íamos sendo varridos do mapa. O semáforo mudou para
vermelho, o sinal para os peões virou verde e, naturalmente, preparámo-nos para
estender um pé sobre a zebra da passadeira. Qual quê? Os condutores, pura e
simplesmente, continuam em frente, a vomitar fumo negro pelos tubos de escape
como se não houvesse semáforos e os peões fossem invisíveis!
A cidade tem também um aspecto bastante europeu, o que se deve, em
grande medida, à obsessão do Xá em transformar isto numa potência
ocidentalizada, ser igual aos americanos e aos ingleses, com energia atómica e
tudo. O tipo parece renegar o local onde nasceu e dá pinceladas europeias em
tudo por onde passa. É um tique de família e já o pai dele, que também reinou e
amordaçou o país por dezasseis longos anos, fazia o mesmo e, ao ir
supervisionar os súbditos na província dava-se ao requinte de se fazer
anteceder por um corpo expedicionário que tinha, entre outras funcionalidades
cosméticas, a missão de distribuir uniformes de colégio francês aos putos das
escolas primárias por onde passava a comitiva, uniformes que eram despidos e
recolhidos imediatamente após a visita para serem usados na localidade
seguinte! É disto que a casa gasta actualmente e ainda não faz dez anos que Sua
Excelência se auto-coroou Rei dos Reis. Impressionado com o gesto, no mesmo ano
de 1967 em que a coroação aconteceu, Salazar concedeu-lhe o Grande Colar da
Ordem do Infante D. Henrique.
© Fotografia de Jan Pauwels, Teerão (Irão), 1976.
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