13 janeiro 2016

03 janeiro 2016

NÃO VENHAS TARDE: 24. UMA QUESTÃO DE XÁ

3 de Outubro, Teerão
Não é fácil descortinar ou mesmo chegar à porta de entrada do Amir Kabir! Ao nível do rés-do-chão existe uma grande loja de pneus, o que faz com que a rua esteja constantemente atravancada por camiões, camionetas e jipes apoiados em macacos ou com os eixos apoiados em tijolos. O hotel aloja-se num edifício de três andares, formado por um corpo central de fachada semicircular, ladeado, em perfeita simetria, por dois corpos de linhas rectas com o mesmo pé-direito. O todo tem um perfume vagamente colonial, as janelas de madeira, com bandeira no cimo, pintadas em verde-pistáquio, e uma atmosfera decadente introduzida pela metamorfose amarela das paredes exteriores que se descascam em várias tonalidades de cinzento. Interiormente, a toda a altura do edifício, há um pátio central para onde dão os varandins que circunscrevem cada andar e as portas dos quartos abrem para esses varandins. O efeito é interessante, pois espreitando sobre o parapeito, vemos o que se passa lá em baixo, onde fica a recepção e o bar, e, também, quem nos espreita dos andares superiores. À noite, veem-se as estrelas: o pátio é aberto no topo superior. No nosso quarto, no primeiro andar, ficou também alojado o senhor Hiroyuki Suzuki, o japonês que já nos fazia companhia no Ayasofia e que continua, diligentemente e sempre mudo, a coser roupa sentado sobre o leito. Parece-me um pouco flipado ou será que os japoneses são todos assim? A frase preferida dele é “I see” e usa-a quando percebe o que se lhe diz ou quando, pelo contrário, não faz a mínima ideia. Na primeira noite em Teerão, derretidos da viagem, fomo-nos deitar cedo e, ao entrarmos no quarto, demos com ele, de pernas cruzadas, sobre a cama a pontear os jeans como uma esforçada costureirinha. Sem palavra, enfiámo-nos na cama, lemos um pouco para entreter, até que ele se decidiu acabar a costura e apagar a luz. Estávamos já quase a passar-nos para o lado de lá quando ouvimos uma vozinha dizer do breu:
– Ainda nem sequer sei os vossos nomes…
Ao que o Rui, após uma gargalhada no escuro que o deve ter desconcertado, acendeu a luz e, saindo do saco-cama, em t-shirt e cuecas, declinou a sua identificação acompanhada por uma vénia profunda. Bem, mas não é que o homem se levanta da cama e faz o mesmo, aprumado no pijama e curvado até às primeiras listas das peúgas, forçando-me, por minha vez, a repetir a cerimónia para que o conhecimento se pautasse pelas regras da convivência civilizada?
Chegámos aqui à hora do almoço e o tempo está abrasador como um camarote no inferno, de uma secura tal que me transformou o nariz numa miséria sangrante cada vez que me tento livrar de uma mucosidade, pétrea como uma estalactite. O hotel, se tem um ambiente agradável, deve-o exclusivamente à arquitectura do edifício e ao pessoal que por aqui está instalado, pois a gerência sofre dos tiques autoritários do Xá: no bar-café, que relembra pela clientela o Lâle Pudding Shop, não há música nem esta se pode fazer ouvir e pelas paredes, juntamente com as fotos do imperador e esposa, estão colados numerosos avisos antidroga e respectivas sanções. O próprio sistema de segurança, à entrada e saída do hotel, tem qualquer coisa de prisional o que torna o ambiente antipático e paranoide.
Toda esta asfixia contrasta intensamente com os iranianos propriamente ditos, os que andam pelas ruas, que são gente afável, hospitaleira e muito curiosa de quem chega de outras paragens. Eu e o Rui fizemos sensação, pois ficam muito surpreendidos de sermos estrangeiros, de sermos europeus: acham que, fisicamente, somos iguais a qualquer iraniano. E não deixa de ser verdade: ambos somos de pele morena, cabelos escuros e olhos castanhos-escuros como esta gente aqui. Não se pode dizer que haja em nós o que costuma descolorir um inglês ou um alemão e não se pode dizer que haja neles o mínimo daquilo que estamos habituados a pensar ser um toque asiático, e é vulgar encontrar pessoas de olhos claros e mesmo intensamente azuis.
Teerão é uma cidade monstruosa, tem mais de cinco milhões de habitantes, e está encravada entre montanhas e o deserto. Em quase qualquer ponto da cidade onde se esteja avista-se o Damavand, o pico descomunal e nevado de uma cordilheira. O trânsito é perfeitamente louco e, quando tentávamos atravessar a nossa primeira avenida, íamos sendo varridos do mapa. O semáforo mudou para vermelho, o sinal para os peões virou verde e, naturalmente, preparámo-nos para estender um pé sobre a zebra da passadeira. Qual quê? Os condutores, pura e simplesmente, continuam em frente, a vomitar fumo negro pelos tubos de escape como se não houvesse semáforos e os peões fossem invisíveis!

A cidade tem também um aspecto bastante europeu, o que se deve, em grande medida, à obsessão do Xá em transformar isto numa potência ocidentalizada, ser igual aos americanos e aos ingleses, com energia atómica e tudo. O tipo parece renegar o local onde nasceu e dá pinceladas europeias em tudo por onde passa. É um tique de família e já o pai dele, que também reinou e amordaçou o país por dezasseis longos anos, fazia o mesmo e, ao ir supervisionar os súbditos na província dava-se ao requinte de se fazer anteceder por um corpo expedicionário que tinha, entre outras funcionalidades cosméticas, a missão de distribuir uniformes de colégio francês aos putos das escolas primárias por onde passava a comitiva, uniformes que eram despidos e recolhidos imediatamente após a visita para serem usados na localidade seguinte! É disto que a casa gasta actualmente e ainda não faz dez anos que Sua Excelência se auto-coroou Rei dos Reis. Impressionado com o gesto, no mesmo ano de 1967 em que a coroação aconteceu, Salazar concedeu-lhe o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique.
© Fotografia de Jan Pauwels, Teerão (Irão), 1976.