29 dezembro 2010

Promete que não contas nada a ninguém

Quase quinze anos depois, as lágrimas ainda me tocam aos olhos! Olhei em volta, disfarçadamente, a controlar se alguém teria dado conta. Não, o café estava quase deserto e os raros clientes entretinham-se, como eu, a ler jornais ou a olhar o mar, sujo da invernia.
É um estado definitivo, ao que parece, este de ficarmos com uma certa labilidade emocional, sobretudo perante os assuntos de gente desta família onde não cessam de chegar novos elementos.
O que eu lia era um artigo do Público (‘A beleza dá-me força para lutar contra o cancro’, 29 Dezembro 2010) e, ocupando página quase inteira, a foto de uma senhora chamada Sara (cancro da mama, metástases cerebrais), bonita, farto cabelo castanho liso, que olha a câmara de uns grandes olhos onde luz tudo menos o desespero. Claro que aquele cabelo não é o dela, ela nunca mais terá o cabelo dela, pois a radiação do couro cabeludo (para queimar as metástases) destrói os folículos pilosos de forma definitiva. Ao contrário da quimioterapia que, umas semanas depois de cessarem os tratamentos, permite o brotar de um cabelo novo, macio, que nos faz emocionar perante o milagre daquele renascimento e do estado de inocência que parece ter sido aspergido sobre a nossa cabeça.
Mas não foi a Sara Melo, nem a sua fotografia, que me provocaram as lágrimas, naquele sem intervalo clássico entre causa e efeito, foi antes a descrição da ida ao cabeleireiro de outra rapariga (Fátima, 36 anos, cancro da mama, dona de longuíssimos cabelos negros) para rapar a cabeça, pois a quimioterapia iniciava a sua devastação capilar.
“Já tinha comigo a prótese, muito parecida com o meu cabelo natural, quando fui ao meu cabeleireiro rapar a cabeça. É um acto íntimo, doloroso, estávamos ambos muito emocionados.”
Foi aqui, nesta declaração de intimidade, nesta emoção que atingiu cliente e profissional, e que consegui imaginar como se o estivesse a ver, que as putas das lágrimas se escapuliram.
Não é  de imediato, ao começar um tratamento de quimio, que o cabelo cai e, durante um ou dois tratamentos, a gente até pensa que essa perda, de que o médico nos avisou, nos poupará, na nossa singularidade de membro único da raça humana. Até que uma manhã acordámos com a almofada escandalosamente pejada de cabelos e, um punhado de dias depois, descobrimos, horrorizados que, se puxarmos o cabelo entre dois dedos, ele se desprende, aos tufos, como um prego espetado em madeira podre.
E não pára nunca mais, esse descer de escadas, umas vezes degrau a degrau, outras aos empurrões, um lance inteiro de uma vez, os tornozelos da alma cheios de nódoas negras. Cabelo, sobrancelhas, pestanas – estas caem para dentro do globo ocular, temos de as andar sempre a pescar – cabelos de outras longitudes; unhas que lascam, músculos que tremem sozinhos, como se tivessem vontade própria. A sala de tratamentos da quimioterapia parece uma exposição permanente de Vermeers, de tal modo é povoada por seres de aparência diáfana com apêndices capilares rarefeitos. Há, até, uma certa beleza nessa estranha metamorfose, deixem que vos diga; mas é qualidade que só se deixa apanhar por quem é sócio, pois os outros, os seres normais, estão muito ocupados em não dar conta de nada, a evitar olhar-nos ou a fugir de ter uma conversa connosco. Sim, admito que não é confortável manter uma conversa sobre o tempo com alguém a quem o tempo parece escassear ou um diálogo de elevador em ascensor cujo destino parece ser a cave...
A Sara, a Fátima e a Teresa da notícia do jornal contam isso mesmo, o modo como se perde quase tudo o que era dado como adquirido: a auto-imagem, a auto-confiança, como ficámos despersonalizados, seres sem individualidade. E como se não bastasse a devastação interna, os outros, todos os outros, empurram-nos e mantêm-nos no canto sem abrigo dessa impessoalidade. Família, amores, amigos, conhecidos, estranhos – todos passam a fitar-nos com aquele olhar para emissário da morte em que nos tornámos... Infantilizados, também; de súbito passam a decidir sobre a nossa vida, a invadir o nosso espaço em nome do nosso bem; a doença permite esse à vontade de entrar sem bater à porta. Com excepção da angústia, nada nos é permitido de privado e não há quem entenda esse nosso novo estado de filigrana perecível; o único consolo vem de colegas de infortúnio, também esses perdidos nos recôncavos daquele mar alteroso, fincados a uma tábua como nós, no meio de surfistas, cabeludos e bronzeados, em pé na crista das ondas.
Por isso, a Sara, a Fátima e a Teresa insistem na importância de tentar manter uma aparência bonita como arma contra a doença e do bálsamo que é esta iniciativa da Liga Portuguesa Contra o Cancro (secção de Coimbra) que tem um cantinho onde se fornece às pessoas os acessórios e os cuidados necessários para manter uma imagem de espelho parecida com o que éramos antes de sermos atacados pelo inimigo. Sim, como é importante a aparência e, para uma mulher, penso que, talvez, ainda o seja mais. Sem mama(s), por vezes sem útero e sem ovários, sem cabelos, sem sobrancelhas, sem pestanas; a pele seca, escamada ou queimada... Quem quer estar numa pele destas? Precisamos de vestir uma armadura de aparência para enfrentar tudo isto e o mais que nos vai agredir a seguir, o que pode incluir os médicos e o marido! Todos sabemos que não é por mal que se faz este mal, mas o mal é feito, acrescentado.
Um fim de manhã gelado de Novembro, nu da cinta para cima, aguardava à porta da sala de tratamentos de radioterapia do Hospital de Santa Maria que o doente que estava lá dentro saísse, para entrar eu. A porta da sala onde está o acelerador linear é uma porta blindada, de caixa-forte, e enquanto o aparelho está a trabalhar ouve-se o ronco de uma sirene, como se estivéssemos perante um ataque aéreo. Lá dentro, sozinho, deitado numa mesa, à qual está mais ou menos amarrado para que as radiações incidam no local certo, estava o doente que respondeu à chamada antes de mim. A sirene tinha terminado o seu uivo rouco, eu esperava ao lado da porta, gelado por estar nu da cinta para cima, o meu peito e costas pintados com as tatuagens negras que indicavam as fronteiras dos locais a irradiar. A porta desdobrou-se, vi surgir da gruta um ser careca e nu da cinta para cima. Penso que o ser captou a surpresa do meu olhar, ao associar a sua figura actual à daquela senhora que costumava esperar vez, tão discretamente, tão elegantemente trajada, folheando uma revista na sala de espera... Ela avançou e, ao cruzar-se comigo, dirigiu-me um olhar de
“Promete que não contas a ninguém que me viste assim...”
ao qual eu, também usando apenas o olhar, respondi 
“Prometo, mas, sabes, estás bonita mesmo assim." 


© Pedro Serrano, entre o primeiro e o segundo tratamento de quimioterapia. Fotografia de Maria João Costa, Verão de 1996. 

26 dezembro 2010

BRAGA REVISITED

O António lembra vagamente um anjo constipado, com os seus olhos azuis-acinzentados, que espreitam por trás de umas pálpebras sonolentas, levemente descaídas, e a sua cabeleira fofa e loura talhada à pajem, na proximidade da qual é impossível evitar mergulhar os dedos, numa tentação macia de forro de ninho de ave.
Ele tem dez anos, é especialista em árvores de Natal sintéticas com ramos, e, por contiguidade, foi mesmo obrigado a desenvolver uma subespecialização em iluminações natalícias, o que implica todos os tipos de lâmpadas e de chamas, casquilhos, fichas-triplas, extensões e programadores de efeitos luminosos. No ano passado, ganhou o prémio Thomas Edison Lojas dos Trezentos, entregue pessoalmente pelo presidente da comunidade chinesa na Península Ibérica, o senhor Ping Peng, que se deslocou propositadamente de Barcelona ao Porto para presidir à cerimónia.
Tendo em conta todo este currículo, a minha prima Gabi contrata todos os anos os serviços do António para que lhe programe a árvore de Natal com ramos que possui e, ouvi dizer, que o senhor Feliciano, vizinho dos meus primos em Braga, vai requisitar a sua perícia para as Festas de 2011.


Sou admirador do conhecimento, rigor técnico e veia artística do António, já por aqui falei dele (Como lhe estava a dizer ) e este ano tive o prazer de, quando no dia 23 de Dezembro cheguei a Braga para o tradicional jantar nos Maias, o encontrar pessoalmente, no final da sua missão de rematar os enfeites da Gabi. Logo que acabámos de nos cumprimentar, ele quis saber todos os pormenores sobre o presépio e a árvore de Natal, também com ramos, que deixara montados em minha casa e, afortunadamente, tinha algumas fotos na memória do meu telemóvel, o que me permitiu mostrar-lhe com imagens a dança de cores das minhas iluminações, pois estava a ser difícil, com recurso somente a palavras, explicar o ciclo da sequência de cores: o azul-vermelho pálido inicial, o verde-azul frio que se segue e a frenética apoteose final de todas as lâmpadas piscando em simultâneo num disparate feliz de cores.
Depois fomos jantar ao Maia onde, no engolir tracejado de umas dúzias de croquetes, ficámos a par de mais alguns pormenores sobre a  complexa família do Sr. Matos, o empregado que parece um duende benfazejo e que, não tendo ainda 40 anos, tem sobrinhos com 70 anos e um irmão com 82! Prodígios quase de Natal que ligaram excelentemente com a calda dos sonhos e obrigaram o António a esconder a cara entre os dedos para não deixar derramar o riso na alva toalha de mesa.
No dia 24, ao princípio da tarde, a Gabi e a Teresinha saíram para umas desesperadas últimas compras e o Manel foi à clínica passar uma tranquilizante visita de Natal pelos doentes internados. Por seu lado, entre after-shaves e colónias, o Manelzinho preparava-se para sair para o Bananeiro, uma estranha tradição natalícia bracarense em que, em plena rua, multidões bebem vinho e comem bananas!
“Tens a certeza que ficas bem com ele?”, perguntou a Gabi perante a hipótese do António ficar sozinho comigo em casa, “não achas que ele pode chatear-te um bocadito?”
Assegurei-lhe que não, que íamos ficar lindamente. Sentado, à lareira, fui lendo, pausadamente, um conto da Flannery O’Connor, enquanto o António cirandava por ali, dando os últimos retoques nas iluminações ou, mais simplesmente, observando de perto o conjunto árvore-de-Natal-embrulhos-de-prendas-aos-seus-pés. De vez em quando, eu levantava-me para aconchegar a lareira e ele aproximava-se, perguntava sobre detalhes do que eu fazia. Expliquei-lhe com todo o pormenor as etapas e os segredos práticos de se manter uma lareira em bom funcionamento. Nestas coisas, todo o cuidado é pouco: é possível que um dia ele me recorde por isso. Depois propus-lhe:
“E se acendêssemos uma vela a sério, com fósforos?”
Ele gostou da ideia, mas, como bom engenheiro electrotécnico, preocupou-se com a tomada da decisão:
“Achas que a tia Gabi não ia ficar chateada?”
“Acho que não, afinal é Natal – que melhor altura para se acenderem velas?”
Acendemos a vela grossa, uma que está na mesinha ao lado do sofá em frente à lareira, e ficámos ali um pouco a ver a chama impor-se ao pavio. Voltei à leitura do conto e o António desapareceu por trás do sofá. O silêncio jorrou manso, só interrompido pelo crepitar da lareira.
“Há aqui outra vela”, ouvi, passado um pouco, a voz do António revelar, “até são três velas numa só... Achas que dava para a acender?”
Virei-me para trás, depois levantei-me e fui ter com ele que, no fundo da sala, de joelhos sobre o outro sofá, examinava cuidadosamente uma enorme vela rectangular, de tom amarelo-castanha-de-ovos, com três pavios distintos.
“Vamos acender isso...”, decidi, pois era impossível resistir a uma vela porta-aviões daquelas.
“Achas que a tia Gabi não se ia importar...?”, quis ele assegurar.
“Não”, dei de barato, “esta vela está para aqui há anos sem servir para nada!”
Risquei um fósforo, ofereci-lhe o privilégio:
“Queres acender tu?”
“Não, é melhor seres tu”, recusou com delicadeza.
“Tens medo de te queimar?”
Ele hesitou um pouco na resposta, penso que numa mistura de receio pelo atrevimento, mais pelas consequências sobre os dedos do evoluir da chama ao longo do palito do fósforo numa viagem por três pavios.
“É melhor seres tu...”
Acendi a vela, voltei ao meu sofá, repeguei o livro. Passados uns parágrafos, virei o pescoço, olhei para trás. Ele estava sentado no sofá, inclinado sobre o apoio, observando hipnotizadamente a trilogia luminosa.
Quando os meus primos chegaram, eu lia tranquilamente e, sentado no tapete, no meio de um estaleiro de Legos, o António construía uma árvore de Natal com ramos e sem curvas. A lareira ronronava, convidativa, e pelas colunas fluía a música de um concerto para trompa.
“É a banda sonora do Brideshead?”, perguntou o Manel?
“Parece, não é?”, respondi, “mas não, é Mozart...”
“Estiveram bem?”, perguntou a Gabi, sempre ansiosa, “ele deixou-te um bocadinho em paz?”
“Estivemos lindamente, em paz é o termo preciso. Mas acendemos-te duas velas", acrescentei. 


© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Braga, 2010; (2) Praia da Areia Branca, 2010; (3-5) Braga, 2010. 

18 dezembro 2010

ÁGUA DOCE


© Foto de Pedro Serrano, Havana (Cuba), 2004.

Não nascida do mar, mas de uma piscina
Salpicando a tijoleira em pegadas divinas
Musa, em verso chão deixa que remate
Essa excelsa visão, à borda da piscina,
Mordiscando batatas fritas com ketchup

12 dezembro 2010

Quase leve, levemente

Maria, a comida vai prá mesa
Chama-me a Ana e a Teresa
Deixaram a lareira acesa
E na sala, não está ninguém! 
Não chores, pequenininho,
Que a tua mamã já lá vem
Olha a vaca e o burrinho
A aquecerem o menino
Na casinha de Belém

© Foto de Pedro Serrano, Natal 2009.

01 dezembro 2010

E ESSE SONO QUE NÃO DESCE

Passava qualquer coisa da uma da manhã.
Andara mais de uma semana por fora, acabara de chegar há escassas horas da Madeira, de modo que encontrei a casa gelada. Desfiz as malas e resolvi ir deitar-me, pois ainda me pareceu a forma mais expedita de aquecer.
Enfiei-me na cama e durante mais de meia-hora debati-me com a recepção virginal, enregelada e tesa, dos lençóis. Depois, lá me atrevi a aventurar, prudentemente, uma perna pelo Polo Sul dos confins da cama.
Amornado e desenrolado o corpo, estiquei um dedo no ar glaciar e apaguei o candeeiro. Iria agora concentrar-me na mente e começar o longo exercício de a alisar, de a pacificar, para possibilitar que o sono se aproximasse. Fechei a porta aos acontecimentos previstos para o dia seguinte e resisti a espreitar pela janela do que sucedera nesse dia, na véspera. Queria chegar a essa terra de ninguém onde, no meio da bruma, num chão de ansiolíticos, o sono se passeia incógnito. Acho que sim, parece que vejo alguém a aproximar-se lá ao fundo, não lhe vejo a face, mas usa um sobretudo de algodão cinzento névoa... Será o próprio sono ou antes um sósia, um daqueles hipnóticos de trazer por casa? A dúvida começou a esbater-se na minha consciência que, ela própria, começou a amolecer como uma madalena mergulhada em chá de tília.
O telemóvel retiniu na mesinha de cabeceira, a minha mente emitiu um “no!” com a entoação precisa do Homer Simpson. Acendi a luz, olhei o visor, vi quem era, reparei na hora:
Passava qualquer coisa da uma da manhã.
“Já estavas a dormir? Não te acordei, pois não?”
“Não”, respondi, lacónico, sentindo alguma dificuldade em rechear com frases os balões do diálogo.
“Estás com uma voz esquisita, o que se passa?”
“Não se passa nada, estou a atender-te deitado, tenho as cordas vocais desniveladas...”
“Ah, então, se calhar, acordei-te, Desculpa lá!”
“Não faz mal”, respondi, desejando que o assunto me fosse exposto. Devia haver um assunto, não? É que se íamos ficar só por aquele tipo de diálogo, estava a encontrar um travo a Bugs Bunny, travestido de Samuel Beckett,  nisso de me telefonarem à uma da manhã para me perguntarem “o que se passa, doutor!?”

“Estou a ligar-te por causa do João, estou um bocado preocupada. Queria que me dissesses se achas se o devo levar ou não ao hospital?”
“Agora?”, tentei precisar a primeira das cordilheiras de coordenadas que pressentia aquela conversa ter de atravessar e esclarecer.
“Sim, não dorme e está com uma respiração esquisita?”
“Esquisita, como?”
“Crepitante...”
“O que entendes por crepitante?”, perguntei, para ajustar conceitos e entendimentos, uma vez que não estava a ver nem a ouvir a respiração da criança, apenas ouvia, em pano de fundo, o tagarelar de uma criança divertida por estar acordada até tão tarde.
“Sei lá, sabes, aquele barulho quando se respira...?” (E imitou mais ou menos o ruído pelo qual ensinámos às crianças as onomatopeias das vozes animais. “Como faz o porquinho, como faz? Rró-rró”). E acrescentou:
“Não é muito percebes, até já esteve pior... O que me preocupa é que não dorme...”
“Já esteve pior, como? Há quanto tempo é que está assim, quando é que isto tudo começou O que é que ele tem, afinal?”
“Infecção respiratória. Há uns três ou quatro dias. Estava com um bocadito de febre e este crepitar. A médica auscultou-o, disse que tinha alguns roncos, receitou um antibiótico... Disse para lhe dar Atrovent se a tosse piorasse muito.”
“E ele tem febre agora?”
“Não, não tem febre nenhuma. Já não tem febre há dois dias.”
“E a tosse, como é que tem evoluído?”
“Ah, agora está praticamente sem tosse nenhuma...”
“Então qual era a tua ideia de o levares ao hospital a esta hora, com este frio? Sabes quantos graus estão lá fora? Cinco, cinco graus!”
“Era mais porque ele não dorme, não consigo que ele adormeça, tenho medo que alguma coisa piore...”
“E por que raio havia de piorar? Teve um princípio de infecção respiratória, está a tomar antibiótico, a febre desapareceu, não tem tosse...”
“Mas tinha aquele crepitar, faz-me impressão estar aqui ao lado dele e ouvir aquilo... Agora, que estou a falar contigo, já estou mais calma, nem me parece ter muito sentido levá-lo ao hospital. Mas ele não dorme, é uma da manhã e ele não dorme...”
“Tens-lhe dado de beber o suficiente? Resume lá tudo o que ele está a tomar neste momento...”
“Está a tomar antibiótico (Clamoxyl), dei-lhe Brufen para a febre e também lhe dei  Atrovent...”
“Atrovent, para quê?”
“A pediatra disse-me para lhe dar se a tosse piorasse...”
“Mas disseste-me que ele estava muito melhor da tosse, que praticamente já não tem tosse...”
“Pois, mas como ele estava com este barulho, tive medo que piorasse...”
“Quantas vezes lhe deste o Atrovent hoje?”
“.... Duas, a última delas há cerca de três horas...”
“Sabias que o Atrovent funciona um pouco como um excitante?”
“Não! Disseram-me que até fazia sono...”
“Ah, claro, há até quem o use para dormir! Ora lê aí no papel os efeitos secundários sobre o sistema cardiovascular...”
Do lado de cá do fio ouvi o único crepitar dessa noite, o de um papel a ser desdobrado. Depois ela começou a ler alto:
“Sistema cardiovascular, sistema cardiovascular... Ah, está aqui: taquicardia, arritmia, fibrilação auricular...”
Interrompi-a, para evitar que se embebesse na espiral dos efeitos secundários e começasse a induzir sintomas nela própria e, depois, na insone criança.
“Sabes o que é uma taquicardia?”
“Sim, é quando o coração começa a bater depressa de mais.”
“Pois, e achas que isso acalma ou excita?”
“Excita, claro!”
“E achas que estar excitado é bom para uma criança adormecer?”
“Não...”
“Agora imagina o desgraçado do puto: tem a mãe em cima dele, no quarto, as luzes acesas, ela a espreitar constantemente: a ver se crepita, se está roxo, se tem febre, se está suado, se respira, e, pior do que tudo, a dar-lhe – sem necessidade nenhuma e só para ela própria se acalmar – um medicamente que faz agitar o coração do rapaz. COMO É QUE QUERES QUE ELE DURMA? E agora, ainda por cima, queres sair com ele a esta hora e levá-lo para o meio de uma noite gelada, que é para o matares, à força, com uma pneumonia! Esse rapaz não vai chegar aos quatro anos, a mãe vai matá-lo antes!”
Do lado de lá, a minha loura maluca, desatou a rir. Depois disse:
“Tás a ver? É por isso que eu gosto de falar contigo: acalmas-me. Eu achava que era um bocado um disparate levá-lo ao hospital, mas agora tenho a certeza e sinto-me muito melhor...”
“Pois... Deixa o gajo em paz, porra, apaga-lhe a luz e vai dormir, deixa-o dormir!”
“Ah, ah, ah”, ela continuava a rir e muito divertida. Rematou:
“Sabes, eu, de tudo o que estás a dizer, só aproveito mesmo o que é importante, o resto não te ligo. Vá, agora vai dormir”
Desliguei, apaguei a luz e recomecei tudo do zero.


MILAGRIZAR

© Pedro Serrano, Cascais, Natal 2009.


Deseja-se um frio todo sobrenatural
Ao abrigo de paredes de pedra e cal
Acalanta-se o pavio de uma luz especial
Sobre a tábua-extra da mesa de Natal