16 junho 2022

SOLENEMENTE INCOMPETENTES

Taxa de mortalidade materna em Portugal, 2002-2020. Fonte: DGS, INE.


Apesar de termos das mais baixas natalidades do mundo, Marta Temido e o seu Ministério da Contingência prefeririam que os portuguese fornicassem ainda menos, pois nem mesmo com tão poucos partos consegue dar conta do recado.

Perca um minuto a observar o gráfico, que foi feito pela DGS (isto é: Ministério da Saúde) com base em números do INE. Esta informação é pública, a tal ponto acessível a quem a quiser ver que eu próprio acrescentei a informação respeitante ao ano de 2020, a qual, apesar de disponível, não constava ainda no gráfico da DGS.

Na imagem pode acompanhar-se a evolução nos dezoito anos de uma coisa que dá pelo nome de taxa de mortalidade materna, e que representa o número de grávidas, parturientes ou mães recentes que morreram em consequência do processo de gravidez e parto. Diga-se que este indicador não espelha somente as mortes maternas, sendo tão sensível que é considerado internacionalmente como reflectindo o grau de desenvolvimento (ou atraso) de um país. Em Portugal, este indicador foi desgraçadamente alto durante os anos 50 a 80 do século passado, tendo, progressivamente, melhorado e atingido o extraordinário valor de 0 em alguns dos anos da década de 90, reflexo da melhoria das condições gerais do país e, muito particularmente, da planeada atenção dada à gravidez (consultas regulares de seguimento, vacinação) e às condições em que se efectuava o parto (parto hospitalar e não podendo ocorrer em qualquer hospital). O cuidado com esta área foi tanto que, apesar do protesto de algumas autarquias mais bairristas, se encerraram pequenas maternidades sem o pessoal ou os meios necessários e, em nome de um treino sério, hospitais com um número demasiado reduzido de partos deixaram de ser oficialmente reconhecidos pela Ordem dos Médicos como local apropriado para formar a mão dos futuros especialistas.  

Conforme mostra a imagem, a partir de 2005 esse panorama sorridente começou a inflectir, termo que o Ministério da Contingência adoptou recentemente e adora usar, a crescer, regularmente e previsível como um relógio, tendo sofrido uma escalada imparável a partir de 2016 (ainda o Covid dormia no seio do não-ser) e atingindo em 2020 o himalaiano valor de 20,1 mortes maternas, valor que não se registava por cá desde 1980 (19,1 mortes maternas), ultrapassando até os limites máximos previstos na haste vertical do gráfico que, coitada, não ia além do valor "20". 

A pergunta é evidente: e ninguém se deu conta disto, desta tendência que tem 15 longos anos de evolução e 6 de escalada? Não, pelos vistos, ou, se o deram, fizeram o que também é hábito no tal Ministério da Contingência: mandou-se buscar a pá e a vassourinha e toca de varrer para debaixo do tapete - podia ser que ninguém desse conta, particularmente os jornalistas, que às vezes gostam de escabichar nos números. É claro que, em relação a este problema, houve quem, na altura própria e repetidamente, se desse conta da ausência, carência ou esgotamento de alguns requisitos essenciais e as associações profissionais (médicos, enfermeiros, administradores hospitalares) queixaram-se repetidamente à tutela, avisaram; em seguida houve até demissões de responsáveis hospitalares e declarações de isenção de responsabilidade assinadas por centenas de profissionais que viam a barragem prestes a ceder ao volume das águas que trepavam. Faltava um pouco de tudo, mas sobretudo gente e a pouca que havia, mal paga e exausta, debandava para paragens mais risonhas, fosse no sector privado fosse no estrangeiro. Tudo isto, recorde-se, foi como pregar no deserto; tudo, sublinhe-se, se passou antes das costas-largas do Covid.

De repente, pelo gatilho de um recém-nascido que morreu nas Caldas da Rainha por falta de assistência, a coisa estoura, como sempre acontece aos abcessos deixados à sua sorte. Mas, para além disso, o inchaço gravidez vem com uma idiossincrasia chata: não se consegue adiar a resolução para as calendas com a mesma facilidade com que se procrastinam operações às cataratas ou às juntas emperradas dos velhos. Quando as águas estouram há que ter um local que receba e cuide, de outro modo, e em poucas horas, pode morrer a mãe, pode morrer o filho, podem morrer ambos. E isso dá uma péssima imagem na abertura dos telejornais e depois lá tem de ir alguém dizer que foi criada uma rigorosa comissão de inquérito... Num serviço atrás do outro, esmagadoramente na cronicamente incapaz Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, a recepção de grávidas e parturientes nos hospitais do SNS foi cerceada e quem precisasse teria de correr Ceca e Meca até que finalmente alguém o recebesse. "Aguenta Goretti, respira fundo e cruza bem essas coxas! São só mais 80 Km..."

Estremunhada, Temido surge finalmente nos LCD a assegurar estar alerta, que já no dia seguinte começará reuniões de alto nível na área da capital e seus subúrbios, onde os serviços de obstetrícia estão a ser assegurados até por médicos ainda estagiários da especialidade... No dia seguinte, de facto, já ela tinha dado a volta ao texto e composto a narrativa para acalmar o povo, uma narrativa superficial, patética e, de certo ponto de vista, intelectualmente desonesta. Ora o que foi ela descobrir como linha de fuga? À falta de, desta vez e assim tão de repente, não poder descarregar culpas directamente sobre a Ordem dos Médicos ou sobre o Covid19, engendrou que a falência da capacidade dos hospitais é como se fosse uma espécie de pandemia, ou seja, que, no fundo, é incidente que pode simplesmente suceder, como se fosse uma bactéria ou um vírus; um acontecimento exterior que, sendo exterior, não é responsabilidade dela... É uma teoria fatalista, é o destino! De tal modo se satisfez nesta teoria que acabou a afirmar, contente, peremptória e pedagógica, que o Ministério irá usar nesta situação (dos serviços que fecham como berbigões à proximidade do dedo) a mesma estratégia de contingência que se mostrou tão eficaz no Covid19: a Contingência, saia um plano de contingência para as maternidades de Lisboa! 

Resumindo:  isto pode acontecer a qualquer Governo, com a naturalidade ou a imprevisibilidade do choque com um meteoro ou de uma praga de gafanhotos e o caminho para enfrentar a disrupção é a contingência, que é como quem diz: encarar o problema criado como uma anormalidade e não como algo que compete a qualquer SNS civilizado e minimamente capaz: a função de estar vigilante e ser responsável pela, neste caso, saúde materna da sua população.

Para além da Contingência, Marta Temido mostra-se ainda disposta a tudo, até a ir buscar obstetras ao estrangeiro, até a formar médicos obstetras no estrangeiro se preciso for! Talvez alguém lhe pudesse ter dito que não são necessários tais extremos de heroísmo, que há por cá médicos suficientes para os (poucos) partos que vão pingando e que são já inferiores aos portugueses que morrem anualmente. Acontece que grande número desses profissionais estão no sector privado que, actualmente, é já responsável por cerca de 20 % dos partos que se fazem no país. Talvez, para começar a resolver o assunto, inadiável e urgente, de quem necessita de parir, a ministra devesse ter pensado nisso logo à cabeça: se não sou capaz e há quem consiga, tenho de ir ter com esse que consegue. É uma vergonha ter de chegar a isto? Sem dúvida, mas afinal quem deixou chegar o descalabro até aqui, apesar do que os números e os gráficos gritam aos quatro ventos? 

Nossa Senhora da Contingência.

Na sua torrente explicativa, na solenidade das conferências de imprensa ao país, Temido, para além de pedir que nos uníssemos todos em volta da fogueira e não exagerássemos nas queixas, prometeu também ir formar: a) uma Comissão, b) um grupo de acompanhamento, c) uma rede nacional de referenciação em saúde materna, d) outras miríades de iniciativas que, pelo tom de peditório nacional, recordam as antigas campanhas sanitárias dos países em vias de desenvolvimento e tresandam a ineficácia e entretenimento...

À margem de tudo isto, o sector privado mantém-se discretamente em silêncio. É estranho, mas não vi ninguém interessar-se em ir perguntar-lhe se tem tido problemas com os partos, o seguimento de grávidas ou a falta de médicos obstetras. Pelos vistos não, pois se até se dispuseram a dar uma mãozinha a Marta Temido nesta hora aflita.

Numa excelente e recente biografia sobre Fernando Pessoa, escrita pelo norte-americano Richard Zenith, o poeta refere-se a uma certa categoria de portugueses como sendo "solenemente incompetentes". Pessoa fala de uma realidade que o rodeava nos anos de 1920, mas o termo parece ainda útil cem anos depois.    

 

 

   

 

13 junho 2022

GASTAM-SE MUITAS CADEIRAS NUM TEATRO

Qualquer coisa entre Leiria e Coimbra, após a suspensão sobre os pilares do longo viaduto, a autoestrada descaía um pouco e o cenário surgiu à direita, num lameiro rebaixado, uma tira de terreno verde e estreita onde, desencontrado, pastava um pequeno rebanho de ovelhas. Fazendo companhia a cada uma delas, atenta como um pajem, especava-se uma garça aguardando que o revolvimento do solo, provocado pelo retouçar das ovelhas, desinquietasse insectos, revelasse minhocas, talvez outras iguarias. 

Apeteceu-lhe fotografar - a máquina seguia, dentro da maleta, na mala do automóvel - mas fez-se tarde até que o decidiu e quando travou o suficiente para se considerar estacionado na berma já o lameiro ficara para trás, a umas centenas de metros pouco viáveis de serem percorridos a pé em autoestrada, para mais em estado de pandemia, onde qualquer acto podia configurar uma transgressão.

            Controlou o retrovisor e voltou à faixa de rodagem. Talvez uma próxima vez que por ali passasse no mesmo sentido sul-norte, consolou-se sabendo que não haveria uma próxima vez igual a esta, uma conjugação desse verde, tenro e luminoso, com o branco cintilante das garças a guarnecer o branco já-não-tão-branco-assim das ovelhas. Era tudo uma questão de luz.

            Antigamente constituía um lamento comum - ele próprio o teria cometido - dizer-se que as autoestradas iriam matar a paisagem, que trariam apenas monotonia à perspectiva, uma alegoria semelhante à de que os hipermercados mataram, ou estão em vias de matar, o comércio local. Já nada era como dantes. O curioso, continuava a matutar rumo a norte, tirando ilações daquelas recentes e reincidentes deslocações, o curioso era que empreender uma daquelas viagens, anteriormente tão banais e automáticas, se tornara como que um acontecimento, uma celebração, uma festa solitária, um grito de liberdade. Ali ia ele, seguro no seu habitáculo, sem nada que o detivesse, mudando de local ao ritmo de minutos, em breve noutra cidade; olha, acolá, além das guardas de metal zincado da berma, a cor fulva daqueles vimes, onde existe uma cor como aquela? Pinheiros, agora; eucaliptos adolescentes. O placard azul. Pararia na próxima área de serviço, já a trinta, vinte quilómetros? Olhou o indicador de combustível e estava a mais de meio, confirmou que faltavam 620 km até que o tanque se esvaziasse: poderia ir e voltar sem abastecer. Dez quilómetros, diz outra placa azul, e aproxima-se já por sobre a cabeça uma faixa de caracteres, conseguidos por um ponto-de-cruz de células luminosas, avisando que, com chuva, se deve moderar a velocidade. Qual chuva? O asfalto estava seco como uma convocatória da Autoridade Tributária. 

            Aos 2 km, acabou por fazer pisca e acercou-se das bombas sorrateiramente. Não havia mais nenhum automóvel parado no recinto. Saiu para o exterior sem máscara, encheu o depósito ao léu, até que a última gota da mangueira se extinguisse... Será que o funcionário o estaria a espiar de dentro da loja - desconfiado, já alerta, pronto a chamar a Brisa - pelas câmaras de vigilância? Também ali tudo se invertera e passara-se a recear quem se aproximasse da porta automática com a cara descoberta!

            "Sabe se o restaurante aqui ao lado está aberto ao público?", perguntou do lado de cá da máscara e da linha raiada em vermelho e branco que separava os seus pés do guichet. 

            Estava. No parque de estacionamento apenas um automóvel e, dentro, ao volante, um tipo mastigava qualquer coisa, olhando em frente pelo para-brisas. 

            Uma mesa de restaurante atravessava-se na ombreira da porta, impedindo o acesso, e sobre ela um menu encaixilhado e um frasco de álcool-gel. Pelo lado de dentro, aproximou-se uma senhora.

            "Boa tarde. Queria um café, por favor. 

            "Longo, normal ou curto?"

            "Normal. E tem daquelas queijadas em forma de estrela?"

            Não tinha. O mais aproximado, voltou para lhe dizer, eram pasteis de nata. 

            Pegou na bandeja e procurou em volta. Não lhe apetecia ir comer no carro, do carro vinha ele e para lá voltaria pelos cento e quarenta quilómetros que o separavam do Porto. Encontrou, a alguns metros, a cerca de um diminuto parque infantil, a cancela cerrada e uma fita de plástico - como se fosse de inauguração - a reforçar a proibição. Como quem vai abrir, mas, para já, ainda não chegou a comitiva. A intervalos, penduravam-se na cerca uns receptáculos quadrangulares, de plástico, cor de barro, cheios com terra. Era suposto abrigarem plantas, mas é Inverno e ali, à margem da autoestrada, com aquela ventania, aquele asfalto todo como única inspiração... Com cautela, conseguiu equilibrar a bandeja em cima de um deles e trincar o pastel de nata sem que o copo de papel do café resvalasse. Ficou-se a olhar quem passa. Não passa ninguém. 

         ***


            Já conhecia a rotina do hotel, eles já conheciam a sua: ia para um mês que ali ficava uma noite por semana. À entrada esfregava os sapatos no tapete, na fé de raspar alguns vírus que pudessem ter ficado colados às solas. Álcool-gel. Este era mais gel do que álcool, chegou à divisória de acrílico da menina da recepção ainda com uma sensação de pegajosidade nas mãos. O que valia é que não tinha de pegar em documentos nem assinar nada. Apesar da máscara, ela sabia o seu último nome, assim como ele sabia o primeiro dela.

            "Desta vez não vai poder ir comer lá em baixo, ao centro comercial, Sr. Sequeira."

            "Pois, é verdade! Tinha-me esquecido completamente que, a partir de antes de ontem, só por takeaway! E como é que faço para jantar? Não adianta tentar sair e ir a lado nenhum! Dá para encomendar de algum sítio, através de vocês?"

            Daniela diz que não, estão proibidos, e, aliás, os restaurantes só aceitam encomendas através de uma aplicação de telemóvel, pessoal.

            "Aplicação? Não tenho nenhuma aplicação! E agora, fico em jejum ou vou ao supermercado comprar umas bolachas e uns iogurtes?"

            Ela sorri-se do exagero.

            "Se quiser, pode sempre usar o nosso restaurante...", sugere.

            "Parece-me que é o que irei fazer. Que é que vocês têm que se coma ao jantar?"

            "Creme de cenoura, ou sopa de legumes; bacalhau-com-natas; arroz de pato; ou massa à bolonhesa..."

            A ementa era invariavelmente a mesma, mas não deu parte de fraco.

            "Deixe-me pensar... Mais perto da hora ligo, encomendo e depois desço e venho jantar..."

            "Não vai poder jantar aqui", avisa ela referindo com o queixo a pequena sala ao lado da recepção, onde não há mesas e uns sofás, artisticamente dispostos, bloqueiam o espaço.

            "Então, como faço? Telefono, peço, e vocês levam ao quarto?"

            "Não estamos autorizados a servir nada nos quartos: o room service está suspenso. Vai ter de ser o Sr. Sequeira a vir buscar a sua bandeja..."

            "Quer dizer que vou ter de comer no quarto? Virado para a parede?"

            Ela acenou com a cabeça, tranquila:

            "Só pode haver lugar a consumo no quarto ou no exterior... E lá fora..."

            Lá fora cai a tarde e mantém-se o chuvisco frio, batido por um ventinho cortante, que o mordiscara mal saíra do carro. 

            "E, amanhã, o pequeno-almoço, a mesma coisa?"

            Ela volta a acenar, sorri um pouco, um sorriso tipo é-assim-que-estão-as-coisas, estende-lhe, pela fenda na base do acrílico, um papel estreito e comprido. Ficou-se a olhar as colunas de quadradinhos que o infestavam, desconfiado.

            "Que é isto? Mais um questionário sobre Covid19?"

            "Não! É o pedido para o pequeno-almoço... Assinale o que vai querer, e a hora a que o quer tomar; pode trazer-mo até à meia-noite." 

            Carregou num canto do botão para chamar o elevador tomado por uma nova consciência: antecipava o que seria fazê-lo com uma bandeja nos braços; deixar o elevador enquanto a porta de correr ainda está aberta; abrir com uma só mão a pesada porta de mola, corta-fogo, que dá acesso ao corredor dos quartos; pousar a bandeja no chão enquanto metia o cartão electrónico na ranhura da porta do quarto; recuperar a bandeja antes que a porta (programada para se fechar atrás do hóspede) começasse a empurrá-lo e o fizesse entornar o creme de cenoura! 

            O quarto estava um forno, tinham deixado o ar condicionado ligado como gesto de ternura para com o hóspede vindouro. Correu o oleado do reposteiro para perceber para que lado do hotel ficara virado desta vez. O quarto dava para os respiradouros em forma de chaminé de navio do centro comercial, revestidos, à la Gaudi, por fragmentos de azulejo; o carro estava estacionado mesmo ali por baixo, quase alinhado com a janela do quarto, o tejadilho reverberante de gotas de água. Passavam umas carruagens do Metro de superfície, já iluminadas. Entre elas e a Faculdade de Medicina Dentária, num pedaço de terreno ainda não construído, uns choupos oscilavam ao vento. Estava a instalar-se uma noite danada, tinha-o visto anunciado e graficamente demonstrado no telejornal da véspera: a Norte, umas nuvens, pintadas de cinzento sujo, com uns tracinhos pendurados. Mas espera-se sempre que se possam enganar ou, ao menos, conseguir ziguezaguear por entre o tracejado.

            Para descontaminar, tomou um chuveiro e mudou de roupa, preencheu o impresso da Daniela, afivelou a máscara e resolveu ir dar uma volta pelo centro comercial, apesar de calcular em que daria a visita! Mas sempre era uma variante a ficar no quarto.

            Na porta do elevador para o centro comercial havia um aviso a lembrar que só podia viajar uma pessoa à vez, e que o uso de máscara é obrigatório. Quando o sentiu chegar, e antes que a porta se abrisse, recuou dois passos. Vinha vazio. Entrou e carregou no botão com a ponta da chave da porta de casa, que, antes de guardar no bolso, limpou às calças.

            No espaço comercial que existe por baixo do hotel está tudo fechado, as excepções são o hipermercado e a farmácia. O que poderia comprar na farmácia? Entrou, seguiu as setas no chão como um rato de experiência convenientemente treinado e ficou-se a estudar o expositor das escovas de dentes. Escolheu uma, de dureza de cerdas média, e pediu duas embalagens de Aspirina 100 mg, que usava diariamente e se podiam comprar sem receita médica. Ainda assim, a menina quer saber:

            "O Sr. está habituado a tomar isto?"

            "Habituadíssimo. Ainda no outro dia estive a fazer contas e, nos últimos vinte anos, já devo ter engolido quase um quilo disto."

            Ela acha graça, pergunta-lhe se tem o cartão das farmácias.

            Com aquele volume de compras já não se sentiu tão inútil a balançar o cartucho de papel enquanto contornava o espaço onde, ainda há duas semanas, era a confeitaria. A pequena esplanada interior apercebia-se apenas na diferença da cor do parquet de madeira do chão, pois não havia mesas nem cadeiras, e as vitrinas dos bolos e dos chocolates estavam vazias. Quem lhe dera poder tomar um descafeinado e comer um éclair de café. Não o sabia, mas, quando fechada, a porta da livraria é uma daquelas, de metal, que corre na vertical, e o seu avantajado tornava os vidros e os livros das montras, de um lado e outro, numa paisagem frágil. Entreteve-se pelo supermercado, quase conseguiu encher um cabaz: para um eventual consumo nocturno levava bolachas e água; o resto poderia ser usado em casa, como se fossem compras da semana feitas a duzentos e cinquenta quilómetros de distância.

            Jantou virado para a janela, na bancada estreita que ali existia, com vista para o automóvel e para a chuva que tombava agora sem piedade e de todas as direcções. Oxalá amanhã não estivesse assim, era o dia em que ia ser feita a mudança final! Nas suas costas, a TV debitava o costume sobre casos novos de Covid, mortos por Covid, vacinas antiCovid que ainda não chegaram e já deveriam ter chegado. Os comentadores, os científicos e os reconvertidos para a pandemia, papagueavam o habitual, exprimindo-se no plural (nós isto, nós aquilo) como se tivessem descoberto alguma coisa por mérito próprio ou andassem a colaborar em algo de concreto para além da conversa fiada. O Governo estava atento e, como sempre, faria tudo quanto fosse possível, embora isso não fosse muito por estar quase tudo dependente da situação internacional. E, nessa perspectiva, havia pior que nós, diziam. Devia haver, apesar de tudo preferia estar ali do que em Beirute ou na Venezuela. Passou os pratos por água no lavatório do quarto-de-banho, para que não restasse no ar, a noite inteira, uma fragrância a molho de tomate. 

            Os canudinhos de massa com carne picada provocaram-lhe azia, ou talvez fosse de se ter deitado demasiado em cima do jantar. Deveria ter comprado omeprazol, que também era de venda livre, em vez da porra da aspirina. Agora era tarde, e através do oleado quebra-luz da janela chegava-lhe o assobiado da ventania, bela ventania a que se pusera! Piso por piso, como se andasse por lá, como se contasse ovelhas, começou a enumerar os móveis que, no dia seguinte, iria ser preciso tirar da casa: a alguns deles seria necessário desmontá-los antes; os dois da sala de estar, por exemplo. Iria ser bonito, se o tempo estivesse assim! Demoraria o dobro do previsto e os móveis - o verniz, a cera, a madeira -corriam o risco de manchar-se com a água. Mas, também, que lhe interessava? Iriam deixar de lhe pertencer... 

            Seria o único hóspede no hotel? Além da chuva e do vento, não ouvia nada vindo dos quartos em volta, ou, sequer, o motor do elevador, que não ficava assim tão distante no corredor. Acendeu a luz e espreitou o telemóvel: era quase uma da manhã e o melhor era tentar dormir, pois ficara de lá estar, para abrir a casa, às nove. 

  ***

            

            Apesar de se encontrar fechada desde 2011, ano da morte do pai, que sobrevivera seis anos à mãe, a casa, com três andares, mantinha intacto o recheio e dizê-lo não era apenas dizer que conservava o mobiliário nas várias divisões, mas, também, que os móveis mantinham o seu conteúdo praticamente íntegro: livros, centenas de livros; molduras com fotografias; roupas, de mesa, de cama e de vestir; caixas de costura com linhas, dedais e tesouras; copos, pratos e talheres; estatuetas e peças ornamentais de madeira, cerâmica e bronze... Havia também espelhos e quadros pendurados pelas paredes; a lenha amontoada que sobrara da que era usada na lareira; pneus velhos na garagem, e até alfaias de jardinagem e mangueiras enroladas no quintal. Tudo, praticamente tudo, do que ali sempre existira quando lá moravam todos: os pais, a irmã, uma empregada que ali vivera com o marido; vestígios dos anos de universidade em que o seu filho procurara a casa do avô para residência.

            Deus abençoe este lar, rogava um prato, redondo, de faiança azul, pendurado sobre a ombreira que separa a cozinha do hall e no qual só hoje voltara a reparar, pois o seu olhar terminal tornara-se radiográfico e prático: a casa deveria ser entregue vazia ao novo proprietário. Para que quereria o homem um lar que não seja o dele? Arrastou o pequeno escadote e, ainda de kispo e chapéu, retirou o prato do seu prego: devia estar ali há uns cinquenta anos e achava que nunca lhe tinha tocado anteriormente. Na mesma subida, chegou ao relógio de cozinha, parado nas sete e quarenta e cinco; podiam ser da manhã ou da noite, tanto fazia, era uma hora a que haveria sempre movimento por ali: ou se arrastavam cadeiras para pequenos-almoços ou se levantavam e pousavam testos em tachos e panelas. 

            Ao fim de um longo estágio no mercado imobiliário — a demora relacionou-se, supunha, com a transmutação em euros do valor afectivo que lhe atribuíam —, a casa fora finalmente vendida e o articulado do contrato de compra e venda fixava que deveria ser entregue devoluta (vazia, desocupada) no dia da escritura, formalidade prevista para meados de Janeiro D.P., no segundo ano Depois da Pandemia.

            Assim, antevendo que o esvaziamento seria empresa árdua e demorada, pôs-se a caminho ainda antes do Natal e, fazendo equipa com a irmã e o marido da empregada de uma sobrinha, cavalheiro que revelara óptimas qualidades na manutenção do jardim da casa quando este se transformou na selva costumeira dos locais desabitados, juntamente com essa ajuda, tinham dado início à desmesurada, interminável e, à posteriori, dolorosa tarefa de a despejar e, simultaneamente, decidir sobre o que fazer ao muito, ao quase tudo, que ali restava. O que fazer, por exemplo, com as velhas canadianas do pai? Quem as quereria? Seriam de mau agouro enquanto não se tornassem imprescindíveis.

            Às cinco da tarde do primeiro dia dedicado ao empreendimento, o anoitecer apressado de Dezembro expulsara-os dali. Em muitas das divisões as lâmpadas dos candeeiros tinham fundido e, noutras, estouravam mal se dava ao interruptor: a humidade acumulada numa casa fechada é omnipresente e nada lhe resiste, a água é o primeiro dos corruptores, o ferro e as paredes que o digam. De modo que não se podendo contar com a luz artificial, as sombras medravam como cogumelos e, pela sua parte, sentia-se já arrasado de tanto subir e descer escadas, de tomar consciência do quase nada que tinham adiantado nessas primeiras oito horas de trabalho.

            "Isto vai ter de ficar para outra vez", desabafou, desanimado, ao Sr. Serafim, que regressava dos contentores do lixo com o carrinho de mão vazio e um cigarro pendurado por sobre a máscara descaída. Nada que não soubesse desde sempre que sucederia, mas, nesse dia, pouco mais iniciaram do que a desocupação de arrumos sob escadas, o empurrar para o lixo da papelada sem préstimo evidente, e dos objectos avariados, destruídos ou tornados obsoletos pelo tempo há que estavam enclausurados.

            "Ficou muito entulho a sobrar dos contentores?", quis saber Artur, ainda preocupado por poder estar a irrequietar a tranquilidade e a curiosidade da vizinhança.

            "Quase nada, mal se nota! Apareceram logo uns gajos, feitos farrapeiros, a pedir que deixasse as coisas no passeio, em vez de as enfiar nos contentores. Um deles, foi logo chamar não sei quem, que tem uma carrinha. Levam tudo!"

            "Antes isso!"

            O Sr. Serafim concordava, ele próprio entreposto recolector entre as suas orientações de despejo e os contentores da esquina da rua. A pouco e pouco, o homem ia separando e amontoando num canto pedaços que lhe interessavam: velhos brinquedos para uma creche que havia perto da casa onde morava; materiais que poderiam ser de utilidade na sua oficina de biscateiro ou, simplesmente, objectos que achava bonitos.

            "Quando me vir chegar com esta tralha toda, a Ana Marília vai foder-me a mona!", apreciava, confortado, o monte que ia crescendo encostado aos pneus do carro dele, "é o contrário de mim: por ela, tudo quanto seja velho e usado vai direito para o lixo; já eu, tenho pena." 

 ***

 

            As campanhas seguintes encadearam-se a um ritmo progressivamente mais intenso, com menor intervalo entre as viagens de meio milhar de quilómetros empreendidas por Artur, pois Janeiro rompera o calendário com o seu primeiro dente e a escritura fora finalmente agendada para a última semana do mês.

            Cada um vindo do seu sítio, encontravam-se na casa habitualmente por volta das nove da manhã e ele, que tinha ido ficar de véspera ao seu hotel do Porto, dormindo mal e acordando cedo, acabava por, sistematicamente, ser o primeiro a chegar, a abrir cadeados e portões, a subir estores e escancarar janelas; a tentar expulsar a tristeza, a humidade e o intenso odor a mofo e, também, a fomentar uma corrente de ar que atenuasse, apesar de todos usarem máscara, o risco de contágio, caso algum deles estivesse infectado sem o saber, algo que se tornara corrente nesses dias de Janeiro, em que cada um conhecia já alguém próximo atingido pela doença, ou que acabara de ser diagnosticado e se aferrolhava em casa. Ele próprio ia sentindo o receio crescer, achando que não era a melhor altura para estar a fazer aquilo, era mesmo a pior, mas como evitá-lo? Da forma galopante como a epidemia estava a evoluir no país era plausível que, repentinamente, lhe retirassem o prazer de poder circular nas estradas; que os notários fossem forçados a encerrar e a deixar de fazer escrituras.   

            Planeadamente, vária gente ia chegando e partindo, cruzando-se entreparedes em cada uma daquelas últimas sessões: o tipo que vinha ver os livros e, talvez, comprar alguns; o antiquário; a rapariga que tinha uma loja de velharias; os primos que gostariam de ficar com algum dos móveis; e, amiúde, de surpresa e surpreso com a actividade frenética com que deparava, o futuro dono, um homem ainda novo de atitude e sorriso benevolamente contidos que surgia para conferir a altura dos degraus da escadaria para o primeiro andar - a que iria substituir o revestimento por madeira norueguesa - ou, acompanhado de um carpinteiro, para estudar as características das tábuas de madeira exótica, escondidas sob o verniz das portas dos quartos.

            "O Sr. Sequeira importa-se que descole uma ponta da alcatifa num dos degraus?", pedia delicadamente, como se fosse a pele de Artur que tivesse de arrancar e não uma alcatifa a esboroar-se por décadas de uso e anos de desuso.

            "Descole à vontade, faça como já estivesse em sua casa", respondeu com uma ponta de graça e desculpando-se pela retirada, pois o livreiro, que já devia ter acabado de farejar a estante da sala, reclamava a sua presença. 

            O homem dos livros pigarreia, diz que não está interessado em livros recentes ou de dimensões muito grandes e confessa estar particularmente orientado para volumes encadernados. Face à mal disfarçada surpresa do interlocutor, informou:

            "Sei no que deverá estar a pensar, mas, vou-lhe ser franco, é como o mercado está: já ninguém tem casa para calhamaços ou para andar a levá-los de casa em casa quando se muda. Hoje em dia, uma pessoa tanto pode estar aqui como, logo depois, ir morar para o estrangeiro... Este D. Quixote, por exemplo, dois volumes, tamanho quase A3, cinco ou seis quilos de peso... Eu sei que é uma preciosidade de 1929, tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo, gravuras do Doré; mas quem é que tem prateleiras com altura suficiente para arrumar isto, ou uma sala com área bastante para os ter exibidos em cima de uma mesa?"

            "Sim, essa parte compreendo. Mas esse interesse pelos livros encadernados?"

            "Ah, o mistério das encadernações... Pode não acreditar, mas, no outro dia, entrou-me na livraria um cliente a perguntar onde era a secção dos 'livros encadernados'. Disse-lhe que os livros não estavam arrumados por encadernação, mas por autores e assuntos, mas ele nem percebeu! O que queria era forrar estantes, compreende? Até sabia as cores de lombada e o tipo de dourados de que andava à procura... Depois punha-lhes uma luz a incidir não sei como e era um vistaço!"

            "Antigamente havia uns transformadores de corrente disfarçados atrás de umas lombadas falsas de obras do Shakespeare, cheguei a ver. Mas isso era para ocultar, não para expor..."

            Constança, a irmã, aproxima-se, pede licença e, apontando um caixote no chão do hall, pergunta "o que se faz a isto? Estava no arrumo por baixo das escadas."

            "Lixo", respondeu sem querer saber mais, cerrando os dentes e arfando atrás da máscara. 

            "Mas são os enfeites de Natal, Artur!", reclama ela apontando para uma caixa de papelão de onde despontam fitas douradas e reluzem esferas de vidro colorido.

            "Eu não tenho onde os meter, já tenho mais de um caixote com enfeites a atravancar-me a garagem", retrucou ele, rude. "Não queres tu ficar com eles...?"

            "Eu?! Num andar? Talvez uma bola ou duas, o menino Jesus ou uma ovelha do presépio, como recordação... Recordas-te quando tu e o pai saíam por aí a buscar musgo para o chão do presépio?"

            Mas ele encontrava-se rolhado no que se referia a recordações e já lembrava ao homem dos livros que, no andar de cima, esperavam mais três estantes e desaparecia com ele escadas acima, descobrindo, ultrajado, no trajecto, que sobravam dois quadros pendurados na parede: como é que ninguém tinha reparado que ainda ali estavam?!

            "Constança", gritou para baixo, "quando o Sr. Serafim chegar dos contentores, pede-lhe se tira isto daqui..."

            "O quê?", ela aparecera ao fundo das escadas e olhava para cima: estava a ficar um pouco surda e, com esta moda das máscaras, perdia-se metade do que a gente dizia.

            "Pede ao Sr. Serafim se tira estes quadros da parede..."

            "Está bem. E o que se lhes faz?", ficou a ecoar pelos degraus, pois ele já desaparecera da balaustrada e explicava ao homem dos livros aquela colecção de obras do Júlio Verne, que enchia uma prateleira e era a primeira tradução portuguesa das obras dele, feita na primeira década do século XX. E estava praticamente completa...

            "Talvez me interesse... Capa dura, encadernações com umas belas cores. Quanto quer você pelo conjunto?"

            "Sei lá; não tenho ideia...; mas cada um deles tem duas ilustrações, um pouco do género das do Doré", acrescentou já algo contagiado pela febre do negociante.

            Ao fim de mais uma jornada — as tais cinco da tarde em que o crepúsculo e o cansaço os expulsavam —, ao ligar o alarme e fechar as portas, os três tentavam animar-se, reafirmando que já "se notava qualquer coisa". Uma qualquer coisa que era o inverso do que fora o encher — alegre, premeditado ou espontâneo — da casa; feito, objecto a objecto, ao longo de quatro décadas, ruminava Artur de novo metido dentro do automóvel, devolvido ao sul e dissolvendo-se no trânsito que buscava a saída da cidade e se escapava em direcção à noite escura.

 ***

 

            Quando o telemóvel despertou, já ele estava no quarto de banho a fazer a barba. Acordara ainda antes das sete e fora logo correr o oleado da janela, a tomar o pulso ao dia. Estava escuro, chovia, mas já não ventava como na véspera, ao menos isso. Se os tipos encostassem o camião mesmo ao lado da porta principal, pouco espaço, pouco tempo sobraria entre a soleira e o veículo. Mas, apesar disso, tudo quanto era preciso despachar dali para fora iria sofrer atraso. Janeiro não é Junho! Por descargo de consciência, ao ir buscar a bandeja com o pequeno-almoço, perguntara na recepção o que teria de fazer se viesse a precisar de ficar mais uma noite.

            "Na prática, é só aparecer", disse a senhora baixinha que substituíra a Daniela. "Ou, se puder, dê uma telefonadela logo que saiba se vai precisar ou não... Estamos longe de ter a lotação esgotada."

            A derradeira sessão, a que esvaziara mesmo a casa e a deixou só paredes e sombras, dividira-se por duas parcelas e arrastou-se por dois dias: no primeiro, a associação benemérita que iria levar consigo os móveis e objectos sobrantes escolheria e carregaria o que lhe poderia render ou servir para alguma coisa, e o dia subsequente seria, então, gasto a recolher o que consideravam inútil, os monos imprestáveis, e esse tempo e transporte remanescentes deveriam ser pagos pelo dono da casa. Para se fazer perceber melhor, o homem da Associação explicava que havia gente que os chamava a um quinto-andar, sem elevador, só para se livrar de trastes, como se eles fossem "lixeiros ou o carago!". Tinha lógica, nem tudo, mesmo o dado, pode ser grátis. No caso da casa dos pais, havia um frigorífico quase podre, uma arca congeladora, roída pela ferrugem, que pesava toneladas e jazia na cave; camas e armários que só conseguiriam atravessar portas desmontados. 

            "Ao menos, aqui, vocês não vão precisar de andar a subir e descer cinco andares, por entres escadas estreitas: a escadaria é a que você vê e há portas que cheguem para fazer sair tudo à larga..."

            Mas, apesar das facilidades invocadas, o homem da associação benemérita identificava escolhos à vista:

            "Estes três, vão ter de sair daqui à machadada", apontava num dedo rápido.

            "À machadada, como?!", sobressaltou-se Artur.

            Estava para além da sua compreensão como era possível referir nessa linguagem de lenhador os dois grandes móveis-estante da sala-de-estar, o louceiro da sala-de-jantar. Um desses armários, aquele onde estivera encastrada a TV, concentrara, concorrendo com a lareira, todos os olhares presentes na sala durante dezenas de anos; o outro os livros mais nobres e, talvez, os mais encadernados da casa, pois a maior parte deles viera já de casa dos avós, de épocas em que se revestiam com capas duras os livros brochados. Quanto ao louceiro, expusera atrás da suas portas de vidro porcelanas, cristais, tudo quanto havia de mais comemorativo, frágil, colorido e tilintante. Ouvia ainda a voz da mãe, agora mais ecoante na sala quase vazia, advertindo os filhos e os netos, advertindo cada nova empregada, dos cuidados a ter quando se rodava a chave dourada de cada uma daquelas portas.

            "Uma flute de cada vez... Tiram-se as taças uma a uma, nunca aos pares ou à molhada!"

            Mas o tipo da Associação - e aquele, dos três que tinham aparecido, era o que decidia, era, definitivamente, o interlocutor - alinhava por um ponto de sintonia completamente diverso.  

            "Vão ter de sair à machadada: feitos em tábuas! Quem é que você acha que vai querer isto?", perguntava, irado só de imaginar o trabalho futuro, apontando o imenso móvel da TV, que fora concebido e construído para ocupar precisamente todos aqueles metros entre o chão e o tecto, entre a lareira e as portas-janelas que davam para o terraço de tijoleira.

            "O que é que você acha que se pode fazer com um mono deste tamanho?", continuava ele, explicando-se: "Quem é que, hoje, tem casa para isto? Nem dado! Vai directo para o ecoponto e, antes disso, vamo-nos ver gregos para o arrancar dali!"

            Mas nenhum daqueles três era grego: o que o exortava - o mentor, o líder da equipa - era português e afeiçoado à entoação de uma rixa de rua; um dos outros era um ucraniano que só se exprimia, e apenas para si próprio, monologando na língua materna e o terceiro, um brasileiro de um subtipo tímido, só abria a boca se lhe dirigissem a palavra. Unia-os o serem ex-toxicodependentes, as normas da Associação e o trabalharem como cães, sem parar nem pestanejar.

            "Você é que sabe...", ouviu-se dizer.

            "Eu é que sei, não; quem me dera não saber! Mas depois chegamos ao ecoponto municipal e os gajos não nos deixam descarregar a carga se não estiver legal, como eles acham que deve estar..."

            "Bem, mas escusamos de estar a perder tempo a discutir isso agora. Isso será só amanhã, certo?"

            "Sim, mas é só para que fique a saber com o que conta. Hoje levamos o que nos interessa e amanhã o que não nos interessa, e isso é por sua conta."

            "O Artur, amanhã, não devia assistir a isto", sugeria a Evelina, que ouvira a conversa e, após regatear um pouco (já tratara de assuntos similares com empresas semelhantes), desistira também de elencar soluções alternativas. O seu aparte piedoso era o que se poderia considerar, pensou, um conselho imprestável: atento, bem-intencionado, mas irrealizável. Como dizer a um morto que não deve assistir à sua própria autópsia!?

            "Que horas tem?", perguntara em resposta, "é que fiquei de telefonar para o hotel se precisasse de ficar mais um dia..."

            Jantou outra vez massa com carne picada, mas variou na sopa e pediu creme de cenoura. De costas para a TV, ouviu o telejornal enquanto comia. Pelo que diziam, haveria negociatas em torno das vacinas, quer a nível internacional quer a nível caseiro: as farmacêuticas produtoras vendiam primeiro a quem pagava mais e não cumpriam encomendas assumidas e, por cá, havia uma fila de presidentes de junta, de câmara, de dirigentes da segurança social e de outros inúteis a fazer-se picar antes de quem é suposto. Era a tal Humanidade aprimorada que a pandemia iria incubar e revelar, como vaticinavam certos profetas dos afectos. Ventou e choveu toda a noite e com tal violência que se levantou para ir espreitar pelo ondulado do espesso oleado que cobria a janela. Lá fora tudo era negro e o automóvel parecia uma barra de sabão antracite, ameaçando dissolver-se sob as bátegas de água. É como se estivessem sobranceiros ao mar e o mau tempo chegasse temperado pela imensidão raivosa do oceano. Mas não, como lhe tinham dado o mesmo quarto, continuava a conseguir vislumbrar o rectângulo, a custo distinguível na noite, da Faculdade de Medicina Dentária. Voltou para a cama e deu de enumerar o que restava sair da casa e já não era assim tanto; achou que iria precisar de algumas ovelhas suplementares para atingir o sono. 

 

 ***

            O último dia, uma quinta-feira, começou à hora do costume. Nesse dia, como já acontecera na véspera, estivera sem a companhia ou o auxílio da irmã e do Sr. Serafim, ambos aferrolhados em casa com Covid19, tal como o cunhado, marido de Constança, e a D. Ana Marília, mulher do Sr. Serafim, a tal que era empregada da sobrinha, veja-se o rosário de contactos! Já vogavam naquela fase da pandemia em que ninguém fazia a mínima ideia de quem pegara a doença a quem, e ele próprio deixara de estar seguro do seu estado viral! Para já, sentia-se normal, mas ter a certeza... 

            "Você tem é de ter cuidado!", dissera o cardiologista, a quem telefonara a saber a opinião sobre o empreendimento, "nada de se meter em esforços isométricos. E, como vai estar com mais gente no mesmo espaço, veja se não se contagia: não o aconselho a ir parar aos cuidados intensivos numa altura destas, aliás em altura nenhuma!"

            Era o que habitualmente resultava de pedir orientação aos médicos: do ponto de vista prático ficava-se na mesma e vinha-se sempre um pouco mais ansioso.

            

Como companhia, para além dos três carrejões da Associação, voltara a aparecer a Evelina, uma amiga que levara alguns móveis e reposteiros para si, alguns livros, alguma roupa, e que acabara por arregaçar as mangas e ajudar onde pôde, como se fizesse parte daquele filme onde apenas entrara para o último capítulo e quase por acaso. O que é o destino, e é claro que o destino fez de tudo para que esse derradeiro dia amanhecesse com o céu a destilar chuva e a humidade fosse tão intensa fora como dentro de casa, onde até os espelhos dos interruptores brilhavam de água e estes escorregavam sob os dedos ao serem premidos.

            Pela hora do almoço, a casa estava praticamente esvaziada: restava, no andar de cima, os ferros de uma cama por desenculatrar; um armário, na cave, para desirmanar; uns sofás e umas cadeiras empilhadas pela sala-de-estar; para além de uns caixotes no hall da entrada. Mas era hora de almoço: os homens tinham de o ir fazer, obrigatoriamente, à cantina da Associação, e Evelina, que não morava longe, ficara de ir preparar o almoço à mãe.

            "Onde vai almoçar, Artur?", perguntara, "vai ao seu hotel?"

            "Não, já fiz o check-out, já não dá; fico-me por aqui..."

            "Eu gostava de o poder convidar", respondeu ela prevendo o destino imediato do companheiro. É que tudo, fora daquelas paredes, estava interdito pelo confinamento e não havia restaurante, café ou seja o que for onde se pudesse entrar, sentar, ir.

            "Não se aflija, fico muito bem; trouxe umas bolachas e tenho uma garrafa de água mineral quase cheia."

            Solidária, ela desencantou uma pera e uma banana na carteira antes de arrancar.

            "Estou aqui por volta das três", despediu-se. Era a hora a que os outros três tinham combinado regressar para terminar, de vez, o serviço. E com a saída dela entrara o silêncio.

            Após lavar a pera na banca vazia da cozinha, Artur levou o farnel para o peitoril da lareira e arrastou a antiga poltrona do pai para o meio da espaçosa sala-de-estar, para mais próximo da luz frouxa que chegava do exterior. Dali a escassas horas aquela poltrona, de morno veludo vermelho, iria ser exilada para sempre, designada aos adereços de um teatro, fazendo companhia à roupa que sobrara pendurada no guarda-vestidos do quarto dos pais. Fim reconfortante, apesar de tudo, quando a alternativa era o lixo ou os contentores da benemerência. 

            "Darão uns belos trajes de época", ajuizava Evelina.

            Sentou-se no cadeirão, deixou o olhar vaguear pela sala nua, trincou a pera, com casca e tudo: já não restava um prato, uma faca, naquela casa, e, como guardanapo, sobrara um rolo de papel higiénico que passara a manhã a desdobrar para desembaciar os óculos. Lá fora, a chuva continuava a cair e, como conservava as portas-janelas da sala abertas, o som chegava-lhe claro, monótono, aqui e ali travado na queda pelas folhas das plantas do jardim. Consultou o visor do telemóvel: era uma e um quarto, teria, mais ou menos, uma hora para estar sozinho. Por volta das duas e meia iria aparecer Vasco, o filho de Constança, para recolher uns pacotes para a mãe, emparedada em casa pela quarentena.

            Fora por aí, entre o cascabulho da pera e o puxar pelas abas da banana, que lhe chegou o zumbir da campainha. Soube, tão logo, que o som era proveniente de uma campainha interior, pois as das portas exteriores estavam avariadas e inactivas há séculos; já ninguém que chegasse as pressionava, sequer, por erro ou esquecimento. 

            Acontecia que, em várias divisões da casa e em todos os quartos de dormir do andar superior, existia à cabeceira da cama - gémeo do usado para acender e apagar a luz principal do quarto - um fio longo, terminando-se por um interruptor de campainha, um manípulo de baquelite oblongo a que se chamava, precisamente, 'a pera'. Em baixo, numa das paredes da cozinha, um pequeno painel com números resumia a informação sobre quem chamava: a cada divisão correspondia um algarismo e, quando a pera respectiva era pressionada, uma pestana com esse algarismo descaía e tornava visível a origem da chamada. Como o zumbido, vindo da cozinha, continuasse, Artur levantou-se e foi verificar. Sem grande surpresa, constatou que o algarismo cuja ficha caíra era o correspondente ao quarto dos pais. Carregou no botão, existente sob o painel, que anulava os toques e fazia regressar os algarismos à posição inicial, de espera. Nada sucedeu, o número 6 continuou visível, vibrando levemente.

            Subiu as escadas, dirigiu-se ao quarto. Como nos outros, os fios da luz e das campainhas jaziam agora ao longo do soalho, como tripas abandonadas e inúteis. Acocorou-se e premiu o interruptor da pera: o zumbido cessou. Olhou o quarto, vazio e silencioso, e voltou à sala e à banana. Lá fora, a chuva acalmara um pouco, a luz aproveitava para tentar atravessar os vidros embaciados, mas o interior da sala continuava sombrio, a lareira assemelhava-se a um enorme estaleiro abandonado e ao lado, na parede, negrejava uma imensa cicatriz rectangular no local onde o móvel da TV fora arrancado. Acomodou-se no cadeirão vermelho. Seria a última vez que ali estaria e esse ali, onde ainda estava, já não era bem fosse o que fosse, embora ainda fosse alguma coisa...

            O zunido fez-se ouvir de novo na cozinha. Levantou-se e foi verificar. Era a mesma coisa de há pouco e o botão de anulação da chamada, sob o painel, voltou a não funcionar. Voltou a subir as escadas, voltou a agachar-se no interior do quadrado onde, outrora, estivera a cama dos pais. Carregou no interruptor da pera, mas, desta vez, não resultou: o zumbido continuou a chegar-lhe do andar de baixo. Desatarraxou as duas metades de baquelite, reconstruiu a pera, voltou a accionar o interruptor. Nada. Desistiu, desceu as escadas e, após ficar um pouco na cozinha, a olhar a pequena placa esmaltada onde o 6 zumbia, regressou à sala. O som ficou, em fundo, a balir, um balido eléctrico, enrouquecido, até que se terá cansado e extinguiu-se. Não voltou a acontecer.

            Do cadeirão, pelas portas-janelas, viu chegar o sobrinho, pontual, aferrolhando uma máscara cirúrgica sobre a outra, uma bico-de-pato. Viu o seu olhar deter-se sobre um dos quadros que tardara a ser retirado da parede das escadas.

            "Vais levar aquele, tio?", apontou.

            "Não, não, já não tenho mais paredes em casa!"

            "Importas-te que o leve? Não é por nada, nem sequer gosto muito da pintura. Mas quando era pequeno e dormia cá, em casa dos avós, se me levantava durante a noite e vinha espreitar às escadas, a tentar perceber os barulhos no andar de baixo, era a primeira coisa que via."

            "Leva, leva. Eu vou ajudar-te a meter as coisas da tua mãe no carro..." 

            Às três chegaram os restantes, em primeiro os homens da Associação. Achara-os agora mais cordatos, o mentor já não latia resmungos com a mesma intensidade, o ucraniano proclamava piadas tímidas sobre os parafusos que restavam pelo chão e o brasileiro, um tipo dos seus quarenta anos, considerava, mirando em volta, durante a pausa antes do recomeço, que era uma bela casa; apreciava a extensão das janelas, aquela parede quase coberta por vidro que dava continuidade entre a sala-de-estar e a de jantar; a profusão de plantas no exterior.

            "O senhor passou aqui a sua infância?"

            "A infância e a juventude; saí daqui para ir trabalhar..."

            "Deve ter sido bom de morar...", alvitrou o brasileiro.

            "Sim, sim; imagine isto num dia de sol..."

            "Até hoje...", contentava-se ele.

            Depois chegara Evelina, com o ar apressado com que sempre chega a qualquer lugar; um ar decidido, preparado para resolver, orientar, dar instruções. Da parte de tarde, os homens da Associação iriam ficar por sua conta, tinha-os subcontratado para lhe irem levar as coisas - das que agora lhe pertenciam - a um outro destino. 

            "Mas para que quer ela tantas cadeiras?", perguntava o carrejão mentor, apontando a fiada empilhada à entrada da sala.

            "É que ela tem um teatro", explicou Artur "e num teatro gastam muitas cadeiras..."

            Ele encolheu os ombros, suspirou.

            "Já mal temos espaço no camião, e ainda vamos ter de enfiar lá isto! E o sofá vermelho, também vai?"

            "Também."

            No final, despediram-se dele com cotoveladas amistosas, um deles de punho contra punho. Saltaram para a cabina do camião, ele fora ajudá-los na manobra de sair o portão e entrar na estrada.

            "Não precisa mais de mim aqui, Artur?", quis saber Evelina, "é que fiquei de ir à frente, apontar-lhes o caminho."

            "Não; vá, vá. Obrigado por tudo. Eu também só vou descer as persianas, ligar o alarme, e pôr-me a andar..."

            "Hoje ainda vai chegar a casa a horas de jantar."

            "Parece que sim..."

            Antes de puxar a porta contra si, olhou para dentro. Da posição onde estava, e com a casa assim vazia, conseguia ver toda a extensão da casa, de uma parede à outra, uma perspectiva que não recordava ter tido antes. Havia a porta da entrada, em cuja soleira estava, a seguir a porta aberta do vestíbulo, depois o hall, depois a grande porta envidraçada, corrida para trás, que dava acesso à sala de estar e, mais longe, na parede ao fundo, deixavam-se vislumbrar os estores descidos das porta-janelas, por onde se insinuava um fio ténue de luminosidade exterior. Meteu a chave na fechadura, olhou outra vez o interior, e fechou a porta. Lá dentro, o alarme iniciou os pios intermitentes de que fora activado.  

 

 

                                                                                                 (Março 2021)

 

 

 © Fotografias de cima para baixo: 1) Vera e Elisa Santos, junho 2022; 2) pedro serrano, 2011; 3) Elisa Santos, 2021.