16 junho 2022

SOLENEMENTE INCOMPETENTES

Taxa de mortalidade materna em Portugal, 2002-2020. Fonte: DGS, INE.


Apesar de termos das mais baixas natalidades do mundo, Marta Temido e o seu Ministério da Contingência prefeririam que os portuguese fornicassem ainda menos, pois nem mesmo com tão poucos partos consegue dar conta do recado.

Perca um minuto a observar o gráfico, que foi feito pela DGS (isto é: Ministério da Saúde) com base em números do INE. Esta informação é pública, a tal ponto acessível a quem a quiser ver que eu próprio acrescentei a informação respeitante ao ano de 2020, a qual, apesar de disponível, não constava ainda no gráfico da DGS.

Na imagem pode acompanhar-se a evolução nos dezoito anos de uma coisa que dá pelo nome de taxa de mortalidade materna, e que representa o número de grávidas, parturientes ou mães recentes que morreram em consequência do processo de gravidez e parto. Diga-se que este indicador não espelha somente as mortes maternas, sendo tão sensível que é considerado internacionalmente como reflectindo o grau de desenvolvimento (ou atraso) de um país. Em Portugal, este indicador foi desgraçadamente alto durante os anos 50 a 80 do século passado, tendo, progressivamente, melhorado e atingido o extraordinário valor de 0 em alguns dos anos da década de 90, reflexo da melhoria das condições gerais do país e, muito particularmente, da planeada atenção dada à gravidez (consultas regulares de seguimento, vacinação) e às condições em que se efectuava o parto (parto hospitalar e não podendo ocorrer em qualquer hospital). O cuidado com esta área foi tanto que, apesar do protesto de algumas autarquias mais bairristas, se encerraram pequenas maternidades sem o pessoal ou os meios necessários e, em nome de um treino sério, hospitais com um número demasiado reduzido de partos deixaram de ser oficialmente reconhecidos pela Ordem dos Médicos como local apropriado para formar a mão dos futuros especialistas.  

Conforme mostra a imagem, a partir de 2005 esse panorama sorridente começou a inflectir, termo que o Ministério da Contingência adoptou recentemente e adora usar, a crescer, regularmente e previsível como um relógio, tendo sofrido uma escalada imparável a partir de 2016 (ainda o Covid dormia no seio do não-ser) e atingindo em 2020 o himalaiano valor de 20,1 mortes maternas, valor que não se registava por cá desde 1980 (19,1 mortes maternas), ultrapassando até os limites máximos previstos na haste vertical do gráfico que, coitada, não ia além do valor "20". 

A pergunta é evidente: e ninguém se deu conta disto, desta tendência que tem 15 longos anos de evolução e 6 de escalada? Não, pelos vistos, ou, se o deram, fizeram o que também é hábito no tal Ministério da Contingência: mandou-se buscar a pá e a vassourinha e toca de varrer para debaixo do tapete - podia ser que ninguém desse conta, particularmente os jornalistas, que às vezes gostam de escabichar nos números. É claro que, em relação a este problema, houve quem, na altura própria e repetidamente, se desse conta da ausência, carência ou esgotamento de alguns requisitos essenciais e as associações profissionais (médicos, enfermeiros, administradores hospitalares) queixaram-se repetidamente à tutela, avisaram; em seguida houve até demissões de responsáveis hospitalares e declarações de isenção de responsabilidade assinadas por centenas de profissionais que viam a barragem prestes a ceder ao volume das águas que trepavam. Faltava um pouco de tudo, mas sobretudo gente e a pouca que havia, mal paga e exausta, debandava para paragens mais risonhas, fosse no sector privado fosse no estrangeiro. Tudo isto, recorde-se, foi como pregar no deserto; tudo, sublinhe-se, se passou antes das costas-largas do Covid.

De repente, pelo gatilho de um recém-nascido que morreu nas Caldas da Rainha por falta de assistência, a coisa estoura, como sempre acontece aos abcessos deixados à sua sorte. Mas, para além disso, o inchaço gravidez vem com uma idiossincrasia chata: não se consegue adiar a resolução para as calendas com a mesma facilidade com que se procrastinam operações às cataratas ou às juntas emperradas dos velhos. Quando as águas estouram há que ter um local que receba e cuide, de outro modo, e em poucas horas, pode morrer a mãe, pode morrer o filho, podem morrer ambos. E isso dá uma péssima imagem na abertura dos telejornais e depois lá tem de ir alguém dizer que foi criada uma rigorosa comissão de inquérito... Num serviço atrás do outro, esmagadoramente na cronicamente incapaz Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, a recepção de grávidas e parturientes nos hospitais do SNS foi cerceada e quem precisasse teria de correr Ceca e Meca até que finalmente alguém o recebesse. "Aguenta Goretti, respira fundo e cruza bem essas coxas! São só mais 80 Km..."

Estremunhada, Temido surge finalmente nos LCD a assegurar estar alerta, que já no dia seguinte começará reuniões de alto nível na área da capital e seus subúrbios, onde os serviços de obstetrícia estão a ser assegurados até por médicos ainda estagiários da especialidade... No dia seguinte, de facto, já ela tinha dado a volta ao texto e composto a narrativa para acalmar o povo, uma narrativa superficial, patética e, de certo ponto de vista, intelectualmente desonesta. Ora o que foi ela descobrir como linha de fuga? À falta de, desta vez e assim tão de repente, não poder descarregar culpas directamente sobre a Ordem dos Médicos ou sobre o Covid19, engendrou que a falência da capacidade dos hospitais é como se fosse uma espécie de pandemia, ou seja, que, no fundo, é incidente que pode simplesmente suceder, como se fosse uma bactéria ou um vírus; um acontecimento exterior que, sendo exterior, não é responsabilidade dela... É uma teoria fatalista, é o destino! De tal modo se satisfez nesta teoria que acabou a afirmar, contente, peremptória e pedagógica, que o Ministério irá usar nesta situação (dos serviços que fecham como berbigões à proximidade do dedo) a mesma estratégia de contingência que se mostrou tão eficaz no Covid19: a Contingência, saia um plano de contingência para as maternidades de Lisboa! 

Resumindo:  isto pode acontecer a qualquer Governo, com a naturalidade ou a imprevisibilidade do choque com um meteoro ou de uma praga de gafanhotos e o caminho para enfrentar a disrupção é a contingência, que é como quem diz: encarar o problema criado como uma anormalidade e não como algo que compete a qualquer SNS civilizado e minimamente capaz: a função de estar vigilante e ser responsável pela, neste caso, saúde materna da sua população.

Para além da Contingência, Marta Temido mostra-se ainda disposta a tudo, até a ir buscar obstetras ao estrangeiro, até a formar médicos obstetras no estrangeiro se preciso for! Talvez alguém lhe pudesse ter dito que não são necessários tais extremos de heroísmo, que há por cá médicos suficientes para os (poucos) partos que vão pingando e que são já inferiores aos portugueses que morrem anualmente. Acontece que grande número desses profissionais estão no sector privado que, actualmente, é já responsável por cerca de 20 % dos partos que se fazem no país. Talvez, para começar a resolver o assunto, inadiável e urgente, de quem necessita de parir, a ministra devesse ter pensado nisso logo à cabeça: se não sou capaz e há quem consiga, tenho de ir ter com esse que consegue. É uma vergonha ter de chegar a isto? Sem dúvida, mas afinal quem deixou chegar o descalabro até aqui, apesar do que os números e os gráficos gritam aos quatro ventos? 

Nossa Senhora da Contingência.

Na sua torrente explicativa, na solenidade das conferências de imprensa ao país, Temido, para além de pedir que nos uníssemos todos em volta da fogueira e não exagerássemos nas queixas, prometeu também ir formar: a) uma Comissão, b) um grupo de acompanhamento, c) uma rede nacional de referenciação em saúde materna, d) outras miríades de iniciativas que, pelo tom de peditório nacional, recordam as antigas campanhas sanitárias dos países em vias de desenvolvimento e tresandam a ineficácia e entretenimento...

À margem de tudo isto, o sector privado mantém-se discretamente em silêncio. É estranho, mas não vi ninguém interessar-se em ir perguntar-lhe se tem tido problemas com os partos, o seguimento de grávidas ou a falta de médicos obstetras. Pelos vistos não, pois se até se dispuseram a dar uma mãozinha a Marta Temido nesta hora aflita.

Numa excelente e recente biografia sobre Fernando Pessoa, escrita pelo norte-americano Richard Zenith, o poeta refere-se a uma certa categoria de portugueses como sendo "solenemente incompetentes". Pessoa fala de uma realidade que o rodeava nos anos de 1920, mas o termo parece ainda útil cem anos depois.    

 

 

   

 

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