10 julho 2025

ESCADARIA PARA O PARAÍSO (Stairway to Heaven /Απολαύστε τον Παράδεισο)

Asteria.

Provavelmente existiam outros, mas, assim, que me lembre, cheguei a frequentar três cinemas ao ar livre nos anos 70 do século passado: um deles no Porto, nas traseiras da igreja do Marquês e gerido pela própria congregação; um outro no clima compatível das noites doces do verão de Faro, e um terceiro, cujo surgimento — precisamente por motivos climáticos — me surpreendeu, este último na ilha Terceira, nos Açores, e nas cadeiras duras do qual vi, no longínquo ano de 1979, o filme Convoy (O Comboio dos Duros), realizado por Sam Peckinpah um ano antes, com o cantor e compositor Kris Kristofferson no papel principal, adjuvado pela bela Ali McGraw como morena de serviço.

Depois disso não mais tropecei ou ouvi falar em cinemas ao ar livre e, como vira acontecer um pouco com os circos, calculei que tivessem passado de moda e estiolado, extintos dos mapas pelos anos gelados em que todos os cinemas — quanto mais estes parentes pobres sem um tecto — foram cilindrados, primeiro pelos videoclubes, em seguida pelas cavernas alcatifadas das colmeias multiplex dos centros comerciais, e mais recentemente pela torrente sedentária e inesgotável do streaming caseiro.

Morreram portanto, pensava eu (ou melhor: nem sequer pensava no assunto), tinham-se transformado numa reminiscência apenas celebrada em documentários bem intencionados, ou em películas sentimentais, louvando e glosando os dias ingénuos e os bons selvagens, como Cinema Paraíso. Isto até à tarde em que, arrastando a minha mala com rodinhas pelos empedrados da cidadezinha de Rethymno (Rétimo, na tremenda tradução portuguesa), situada algures na costa Norte da ilha de Creta, topei no Cine Asteria, recinto nomeado segundo a deusa do mesmo nome, cuja etimologia do nome aponta para o muito apropriado significado de Estrela. Ali estava ele, à devassa dos meus olhos terrenos e incrédulos, pois cumpria todos os requisitos das coisas desusadas, ultrapassadas, kitsch, quiçá oníricas.

Havia um muro, flamejando num amarelo que desafiava qualquer paella, e amparando-se a ele cartazes do filme em exibição e dos que se seguiriam a esse em próximas matinés. Perfilados ao longo desse muro, uns degraus conduziam a uma esplanada, a três ou quatro mesas sob guarda-sóis e a um buraco quadrado no muro — o amarelo da abertura debruado num castanho-sorvete-de-palito — a fazer de bilheteira. De momento, estava vazio como uma guarita abandonada, mas, espreitando por ele, para além dele, entrevia-se um maciço de vegetação que se exibia já do interior do recinto cinematográfico. De momento, igualmente, os únicos seres que por ali andavam eram três ou quatro gatos de fornada recente, movendo-se na elegância aguçada dos famélicos. 

Voltámos uma noite, claro, curiosos e sentindo-nos prendados pela informação de que a fita em exibição (Megan 2.0) seria exibido no americano original e legendada em grego. A calmaria reinante no recinto era semelhante à da tarde em que ali espreitáramos a primeira vez, apenas havia agora uma senhora encaixada na bilheteira e as portadas castanhas do pequeno bar, pintado a amarelo, ao fundo da esplanada, tinham sido recolhidas para que todos os acepipes que devem adereçar uma sessão de cinema se expusessem no seu esplendor: havia popcorn, nachos, chips, cookies, oreo, amaretti e até nero, que é água em grego. Para além disso, apenas os gatos do costume, cirandando entre as mesas a ver o que poderia pingar. Também ainda era cedo e fôra escusado termo-nos apressado, como se a sessão das nove (haveria outra às vinte e três) pudesse esgotar; deste modo sentámo-nos na esplanada, vendo as vistas, isto é os gatitos, passeando, à falta de melhor, a ponta de uns dedos descaídos pelos lombos espinhados.

Quando a porta larga no muro se abriu para a sessão, acabámos por ser uma magra dúzia de pessoas espalhadas pelo recinto. A fita seria projectada na parede de cimento que separava uma das extremidades do espaço da rua e a plateia era ampla e confortavelmente mobilada por cadeiras de lona à realizador de cinema, cada par delas intercalada das restantes por uma mesa metálica de café, onde aguardava um cinzeiro de vidro.

Ao começar do filme, restava ainda claridade no firmamento e os sons soltos da rua chegavam-nos, sem cerimónia, por sobre a placa de betão do ecrã. Mas, sem aviso, a coisa aqueceu e as colunas rouquejaram e troaram um genérico que logo esbateu a proximidade do exterior, sem, no entanto, causar agitação nos gatos, que, prevendo a mudança de cenário das eventuais migalhas, se passeavam pelo recinto alheios ao tremeluzir das imagens e aos decibéis da banda sonora. Rapidamente lhes segui o exemplo, pois o filme era mau demais e o olhar foi-me sendo disputado pela envolvência, pela cor e macieza do céu que por ali andava a pousar-me os ombros sem pedir licença, um céu agora escuro e respeitador da concorrência, mas bem longe de se lhe poder chamar de breu, pois um azul mediterrâneo nunca se extingue, mesmo não havendo lua ou estrelas visíveis, como era o caso.

Acabámos por voltar aos degraus do Cine Asteria diversas vezes (diariamente, para ser franco), mas não para rever o Megan 2.0 ou os seus sucedâneos. Aqueles gatitos arranhavam a memória, estavam magros demais e era óbvio que o recheio do bar não lhes servia, nem a sétima arte lhes enchia o apetite da alma o suficiente. Numa revoada fulgurante, aderiram instantaneamente àquelas novas sessões de paté de salmão e frango, comprados por nós numa mercearia da vila e, para satisfação da ânsia de todos, generosamente disperso em grumos pelos degraus da escadaria de cimento. 
     © Fotografias de pedro serrano, Rethymno (Creta), junho 2025.



04 julho 2025

20 junho 2025

ESTRADA PARA SARAJEVO

1. Enfiei uma das alças da mochila ao ombro, rodei a chave na fechadura da porta e encostei o portão do quintal, produzindo eu próprio o ruído familiar que me chega aos ouvidos sempre que alguém, que chega ou vai, o fecha. Virei à esquerda e percorri o pedaço de rua que a liga à avenida. Desci a avenida, constatando como é diversa a perspectiva de quem a palmilha daquela de quem percorre o mesmo trajecto de automóvel. Arbustos espreitam por sobre os muros, tufos e manchas coloridas de flores, pessoas entretidas na monda dos jardins, um cão que, lá ao fundo, atravessa a rotunda num trote leve e matinal; tantas sonoridades que, como uma malha sonora, se elevam e cruzam para acompanhar o meu breve caminho até à paragem das camionetes. Fico por ali, a aguardar a chegada da minha, e este seria um momento em que, se ainda fumasse, acenderia um cigarro suspensório. Em alternativa, vou consultando o relógio do telemóvel, como se me fizesse diferença se a carreira irá, ou não, chegar ao minuto preciso impresso no bilhete.

A viagem até Lisboa demora uma hora e a camioneta, aparecida após uma curvatura triunfal da sua grande massa, saúda-nos emitindo um silvo de portas escancaradas, extensivo a mim e à senhora que aguarda fumando e balouçando a perna no banco de alumínio, centrado sob o coberto de plástico ondulado da paragem. Vai pouca gente, para já, e escolho um lugar com o desperdício do privilégio dos primeiros a chegar. Dali, da minha posição altaneira, vejo deslizar a paisagem, que, geralmente é um conglomerado, pouco mais que baço se transito aquele asfalto ao volante e ao nível de um rasteiro rés-do-chão. A camionete vai-se enchendo à medida que silva e se detém por um breve minuto nas paragens da rota, pois o balanço demográfico é desequilibrado: entra gente e não sai ninguém. Campos verdes, canaviais, árvores (sobreiros, pinheiros mansos, acácias, magotes de eucaliptos); valas e valados, extensões aprumadas de vinhas e pomares..., tudo isso vai forrando o silêncio entorpecido que paira no habitáculo, uma modorra gerada por quem dormita, por quem pensa para os seus botões, ou se embrutece fixando um ecrã. A paisagem desfeia-se à medida que nos aproximamos da grande cidade, desordena-se, improvisa-se, encaixota-se sem graça ou lógica nos espaços deixados vagos, mas a superlotação não consegue, mesmo assim, apagar a tipologia de charneca em que tudo se implantou. Na última paragem somos todos regurgitados para o exterior e cada um se dispersa pelo caminho que lhe está destinado. Entro num táxi, digo a palavra-chave: aeroporto, terminal 1.

2. O trânsito vai rolando, fluido, apesar de compacto, até à Rotunda do Relógio, onde, de súbito, parece ter sido desfraldado um bafo quente de caos e tubos de escape azulando o ar quente. Na curta alameda que conduz aos terminais do aeroporto acumulam-se e multiplicam-se as filas paralelas de automóveis, num desalinho e numa ânsia similar às turbamultas de um país onde acabou de ser desencadeado um golpe de estado, sanguinário e arbitrário, e, quem pode, tenta alcançar o ponto de fuga das grandes aves prateadas que rolam pelo asfalto e procuram a liberdade do céu azul, mesmo que para isso tenha de se pendurar numa asa, acoitar-se num trem de aterragem. É sempre este o nosso cartão de visita com brasão de terceiro mundo: quem chega e quem parte está-lhe diariamente sujeito e respira de alívio quando, finalmente, é encaixotado, em lotes de três de cada lado da risca ao meio, no seu avião. Até lá, vários círculos de inferno aguardam: o check-in faça você mesmo que nós temos mais que fazer do que perder tempo consigo; o labirinto da fila concentracionária para chegar ao controlo da segurança; o gasoso extermínio enjoativo que emana das perfumarias do duty-free que somos forçados a atravessar para atingir os nossos pontos de partida. Haverá manga para nós ou teremos ainda de nos arrastar nos solavancos dos autocarros que nos hão-de ir despejar ao exílio das pistas. E por falar em manga: é hora de almoço, o melhor é comer alguma coisa, pois nos aviões nem um copo de água oferecem nos dias que correm. Queres levar uma mala de porão? Vais pagar, conforme o peso. Queres ir à janela? Vais pagar pelo privilégio. Queres ir nas filas da frente, para melhor poder apanhar o próximo voo de ligação? Só se pagares. Pretendes uma sandes de contraplacado ou uma bebida gaseada? Paga, mas em plástico, que não temos tempo para trocos nem bolsos para moedas. 

A praça central das comidas assemelha-se a um arraial de feira em dia de santo popular. Há filas de gente para todos os stands e as mesas — atravancadas ao longo da arena circular — são agora corridas, como bancos de tasca, e estão repletas de gente, copos abandonados e embalagens de plástico ou de cartão onde em tempos estiveram sandes, hambúrgueres, saladas, crepes ou bolos, esbanjamentos que ninguém tem pressa em vir recolher. Alguns passageiros do tipo sustentável tentam ir encaixar as bandejas usadas nos rodízios de recolha, mas as prateleiras estão cheias, já pejadas por outros altruístas como eles. Consigo encaixar-me numa cadeira livre de uma mesa encostada a um contentor de lixo restaurativo. Afasto o mais que consigo os desperdícios de quem ali se sentou anteriormente, tentando não invadir com os despojos o espaço de quem mastiga sentado a centímetros de mim. Nas minhas costas, numa outra mesa, mas tão contíguos que ouço a conversa como se a mantivessem comigo, dois casais portugueses discorrem em torno dos lugares onde estiveram quando estiveram em Londres e um dos tipos narra, desvanecido, o glamour da rua onde o prato forte são as lojas que vendem produtos certificados pela Casa Real, e por onde deambulou sentindo-se tão catapultado aos céus como se tivesse vislumbrado, ao vivo, a caspa do rei ou a pelica das luvas da rainha Camila. Concentro-me no meu sumo de laranja e na minha sandes de presunto, um menu tão caro como se fôra confeccionado por appointment de D. Duarte, o Pio, Ex-regente agrícola, porém candidato vitalício a regente de Portugal.

3. O aeroporto de Frankfurt é gigantesco! De cada vez que por aqui passo comprovo o facto, com uma tal certeza que, se ali devo fazer escala por aqui, procuro que o tempo de espera entre dois voos não seja inferior a duas horas, sob risco de poder perder o avião seguinte no simples percorrer de toda aquela infinitude de gares, passadeiras e escadas rolantes, corredores. Apesar disso, a calma ordenada que paira em nada se assemelha ao caos lisboeta de onde venho. Quilómetros de corredores indicam direcções e trajectos com clareza, pontilhados por espaços de descanso e cadeiras suficientes para quem quiser fazer uma pausa, servidos por lojas e pontos de comida sensatamente distribuídos ao longo do percurso. Para ir para onde vou, devo abandonar o espaço Schengen e desse modo voltar a submeter-me a controlo das autoridades policiais, os quais atravesso num minuto. Apropriadamente, para quem o destino é quase um fim do mundo, a zona para onde me devo dirigir corresponde ao final do alfabeto (Z) e só aí deverei encontrar a referência à gate onde me aguardará o próximo transporte, pois ainda é cedo. Em passo regalado, percorro quilómetros de corredores, cada vez mais desertos de gente à medida que avanço, até que desaguo no meu destino. A sala de saída tem vista panorâmica para a pista e o sol começa a descer no horizonte. Sento-me a uma mesinha baixa, abro um pacote de bolachas de água-e-sal para entreter: já não meto nada à boca desde a uma da tarde! A conta gotas, vão chegando pessoas à porta Z18: há de tudo, mas adensa-se por ali uma tonalidade de gente de aspecto ingénuo, antiquado, algumas mulheres têm a cabeça envolvida em lenços que, após lhe cobrirem os cabelos, dão uma graciosa volta em torno do pescoço como remate. Como, para o poder envolver com o tecido, tiveram de transformar a  cabeleira num puxo,  as cabeças adquiriram um contorno alongado, tal a do ET no filme do Spielberg. Uma voz inaugura um microfone numa língua de musicalidade alienígena que suponho ser servo-croata; depois passa pelo arranhado do alemão e finalmente ao inglês. É o meu voo, bilhetes de executiva e pessoas com necessidades especiais e crianças em primeiro lugar. Deixo-me estar, a olhar a pista e os aviões estacionados que, pelo pôr do sol, adquiriram uma tonalidade acinzentada. 

4. O voo entre Frankfurt e Sarajevo é curto e, apesar do sol já se ter posto em terra, as alturas voltaram a revelá-lo: teimoso, tinge o horizonte acima das nuvens e provoca reflexos iridescentes na ponta da asa do avião. Mas o fenómeno pouco dura, o astro perdeu-se a ocidente, e quando o avião começa a planar e a descer em socalcos é já noite cerrada. Vejo luzes aproximarem-se, primeiro dispersas e tímidas, depois compondo uma mancha amarelada sobre a escuridão: deve ser Sarajevo, só pode ser Sarajevo e, a crer pelo perímetro luminoso, é uma cidade pequena, mal temos tempo de começar a sobrevoar a mancha luzente e eis que já mergulhamos sobre ela. 

À minha espera, está um tipo na casa dos vinte, com um papel onde, em grandes letras negras, está impresso o meu nome. O rapaz chama-se Emin Murtic, segundo aprendi no SMS, enviado pela agência de táxis, que recebi no telemóvel mal o avião aterrou. Pergunta-me se quero arrancar já ou se pretendo trocar dinheiro antes. A divisa local é o marco bósnio e há imensas máquinas de ATM e stands de troca de divisas no átrio do pequeno e muito arrumado aeroporto. "Podemos ir", digo, ocultando o detalhe de que já passara por ele anteriormente, contornando-o, mais ao seu cartaz, para ir levantar dinheiro numa máquina nas suas costas.

Emin é alto e louro, e a ser alguma coisa será de etnia sérvia, pois, pelo aspecto descolorido, tomá-lo-iam por alemão em qualquer lado. O seu inglês resume-se a good night, change money e mais um punhado esquálido de frases soltas, pelo que percorremos a vintena de quilómetros até ao centro da cidade em total e abençoado silêncio. Atravessamos agora uma larga e longa avenida dos arredores, alinhada por prédios altos de um lado e outro. Ignoro-o — a luz só se fará quando, no dia da partida e fazendo este caminho em reverso para o aeroporto, a voltar a olhar à luz do sol —, mas é a avenida onde, durante o cerco da cidade, os snipers se entretinham a alvejar tudo quanto por ali passasse, vindo ou em direcção ao aeroporto: quem por ali transitava ao volante, era forçado a reclinar o banco do condutor e a guiar o mais próximo de deitado possível, para não ser visto através do vidro. Percorro-a em total inocência, apreciando o silêncio, a noite cálida e o ar civilizado e urbano da cidade à qual acabo de chegar. O automóvel ginga agora por entre ruas mais estreitas e, sem aviso, Emin encosta à porta de um edifício de linhas modernas. "Hotel Europa", diz. 

Além da porta giratória da entrada, o som de música é omnipresente e omnipotente e na amálgama confusa de estímulos de quem acaba de entrar num cenário totalmente novo, percebo vir de uma sala adjacente à recepção, onde decorre grande festança. Homens em roupa aprimorada, mulheres enfarpeladas em tecidos lustrosos, entram e saem da música, os olhos brilhantes, o fácies rosado e, certamente, muito que contar. Será assim por todas as noites que ali permanecerei. Os habitantes de Sarajevo festejam tudo e um par de botas. São onze e meia da noite quando o elevador me despeja no corredor silencioso e de paredes oblíquas do quinto andar, onde fica o meu quarto. Há precisamente doze horas que fechei a porta de casa e desci a rua até à paragem das camionetes. Foi rápido, chegar à outra ponta da Europa, embora a sensação interna seja a de que ando nisto há dias. Ao percorrer-se muitas paisagens o tempo psicológico espessa-se com uma sombra, longa como a de um ocaso.

5. À primeira impressão, Sarajevo lembra uma cidade da Alemanha, particularmente do Leste, com a sua arquitectura um tanto austera e as suas ruas amplas e de esquadrias rectas. É claro que essa sensação é rapidamente baralhada pela Cidade Velha, onde as ruas estreitas, o ar de bazar do comércio e a abundância de mesquitas, nos fazem compreender que — embora num país da Europa Central — estamos já na calha do Oriente. Na cidade há mesquitas espalhadas por todo o lado, tantas como abundam as igrejas em países católicos do Sul. São convidativas, nos seus pátios amplos e cuidados, nos seus jardins (onde as rosas são presença obrigatória), nos seus sons de água que jorra sob árvores frondosas, na voz grave e bem modulada que — mais notória ao ar rarefeito do amanhecer e do entardecer — se eleva da antena afilada do minarete e quase flui num cântico ao invocar os fiéis à prece. Os seus domínios, os seus jardins, são muito frequentadas quer por crentes quer por simples curiosos, e as escadas que dão acesso ao interior do templo, no espaço deixado vago pelo calçado de quem foi rezar, exibem em permanência gente, gente que conversa, fala ao telemóvel ou simplesmente aprecia a existência sentada numa das grandes tapeçarias que revestem o chão das arcadas exteriores. 

A população da Bósnia-Herzegovina é maioritariamente muçulmana, mas, para quem tender para uma outra crença, há também templos cristãos ortodoxos e uma imponente igreja católica, a Catedral do Sagrado Coração de Jesus, aos pés da qual,  escassos metros ao fundo da escadaria, uma rosa de Sarajevo escarifica o cimento do passeio. As rosas de Sarajevo são memoriais gerados pela própria guerra e não passam de cicatrizes deixadas no chão pela explosão de um morteiro, um padrão sempre ironicamente floral cujas reentrâncias foram retintas com resina rubra, a cor do sangue que por ali se verteu em abundância há trinta anos atrás. Para além dos três museus que lhe foram dedicados*, a guerra, numa discrição que se torna por vezes silenciosamente gritante, está presente por toda a cidade e não de forma menos importante nas ruas e na atitude dos habitantes. 

As paredes dos prédios — não há rua, praça ou avenida que a isso escape — estão, como a memória cutânea de uma epidemia de bexigas loucas, pejadas das feridas circulares que ali deixou a metralha, e a cada quarteirão pode encontrar-se, embutida na fachada de um prédio, uma fiada de pequenas tabletes de mármore, cada uma delas tendo um nome e uma data gravado: representam as pessoas que ali foram mortas ou executadas sumariamente nos gritantemente recentes anos 90 do século passado, isto é: qualquer habitante da cidade com mais de trinta anos de idade foi testemunha vital desse passado presente. Estes santuários estão, em permanência, ornados com ramos e coroas de flores frescas e há quem pare um segundo ou se benza ao passar. De Abril de 1992 a Fevereiro de 1996, praticamente quatro anos, Sarajevo esteve sujeita a um cerco dos exércitos e milícias sérvias e durante esse cerco foram mortas 11.541, cerca de dez por dia. Desgraçadamente, a cidade é fácil de isolar e manter em isolamento, compreende-se bem isso olhando as montanhas verdejantes que a cercam como duas metades de uma concha: Sarajevo foi erigida num vale profundo, atravessado por um rio de águas pouco profundas, e não há modo de escapar dali a não ser pelo ar ou pelas sendas, sinuosas e alcantiladas, das montanhas. Uma ratoeira verdejante.

Durante essa desgraçada eternidade, a cidade ficou sem luz, sem água, sem comida, sem correio, sem telefone, arriscando-se à roleta da morte a tiro — pelos snipers que se acoitavam nos montes em volta — de cada vez que se arriscava a sair de casa em busca da sobrevivência. Aliás, não era sequer necessário sair de casa, são inúmeras as histórias de pessoas executadas apenas por se aproximarem da janela de casa, pois, com o passar dos dias e o tédio da espera, os franco-atiradores tornaram-se exímios em acertar em tudo quanto mexia, fossem pessoas ou cães que, nesses dias de negra memória, perdidos os donos, se foram constituindo em matilhas, atacando pessoas e animais, devorando cadáveres, transmitindo a raiva. A sociologia da desgraça permitiu mesmo inferir que, mesmo quando actuando numa estratégia de alcateia, os antigos animais domésticos mantinham os hábitos da raça e os pastores alemães preferiam visar o pescoço e os cães de água morder as pernas dos fugitivos, até que tombassem e ficassem acessíveis aos colmilhos de todos.

Mas o que talvez mais me tenha surpreendido, nesse encantamento que a cidade parece verter na nossa sensibilidade e desejo de aí regressar, foi a atitude geral da população perante o seu espaço: Sarajevo não pára, dia e noite a cidade move-se pelas avenidas e ruas, e os restaurantes, cafés, esplanadas, bancos de jardim ou os que existem sob as montras das lojas e em que as pessoas se sentam a ver quem passa, estão em permanência cheios de gente. É claro que alguns destes são turistas, vindos de todas as partes do mundo, parte deles de países árabes do Golfo Pérsico (como Arábia Saudita e Kuwait), o que contribui para engrossar o número de mulheres veladas, mas, estas ao contrário dos véus leves e coloridos das bósnias, que deixam faces à mercê dos apreciadores de rostos, estão entrouxadas em
panos de um negro surrado de batina eclesiástica, que lhes cobre corpo e cabeça, a ocultação aprimorada pela máscara da mesma cor que lhes tapa boca e nariz. Ao lado destes cartuchos ambulantes, gozando a tarde, passeiam maridos e pais, vestidos em leves trajos ocidentais como se nada tivessem a ver com aquele filme que patrocinam... Sim, mas como estava em transe de dizer, os turistas não justificam, nem de longe, tanta abundância de gente nas ruas, de manhã, à tarde, à noite, até que tudo fecha e se tenha mesmo de ir dormir. Sarajevo sofre de claustrofobia, Sarajevo esteve tempo por demais (quatro anos) enclausurada entre paredes, vendo a gente morrer, a cidade a definhar, e persegue o tempo perdido, anseia encher os pulmões com aquele ar perfumado pelas tílias, pelo cheiro a café no ar, quer perder-se pelas delícias das confeitarias (que os bósnios são doentiamente adeptos dos seus doces maravilhosos e ostensivamente mélicos), Sarajevo quer palmilhar as ruas até gastar os sapatos, quer esbater pela usura das solas as rosas estropiadas deixadas nos passeios pelos morteiros. Sarajevo, como uma criança que se entretém e esquece no quintal, acha ser ainda muito cedo para entrar; Sarajevo, agora que reencontrou de novo o seu cantinho, não quer ir
para casa.  

6. O nosso hotel fica na Vladislava Skarica, a uma centena de metros da cidade velha e mesmo ao lado do antigo Caravanserai do século XVI, construído em 1551 pelo Império Otomano para abrigo das caravanas que circulavam entre o sul e o norte, entre o oriente e o ocidente. E a solução mais simples para a gente buscar o que quer visitar ou encontrar é ir movendo-se pela cidade, procurando e associando referências que não se estejam presas aos nomes e às placas das ruas, pois esta língua é completamente impenetrável: não se percebe uma palavra, a esmagadora maioria dos habitantes não fala inglês, francês, espanhol ou seja o que for que a gente entenda, e a própria grafia das palavras é comicamente louca, usando acentos agudos em consoantes ou  circunflexos de pernas para o ar! Ficam aqui — como uma indigna ilustração do que tento explicar — os nomes de alguns dos criminosos dos massacres sobre a Bósnia, que no total ceifaram a vida a mais de 100.000 pessoas, e que, afortunadamente, cumprem abençoada pena perpétua em cadeias inglesas, após a condenação do Tribunal Penal Internacional, algo que não estou seguro veríamos acontecer nos dias de hoje: Ratko Mladić, Radovan Karadžić, Vujadin Popović, Slobodan Milošević (morto enquanto cumpria pena).

Entre a fachada principal do hotel e a parede de pedra e tijolo do Caravanserai expande-se uma grande esplanada; pertence ao hotel, mas está aberta à estadia e passagem do público em geral. Quando ali chegámos hoje, vindos de mais um volteio pela Cidade Velha, uma das extremidades do espaço está tomada por um ajuntamento falador e vestido a rigor: é um casamento e, antes de passar ao interior do hotel para o prato principal das cerimónias, gozam um beberete no exterior, que a tarde morrente vai esplendorosa. Sentamo-nos a descansar, a ver o que se passa... Mal tínhamos acabado de pedir uma bebida ao empregado, o som de um acordeão — magnificamente executado e criando uma tensão de espera no ouvinte, pois algo vai ter de resultar dali — eleva-se no ar como uma cobra ondeante saindo do seu cesto; faz lembrar Piazzolla, mas em modalidade mais quente e serpenteante.
E logo se inaugura uma batida de percussão e os convidados começam a bater palmas cadenciadas e a agrupar-se num espaço sem mesas, praticamente em cima do passeio público. A música continua, ganha balanço e rola agora como um comboio que já deixou os muros da estação. As pessoas entrelaçam as mãos e dão de dançar em círculo, com pequenos passos laterais, travados, fazendo lembrar danças gregas. A coisa é tão magnífica, surgiu de modo tão espontâneo perante os olhos de todos, que me levanto da mesa e aproximo, máquina fotográfica em riste, pronta a tentar registar um pouco daquela prenda, mas um pouco receoso de poder estar a ser intrusivo. Porém, ninguém me liga a dança continua.


Vala comum secundária em Srebrenica. © Fotografia: Tarik Samarah (Galerija 11/07/95). 





*a) Galeria 11/07/95, sobre o genocídio perpetrado pelos sérvios em Srebrenica, e cujo objectivo era eliminar todos os bósnios muçulmanos do século masculino, independentemente da idade. O massacre principal, mais de oito mil mortos, ocorreu no dia 11 de Julho de 1995, há exactamente 30 anos, sob a inação e o olhar passivo dos militares holandeses da força da intervenção da ONU presente no terreno e encarregada de proteger a população que deixou fosse massacrada; b) Museu do Cerco de Sarajevo; c) Museu do Genocídio e dos Crimes Contra a Humanidade (1992-1995).

Sobre Sarajevo, e a guerra dos anos 90, recomendo igualmente A Questão de Bruno, de Aleksandar Hemon (editora Asa, 2002), um romance dedicado a Sarajevo, de onde o autor é natural.  

© Fotografias, excepto quando indicado de outro modo, de pedro serrano, Sarajevo, Junho 2025. 


15 junho 2025

O PATO QUEBRADO

 

pessoas que exprimem uma vocação estampada na cara e veterinário teria sido o destino natural da Carlota se os ventos da vida não a tivessem soprado noutra direcção. A Carlota trabalha aqui em minha casa, três manhãs por semana, deve a temporada ir para os seus trinta e tal anos, e, como se fossem gente articulada, fala com os animais que por aqui têm vivido, sejam gatos ou a tartaruga grega, que há tantos anos como ela, se arrasta sem pressas pelo quintal. E o mais interessante nisto tudo é que os animais lhe reagem com idêntico entusiasmo e o Megabyte (a tal tartaruga helénica) vem alegremente ter com ela à porta da cozinha, quando ela desata a falar com ele pela manhãzinha... Foi para mim uma grande surpresa, reconhecer que uma tartaruga pode ser um bicho expansivo!

Em casa, a Carlota convive com — para além do marido e filho, com gatos e cães, coelhos, galinhas e patos, que conhece e nomeia um por um e a quem presta cuidados de toda a natureza, desde os afectivos aos culinários, não esquecendo os de saúde (é ela, por exemplo, que vacina os animais).
Pois uma outra semana, ligou-me uma tarde, muito preocupada com um patinho (teria pouco mais de um mês de idade) a quem um acidente estúpido quebrara uma pata! E ela já sabia o que aconteceria, se ele fosse abandonado para ali assim, à sua sorte, estropiado: deixaria de se mover, de comer e acabaria por morrer, o mesmo que acontece a um cavalo que fracturou uma pata e que tem de se abater. Desesperada, e como sou médico de formação, queria saber o que achava eu de aplicar, como remédio, uma tala à pata partida.
"Ele tem algum pedaço do osso de fora, alguma ferida aberta?", quis saber, pois se fosse esse o caso não iria resultar um tratamento tão básico como uma simples imobilização da fractura.
Não tinha, estava tudo intacto — apenas não se conseguia pôr de pé e quando o tentava a pata falhava-lhe e ele caía.
Sendo assim, e dando por boa a ideia dela de usar um pedacito de cana como tala, sugeri que, fendida a cana em duas metades simétricas, se forrasse a parte côncava da cana com algodão em rama, para que a dureza da madeira não magoasse a perna fragilizada.
"E como acha você que a aplique? De cada lado da perna, ou à frente e atrás?"
"Para que lado é que ele camba quando tenta andar?"
"Para o lado..."
"Então aplique metade da cana de cada um dos lados na zona partida e depois ate tudo com uma gaze, mas não aperte demasiado pois a perna pode vir a inchar com a inflamação."
E assim foi, e ao passar de uma semana, telefonei a saber como iam as coisas com o patito.
"Está ali com o irmão", disse, "parece melhor: levanta-se para comer e come com bastante apetite."
Uma outra semana decorrida (tínhamos combinado que conservaria a tala durante duas a três semanas) voltei a contactar para saber novas.
"Está muito melhor, quase fino, cresceu imenso! Dantes levantava-se só para comer e deitava-se logo, mas agora já anda por aí com os outros..."
"Você é capaz de arranjar umas cascas de ovos, de galinha ou seja do que for?"
Ela percebeu logo onde eu queria chegar: depois de esmigalhadas, as cascas, que têm muito cálcio, acrescentadas à ração do pato, ajudariam no processo de cicatrização do osso.
"Você conhece a Anabela, que mora aí na Praia, perto da escola onde andou o Zé? (o Zé é o meu filho). Ela uma vez pediu-me para lhe guardar ovos caseiros, para depois moer tudo no moinho com mais não sei o quê e tomar uns goles todas as manhãs. Diz que é muito bom para a saúde dos ossos e não sei mais o quê."
Não fazia ideia de quem seria essa Anabela, mas achei a ideia perigosa, pois os ovos caseiros têm a casca pejada de salmonelas, uma bactéria abundante no intestino de galinha e patos.
"Ela diz que os lava e esfrega muito bem antes..."
Retorqui que o procedimento adiantava de pouco, dado que sendo a casca dos ovos porosa, com a lavagem a bicharada mergulha alegremente para o interior do ovo.
E, para voltar ao que interessava, ajustámos que mantivesse a tala por mais uma semana na perna do palmípede. Depois disso poderia regressar-se a uma saudável normalidade e mesmo que o animal viesse a ficar com a marcha um pouco cambada e chocalhante, isso não se iria notar assim tanto, dado ser esse o modo natural com que um pato caminha pelo mundo. 

Fotografia de Carlota Rodrigues, junho 2025.

22 maio 2025

THEY REMEMBER YOU WELL, MR COHEN, AT THE KEMPS CORNER HOTEL

 

Kemps Corner is an intensely urbanized area of south Mumbai (formerly Bombay) and, were it not for the extensive wooded area bordering the south of it, you would see nothing but tall buildings as skyline and large birds soaring in the pale sky. The sea, the sea that is always close by in Mumbai, cannot be seen from there, you still have to walk a good few hundred meters down Desai Avenue to reach it. 
At the traffic lights at the top of the avenue there are men dressed as women begging for alms and when the light is favorable to cars they join the small group of other men dressed as women who, sitting, draw a circle on the adjacent sidewalk. Are they prostitutes, are they beggars, are they part of a caste? A little bit of everything, we are in India. 
As for the wooded area mentioned, which at first glance could be mistaken for a forgotten public garden where the trees and vegetation grew at the hands of an absent-minded gardener, this is the Tower of Silence, the place where the Parsis – a small but powerful ethnic group of Persian origin – dispose of their dead. The Parsis believe that it is not a good practice to contaminate the land, water or even the air with the remains of their loved ones and, as an alternative to wrapping them up for eternity, expose the corpses to the goodness of vultures and other birds of prey until only bones remain in the circular, uncovered tower where they are laid to rest. 
It was this area of the city that Leonard Cohen chose to live in during his stays in India, a country he visited frequently and at length during the second half of the 1990s and the first half of the 2000s. Some hasty theory, based on fanciful associations, would be tempted to explain the choice of location by the omnipresence of the Tower of Silence, justifying the thesis by Cohen's fascination with the subject of death and invoking as an argument the haunted towers of his songs... But it turns out that it was nothing like that and the man chose the location because it was close to the residence of an Indian master in whose teachings he was interested. Mr L. Cohen had read his works and decided that the best thing to do was to go and see him in person, staying at a nearby hotel that would allow him to walk the distance to the meetings. There were two hotels in the area, almost neighbors, but Cohen didn't choose the reasonably more upscale Shalimar Hotel, opting instead for the Kemps Corner Hotel. 
The Kemps is a two-star hotel, but in terms of hotel standards it would be more appropriate to call it a guesthouse, it is truly a modest thing, the opposite of what one would expect from a all-star public figure. 
At the reception, I asked the lady on duty if I could see a room, and also for how long she had been working there. "Yes", she said, "just wait for a minute in the little room next door", and, for the second half of the question, she had been working at the hotel for three years. 
“You’re no good,” I thought as I looked around the cubicle where the sofa from yesteryear barely fit. Then a young man arrived and invited us to go up in an elevator where it would be difficult for anyone else to enter. The room he wanted to show us was still being tidied up, and there were two servants inside who hurriedly passed the used sheets and armfuls of towels to the room opposite, as I had asked if I could take a photo. A narrow wooden bed, leaning against one wall, a small wooden desk leaning against another, at the back the window through which a greenish light tried to crawl in, waving at the screen curtain that covered the upper half of the window and the air conditioning unit built into the remaining half. Next, opposite the entrance door, the bathroom: deep and narrow like the bedroom; a toilet, a sink and a shower head in the middle of a wall, with a plastic bucket next to it, on the floor. That was all, and the boy must have sensed my incomplete manner, because he offered to show us another, larger room with a double bed. 
The new room was apparently in another building, as we went out onto the street, where I once again said hello to the old doorman who greeted those arriving in the shade of the awning, swollen in blue and white, which lent a slightly festive air to the entrance. The new building was located behind the previous one, another blue and white striped awning extended the continuity, softening the dirty facade. It was then that I asked our guide for how long he had worked at the Kemps Hotel. 
“Twenty-six years,” he said. 
“Twenty-six! How is that possible?” I replied as I did quick math in my head: 2016-26=1990. “How old are you?” 
“Forty-four,” he replied. 
I commented that he looked like thirty and, considering the years he had worked there, suggested that perhaps he had met the – I hesitated on the term – writer and singer Leonard Cohen. 
“A very nice gentleman,” he replied immediately, “he died two weeks ago...” And he added, as if enlightened by the subject and raising an index finger towards the sky, “he always stayed in this building, always in the same room up there, on the top floor...”
I wanted to know if we could visit it. No, it was occupied at the moment, but it was the same as the one we had already visited in the other building. 
“So small?” I asked. 
"Yes, that small, he was a very simple person. He spent most of the day in his room, reading and writing; sometime he would go out for a walk or for swimming in a pool at the end of Warden" (the old, and still used, name from the English era of Desai Avenue). 
“A very nice gentleman”, he said again and went on with his life, realizing that our true interest was not picking a room. 
Outside, in the bright light of the late morning, under the striped awning, the old doorman was more gullible and did not let us leave without handing us a page, typed on some worn-out cartridge printer, with the hotel's rates. We shook hands. 
“Be careful,” he said in farewell. At the end of the alley, before dissolving into the avenue, I turned around, taking one last look at the blue and white awning and saw him following our movements, raising his hand in farewell, perhaps a "see you soon" if we reconsidered into account the attractive prices of the Kemps Hotel.

Photos: © Pedro Serrano, Mumbai (India), November 2016. Drawing: Leonard Cohen, The Book of Longing, 2006.









29 janeiro 2025

SO FAR, FOR BEAUTY


 Over the wall, the treetops delicately peeked out over the top of the open-air movie screen, which belonged to the Hydra film club. In a few moments, the last concert that Leonard Cohen had given in his life would be shown, the first of two sessions prepared for the 218 people who had come to Greece for the 8th Meetup around Cohen and the first after his death. Sometimes Marianne Ihlen, the best known of his muses, participated in these meetings.

As I had dinner at Dusko, right next to the cinema, on the same terrace that Mr. Cohen and Marianne frequented over the years they lived on the island, I arrived very early and was able to choose any of the 140 canvas chairs with backrests that lined the empty space. “Sisters of Mercy,” cautiously spread by a column, assured me that I had entered the right event, as there was nothing on the cinema’s facade to indicate what would happen inside. At the box office, no one was selling tickets and only one man was hurriedly scribbling PRIVATE SESSION on a paper note glued with adhesive tape on the door. The Greeks on duty just smiled when I asked if I could come in, and they didn't check my name against any list or even force me to pronounce the holy name in devotion that night. Perfect night, there was even a June full moon in the sky.

Dusko tavern, Hydra.

Then the guests started arriving and those who didn't know each other from Café Roloi started talking, wondering where they were from: behind me, for example, were two Algerians, to my left sat a Danish woman who must have been a sensual babe a few decades before; a German woman who I had already stumbled upon at Krifo Limani, one of the tavernas in the Port of Hydra, arrived at the row seat preceding mine and who, by her discreet pose, I thought was an ordinary tourist and not one of those retarded hippies who revealed themselves by the T-shirts printed with song titles, album names or song fragments. In the blink of an eye I counted a Dance me to the end of love, an Ain´t no cure for love, two Songs of love and hate. Also part of the horde of fans, who dotted the paths and stairs of Hydra, were a handful of concentration campers sporting on their skin the Order of the United Heart, a tattoo of two intertwined hearts that mimic a Star of David and are part of the iconography designed by Cohen himself.

Marianne and son, Leonard & friend, Port of Hydra, 1960.
 (picture of photo posted at the Café Roloi, 2017).
The screen hiccups with the first images and for the next three hours I watched, first surprised and then not so much, which was usual in a live Leonard Cohen show, when he himself was alive. People clapped a lot, people were flooded by the emotion with which he reached their innermost being, they cried... But in something that is happening second hand!? Yes, yes, at first it was all very timid, perhaps there was still a hint of rational ceremony in the air, but soon — like ectoplasm from the real concert spectators projected onto the sheet — we found ourselves clapping at the end of each song; we applaud every time Mr. Cohen would take off his hat, cover his heart with it, and name the musicians and the corner of the globe they came from.

Hydra Cineclub.
Leonard Cohen's last concert in life (Dublin, Ireland) opened with “Dance Me to the End of Love,” a song that seems to speak of joyful, eternal love when, in fact, it invokes the ragtag prison orchestras that were forced to play on the path of the condemned to the gas chambers and remembers the children who were left unborn in the bellies of their mothers, roasted in the crematorium ovens. After all, Mr. Cohen was Jewish, born when Hitler was coming to power, he was just lucky that his native Canada was too far away... In front of me the discreet German woman sank her chin into the palm of her hand, her fingertips touching her eyelids. It was limpid that she was weeping in silence, that what L. Cohen provoked in all of us was happening to her: what he sang became ours, ours, or it worked as a consolation, a light pat on our shoulder, a “go on, weep, I'll be here to keep you company.” I felt like discreetly tapping the German woman on the shoulder, and I hoped the Algerian wouldn't do the same to me. 

After an hour and a half the first break arrived. I woke up and put on the coat that, fortunately, I had brought with me: the night suddenly has grown colder. Like others, I came to the street to clear my head and stretch my legs; the German woman was smoking alone, sitting on a bench, as if she were waiting for a late bus.

In the brief speech he gave us at the beginning of the session, Jarkko Arjatsalo — the Finn responsible for Leonard Cohen's official website and the driving force behind the periodic meetings in Hydra — informed us of the program of the festivities for the following day: at 7 pm, the inauguration of the garden bench in honor and memory of Leonard Cohen will take place, and in the evening, at 9, promoted by the Municipality of Hydra, a concert with Greek musicians, during which songs by the favorite author will be performed. “Please show yourself,” Jarkko asked with the vowels hissing of ‘vv’. But there was no need to ask, after all we were all there because of Mr. Cohen and despite there being too many of us to fit at the same table in the local tavernas — the name used in Greece to refer to what we call restaurants — we never failed to show up where we were supposed to. Still in the morning... Still that Saturday morning, as I turned a corner of the paths that would take me to Kamini, I came across a devotee sitting on a step, under the shade cast by Leonard's house on the island, reading from a little book in a low but audible voice. I walked by very slowly, observing the exuberant fuchsia of the bougainvillea climbing over the doorstep, so as not to disturb anyone and to be able to understand that the lady was reading poems by L. Cohen. I didn't plan on stopping, but at the end of the narrow street (where, if a donkey goes by on a leash in the opposite direction, we'll have to stick to the wall) I was intrigued by a rectangular stain, the same deep blue as the Mediterranean, on the whitewash wall bordering Mr.'s Cohen backyard. Ah!, it was the sign I had heard about: the Municipality Council had decided to name the path after the famous person who had lived there. It was heard, in the gatherings that kept the Roloi lit up with songs and conversation until six in the morning, that Adam Cohen, Leonard's son and heir, had opposed such an idea. On the Roloi esplanade there were those who were passionately for or against the toponymic plaque.

“What does that mean?” I asked, exposing the camera's viewfinder to the young man who was serving me at the table under the green needle trellis of The Little Pine, the restaurant in Kamini where you can see the blue of the sea through the green branches: OΔΟΣ.

“Street... Leonard Cohen Street,” he replied, “in Greek, the word ‘Street’ comes before the name of the street.”

“In Portuguese too,” I countered.

In Hydra I almost always follow this route, it suits me: I go to the tiny port of Kamini through the alleys and lanes that start from the upper part of the town, because I like to take a look at the white and grey house (the colours of the houses in Hydra) belonging to Mr. L. Cohen, of looking at the rusty pole where you can still see the porcelain goblets where the telephone wires that inspired the first verse of “Bird on the Wire” once ran; to see that a fig belonging to Mr. Cohen garden had fallen onto the worn paving stones of the street; that the lemons in the backyard shine like Chinese lanterns that someone forgot to blow out and that, on the contrary, in the orange trees you can't tell the green of the fruit from the green of the foliage. And, I confess, sometimes I sit on the same step where the devoted reader was, thinking about nothing and resting from the hundreds of steps I have already climbed.

You can get to Kamini (he used to go to the beach here; more than one poem happened to him here, he signed them as such) by going down my current terraces and returning to the Port of Hydra via the little coastal road, always with the certainty that you won't find cars or motorcycles or even bicycle maniacs. On the island of Hydra there are only donkeys and mules for transport, which is why you can hear the bells so loudly, the crowing of the roosters at dawn, the exfoliating of the cicadas, the anguished roar of the boats preparing to leave the island pier. Following that path is like traveling on a Yellow Brick Road or something like that, in the background of the landscape the comforting line of the Peloponnese reminds us that a man is not an island and, between the lines, the islands that dot the deep blue with stone, one of them rises a tiny chapel on the surface of the water. Who will you serve?
Road from Kamini to Port of Hydra.

On a bend in the road, there is a recent building, it looks like an archaeological remains in a new state; a U-shaped stone wall where, at the back, they fixed a light wooden crossbar. It's the bench offered by subscription from the Cohen Fan Forum — hosted by Jarkko on his website —, I can infer from the small commemorative plaque screwed onto one of the outer faces. The location was well chosen, whoever rests there has a view of infinity and could have sat there three thousand years ago. It will be inaugurated later this afternoon, there is a striped orange and white plastic ribbon threatening it. The mayor will first give a brief speech, joking about the Greek bureaucracy that prevented it from being inaugurated while the honoree was still alive; by the way, he will ask for a minute of silence; someone will sing a Leonard Cohen song, followed by another about him and romanticizing the film too much... Next to me, squeezed by the crowd of people, the lady who read poems at the door of Mr. Cohen strikes up a conversation with me, and I ask, in the bard's language, what she read in the morning. 

“Where are you from anyway?” she asks me.

“Around Lisbon,” I reply.

“Ah, it had to be... And look at us, the only ones here speaking Portuguese! I'm from Viana do Castelo...”

This is her first time in Hydra and she knows everything about his idol, she has been attending Roloi like a church; she must be in her late thirties, she's foul-mouthed, she's overflowing, and when I reveal that one of the things Cohen wrote in Hydra was the poem of "Alexandra Leaving," she surprises me with an:

“Oh, don’t talk to me about other bitches! For me it all comes down to Marianne, I don't want to know anymore...”

I smell danger in the warm evening: it's almost eight at night and it must be about thirty five degrees Celsius. Too close to my eyes the back of a fan's T-shirt – which reads Like a drunk in a midnight choir – is covered in sweat.

“Well, I must be going,” I say, “I don’t want to be late for the show and I still want to stop at the hotel before dinner... 

“Wait, don’t go yet,” she begs, “I want to introduce Henning to you.” He's German and has some fantastic stories about Leonard...”

And while she moves among the people present, looking for Henning, I walk away at a leisurely pace, without looking back, as Bob Dylan advises.

Leonard Cohen's bench at Hydra.

They chose for the concert the spontaneous square marked by the facade of the museum and the Port pier, right next to the place where, every hour, the ferries arrive from Athens and the other islands of the Saronic Gulf. Nowadays, the trip to Athens takes just over an hour, but when Mr. Cohen came here to visit for the first time, there was a boat twice a week and the connection took five hours.

Every wooden electric pole has a poster stapled to it, the usual way of advertising events on the island. The Municipality Council sent for a band with bass, guitar, drums and vocals from the mainland; the singer addresses the audience, calling us “you guys”, defines the group as being jazz, announces that they will perform songs from their new album and that they will do their own versions of some of the honoree’s songs. I fear the worst. However, the public waits patiently, they have faith: the venue is packed, there is not a single chair to be occupied, there are even people sitting on the old cannons that defended the island from pirates and Turks. There are hundreds of us and now there are many Greeks mixed in, something that did not happen in the previous stages of the festivities. The music plays and powerful projectors intermittently dazzle the audience with a jet of lilac color. The band's future CD on stage is uninteresting, the compositions uninspired, and the singer's voice formats the songs in a pattern that makes them indistinguishable. At the end of the second song I had already seen everything there was to see and I stood up, as it was not worth waiting for a miracle when it was the time for Mr. Leonard Cohen’s covers. On the Roloi esplanade I walked around my fellow countrywoman, who was already sitting there — she also gave up on the show.

The night is full and the moon continues to be full. As I climb the 149 steps that take me from Porto to the hotel, the same ones that the honoree descended every day to come from home to the town center, I can't help but hear the music clearly, as if I were still at the concert. The town of Hydra stands in an amphitheater, in a cascade, wedged between the sea and the hills, and this configuration gives it wonderful acoustics. I now finally identify a song by Mr. Cohen. It's “Hallelujah” and the young musicians didn't give up on twisting it to their personal taste, they finish it off in the reinterpretation. Anyway... I arrived at the street where my hotel is located, I stopped to catch my breath, the music continued to reach me clearly: “First We Take Manhattan”. Mr. L. Cohen greek house is located just a hundred meters from where I am staying and just as it happened in 1967 — when he listened from his window to the sounds being played at Dusko — today I can hear the songs he wrote then, rising in the air like the singing of a drunk at midnight.

Port of Hydra by dawn.

© With the exception of the third photo (Marianne and Leonard & friend), all photographs by Pedro Serrano, Hydra (Greece), 2017.