SEM COMPROMISSO.com
04 julho 2025
20 junho 2025
ESTRADA PARA SARAJEVO
A viagem até Lisboa demora uma hora e a camioneta, aparecida após uma curvatura triunfal da sua grande massa, saúda-nos emitindo um silvo de portas escancaradas, extensivo a mim e à senhora que aguarda fumando e balouçando a perna no banco de alumínio, centrado sob o coberto de plástico ondulado da paragem. Vai pouca gente, para já, e escolho um lugar com o desperdício do privilégio dos primeiros a chegar. Dali, da minha posição altaneira, vejo deslizar a paisagem, que, geralmente é um conglomerado, pouco mais que baço se transito aquele asfalto ao volante e ao nível de um rasteiro rés-do-chão. A camionete vai-se enchendo à medida que silva e se detém por um breve minuto nas paragens da rota, pois o balanço demográfico é desequilibrado: entra gente e não sai ninguém. Campos verdes, canaviais, árvores (sobreiros, pinheiros mansos, acácias, magotes de eucaliptos); valas e valados, extensões aprumadas de vinhas e pomares..., tudo isso vai forrando o silêncio entorpecido que paira no habitáculo, uma modorra gerada por quem dormita, por quem pensa para os seus botões, ou se embrutece fixando um ecrã. A paisagem desfeia-se à medida que nos aproximamos da grande cidade, desordena-se, improvisa-se, encaixota-se sem graça ou lógica nos espaços deixados vagos, mas a superlotação não consegue, mesmo assim, apagar a tipologia de charneca em que tudo se implantou. Na última paragem somos todos regurgitados para o exterior e cada um se dispersa pelo caminho que lhe está destinado. Entro num táxi, digo a palavra-chave: aeroporto, terminal 1.
2. O trânsito vai rolando, fluido, apesar de compacto, até à Rotunda do Relógio, onde, de súbito, parece ter sido desfraldado um bafo quente de caos e tubos de escape azulando o ar quente. Na curta alameda que conduz aos terminais do aeroporto acumulam-se e multiplicam-se as filas paralelas de automóveis, num desalinho e numa ânsia similar às turbamultas de um país onde acabou de ser desencadeado um golpe de estado, sanguinário e arbitrário, e, quem pode, tenta alcançar o ponto de fuga das grandes aves prateadas que rolam pelo asfalto e procuram a liberdade do céu azul, mesmo que para isso tenha de se pendurar numa asa, acoitar-se num trem de aterragem. É sempre este o nosso cartão de visita com brasão de terceiro mundo: quem chega e quem parte está-lhe diariamente sujeito e respira de alívio quando, finalmente, é encaixotado, em lotes de três de cada lado da risca ao meio, no seu avião. Até lá, vários círculos de inferno aguardam: o check-in faça você mesmo que nós temos mais que fazer do que perder tempo consigo; o labirinto da fila concentracionária para chegar ao controlo da segurança; o gasoso extermínio enjoativo que emana das perfumarias do duty-free que somos forçados a atravessar para atingir os nossos pontos de partida. Haverá manga para nós ou teremos ainda de nos arrastar nos solavancos dos autocarros que nos hão-de ir despejar ao exílio das pistas. E por falar em manga: é hora de almoço, o melhor é comer alguma coisa, pois nos aviões nem um copo de água oferecem nos dias que correm. Queres levar uma mala de porão? Vais pagar, conforme o peso. Queres ir à janela? Vais pagar pelo privilégio. Queres ir nas filas da frente, para melhor poder apanhar o próximo voo de ligação? Só se pagares. Pretendes uma sandes de contraplacado ou uma bebida gaseada? Paga, mas em plástico, que não temos tempo para trocos nem bolsos para moedas.
3. O aeroporto de Frankfurt é gigantesco! De cada vez que por aqui passo comprovo o facto, com uma tal certeza que, se ali devo fazer escala por aqui, procuro que o tempo de espera entre dois voos não seja inferior a duas horas, sob risco de poder perder o avião seguinte no simples percorrer de toda aquela infinitude de gares, passadeiras e escadas rolantes, corredores. Apesar disso, a calma ordenada que paira em nada se assemelha ao caos lisboeta de onde venho. Quilómetros de corredores indicam direcções e trajectos com clareza, pontilhados por espaços de descanso e cadeiras suficientes para quem quiser fazer uma pausa, servidos por lojas e pontos de comida sensatamente distribuídos ao longo do percurso. Para ir para onde vou, devo abandonar o espaço Schengen e desse modo voltar a submeter-me a controlo das autoridades policiais, os quais atravesso num minuto. Apropriadamente, para quem o destino é quase um fim do mundo, a zona para onde me devo dirigir corresponde ao final do alfabeto (Z) e só aí deverei encontrar a referência à gate onde me aguardará o próximo transporte, pois ainda é cedo. Em passo regalado, percorro quilómetros de corredores, cada vez mais desertos de gente à medida que avanço, até que desaguo no meu destino. A sala de saída tem vista panorâmica para a pista e o sol começa a descer no horizonte. Sento-me a uma mesinha baixa, abro um pacote de bolachas de água-e-sal para entreter: já não meto nada à boca desde a uma da tarde! A conta gotas, vão chegando pessoas à porta Z18: há de tudo, mas adensa-se por ali uma tonalidade de gente de aspecto ingénuo, antiquado, algumas mulheres têm a cabeça envolvida em lenços que, após lhe cobrirem os cabelos, dão uma graciosa volta em torno do pescoço como remate. Como, para o poder envolver com o tecido, tiveram de transformar a cabeleira num puxo, as cabeças adquiriram um contorno alongado, tal a do ET no filme do Spielberg. Uma voz inaugura um microfone numa língua de musicalidade alienígena que suponho ser servo-croata; depois passa pelo arranhado do alemão e finalmente ao inglês. É o meu voo, bilhetes de executiva e pessoas com necessidades especiais e crianças em primeiro lugar. Deixo-me estar, a olhar a pista e os aviões estacionados que, pelo pôr do sol, adquiriram uma tonalidade acinzentada.
À minha espera, está um tipo na casa dos vinte, com um papel onde, em grandes letras negras, está impresso o meu nome. O rapaz chama-se Emin Murtic, segundo aprendi no SMS, enviado pela agência de táxis, que recebi no telemóvel mal o avião aterrou. Pergunta-me se quero arrancar já ou se pretendo trocar dinheiro antes. A divisa local é o marco bósnio e há imensas máquinas de ATM e stands de troca de divisas no átrio do pequeno e muito arrumado aeroporto. "Podemos ir", digo, ocultando o detalhe de que já passara por ele anteriormente, contornando-o, mais ao seu cartaz, para ir levantar dinheiro numa máquina nas suas costas.
Além da porta giratória da entrada, o som de música é omnipresente e omnipotente e na amálgama confusa de estímulos de quem acaba de entrar num cenário totalmente novo, percebo vir de uma sala adjacente à recepção, onde decorre grande festança. Homens em roupa aprimorada, mulheres enfarpeladas em tecidos lustrosos, entram e saem da música, os olhos brilhantes, o fácies rosado e, certamente, muito que contar. Será assim por todas as noites que ali permanecerei. Os habitantes de Sarajevo festejam tudo e um par de botas. São onze e meia da noite quando o elevador me despeja no corredor silencioso e de paredes oblíquas do quinto andar, onde fica o meu quarto. Há precisamente doze horas que fechei a porta de casa e desci a rua até à paragem das camionetes. Foi rápido, chegar à outra ponta da Europa, embora a sensação interna seja a de que ando nisto há dias. Ao percorrer-se muitas paisagens o tempo psicológico espessa-se com uma sombra, longa como a de um ocaso.
5. À primeira impressão, Sarajevo lembra uma cidade da Alemanha, particularmente do Leste, com a sua arquitectura um tanto austera e as suas ruas amplas e de esquadrias rectas. É claro que essa sensação é rapidamente baralhada pela Cidade Velha, onde as ruas estreitas, o ar de bazar do comércio e a abundância de mesquitas, nos fazem compreender que — embora num país da Europa Central — estamos já na calha do Oriente. Na cidade há mesquitas espalhadas por todo o lado, tantas como abundam as igrejas em países católicos do Sul. São convidativas, nos seus pátios amplos e cuidados, nos seus jardins (onde as rosas são presença obrigatória), nos seus sons de água que jorra sob árvores frondosas, na voz grave e bem modulada que — mais notória ao ar rarefeito do amanhecer e do entardecer — se eleva da antena afilada do minarete e quase flui num cântico ao invocar os fiéis à prece. Os seus domínios, os seus jardins, são muito frequentadas quer por crentes quer por simples curiosos, e as escadas que dão acesso ao interior do templo, no espaço deixado vago pelo calçado de quem foi rezar, exibem em permanência gente, gente que conversa, fala ao telemóvel ou simplesmente aprecia a existência sentada numa das grandes tapeçarias que revestem o chão das arcadas exteriores.
As paredes dos prédios — não há rua, praça ou avenida que a isso escape — estão, como a memória cutânea de uma epidemia de bexigas loucas, pejadas das feridas circulares que ali deixou a metralha, e a cada quarteirão pode encontrar-se, embutida na fachada de um prédio, uma fiada de pequenas tabletes de mármore, cada uma delas tendo um nome e uma data gravado: representam as pessoas que ali foram mortas ou executadas sumariamente nos gritantemente recentes anos 90 do século passado, isto é: qualquer habitante da cidade com mais de trinta anos de idade foi testemunha vital desse passado presente. Estes santuários estão, em permanência, ornados com ramos e coroas de flores frescas e há quem pare um segundo ou se benza ao passar. De Abril de 1992 a Fevereiro de 1996, praticamente quatro anos, Sarajevo esteve sujeita a um cerco dos exércitos e milícias sérvias e durante esse cerco foram mortas 11.541, cerca de dez por dia. Desgraçadamente, a cidade é fácil de isolar e manter em isolamento, compreende-se bem isso olhando as montanhas verdejantes que a cercam como duas metades de uma concha: Sarajevo foi erigida num vale profundo, atravessado por um rio de águas pouco profundas, e não há modo de escapar dali a não ser pelo ar ou pelas sendas, sinuosas e alcantiladas, das montanhas. Uma ratoeira verdejante.
6. O nosso hotel fica na Vladislava Skarica, a uma centena de metros da cidade velha e mesmo ao lado do antigo Caravanserai do século XVI, construído em 1551 pelo Império Otomano para abrigo das caravanas que circulavam entre o sul e o norte, entre o oriente e o ocidente. E a solução mais simples para a gente buscar o que quer visitar ou encontrar é ir movendo-se pela cidade, procurando e associando referências que não se estejam presas aos nomes e às placas das ruas, pois esta língua é completamente impenetrável: não se percebe uma palavra, a esmagadora maioria dos habitantes não fala inglês, francês, espanhol ou seja o que for que a gente entenda, e a própria grafia das palavras é comicamente louca, usando acentos agudos em consoantes ou circunflexos de pernas para o ar! Ficam aqui — como uma indigna ilustração do que tento explicar — os nomes de alguns dos criminosos dos massacres sobre a Bósnia, que no total ceifaram a vida a mais de 100.000 pessoas, e que, afortunadamente, cumprem abençoada pena perpétua em cadeias inglesas, após a condenação do Tribunal Penal Internacional, algo que não estou seguro veríamos acontecer nos dias de hoje: Ratko Mladić, Radovan Karadžić, Vujadin Popović, Slobodan Milošević (morto enquanto cumpria pena).
Vala comum secundária em Srebrenica. © Fotografia: Tarik Samarah (Galerija 11/07/95). |
Sobre Sarajevo, e a guerra dos anos 90, recomendo igualmente A Questão de Bruno, de Aleksandar Hemon (editora Asa, 2002), um romance dedicado a Sarajevo, de onde o autor é natural.
© Fotografias, excepto quando indicado de outro modo, de pedro serrano, Sarajevo, Junho 2025.
15 junho 2025
O PATO QUEBRADO
22 maio 2025
THEY REMEMBER YOU WELL, MR COHEN, AT THE KEMPS CORNER HOTEL
Photos: © Pedro Serrano, Mumbai (India), November 2016. Drawing: Leonard Cohen, The Book of Longing, 2006.
15 maio 2025
01 fevereiro 2025
TANZ MIT MIR BEVOR DU GEHST (a guitarra portuguesa como você nunca a viu)
29 janeiro 2025
SO FAR, FOR BEAUTY
As I had dinner at Dusko, right next to the cinema, on the same terrace that Mr. Cohen and Marianne frequented over the years they lived on the island, I arrived very early and was able to choose any of the 140 canvas chairs with backrests that lined the empty space. “Sisters of Mercy,” cautiously spread by a column, assured me that I had entered the right event, as there was nothing on the cinema’s facade to indicate what would happen inside. At the box office, no one was selling tickets and only one man was hurriedly scribbling PRIVATE SESSION on a paper note glued with adhesive tape on the door. The Greeks on duty just smiled when I asked if I could come in, and they didn't check my name against any list or even force me to pronounce the holy name in devotion that night. Perfect night, there was even a June full moon in the sky.
![]() |
Dusko tavern, Hydra. |
Then the guests started arriving and those who didn't know each other from Café Roloi started talking, wondering where they were from: behind me, for example, were two Algerians, to my left sat a Danish woman who must have been a sensual babe a few decades before; a German woman who I had already stumbled upon at Krifo Limani, one of the tavernas in the Port of Hydra, arrived at the row seat preceding mine and who, by her discreet pose, I thought was an ordinary tourist and not one of those retarded hippies who revealed themselves by the T-shirts printed with song titles, album names or song fragments. In the blink of an eye I counted a Dance me to the end of love, an Ain´t no cure for love, two Songs of love and hate. Also part of the horde of fans, who dotted the paths and stairs of Hydra, were a handful of concentration campers sporting on their skin the Order of the United Heart, a tattoo of two intertwined hearts that mimic a Star of David and are part of the iconography designed by Cohen himself.
![]() |
Marianne and son, Leonard & friend, Port of Hydra, 1960. (picture of photo posted at the Café Roloi, 2017). |
![]() |
Hydra Cineclub. |
After an hour and a half the first break arrived. I woke up and put on the coat that, fortunately, I had brought with me: the night suddenly has grown colder. Like others, I came to the street to clear my head and stretch my legs; the German woman was smoking alone, sitting on a bench, as if she were waiting for a late bus.
“What does that mean?” I asked, exposing the camera's viewfinder to the young man who was serving me at the table under the green needle trellis of The Little Pine, the restaurant in Kamini where you can see the blue of the sea through the green branches: OΔΟΣ.
“Street... Leonard Cohen Street,” he replied, “in Greek, the word ‘Street’ comes before the name of the street.”
“In Portuguese too,” I countered.
In Hydra I almost always follow this route, it suits me: I go to the tiny port of Kamini through the alleys and lanes that start from the upper part of the town, because I like to take a look at the white and grey house (the colours of the houses in Hydra) belonging to Mr. L. Cohen, of looking at the rusty pole where you can still see the porcelain goblets where the telephone wires that inspired the first verse of “Bird on the Wire” once ran; to see that a fig belonging to Mr. Cohen garden had fallen onto the worn paving stones of the street; that the lemons in the backyard shine like Chinese lanterns that someone forgot to blow out and that, on the contrary, in the orange trees you can't tell the green of the fruit from the green of the foliage. And, I confess, sometimes I sit on the same step where the devoted reader was, thinking about nothing and resting from the hundreds of steps I have already climbed.
![]() |
Road from Kamini to Port of Hydra. |
On a bend in the road, there is a recent building, it looks like an archaeological remains in a new state; a U-shaped stone wall where, at the back, they fixed a light wooden crossbar. It's the bench offered by subscription from the Cohen Fan Forum — hosted by Jarkko on his website —, I can infer from the small commemorative plaque screwed onto one of the outer faces. The location was well chosen, whoever rests there has a view of infinity and could have sat there three thousand years ago. It will be inaugurated later this afternoon, there is a striped orange and white plastic ribbon threatening it. The mayor will first give a brief speech, joking about the Greek bureaucracy that prevented it from being inaugurated while the honoree was still alive; by the way, he will ask for a minute of silence; someone will sing a Leonard Cohen song, followed by another about him and romanticizing the film too much... Next to me, squeezed by the crowd of people, the lady who read poems at the door of Mr. Cohen strikes up a conversation with me, and I ask, in the bard's language, what she read in the morning.
“Where are you from anyway?” she asks me.
“Around Lisbon,” I reply.
“Ah, it had to be... And look at us, the only ones here speaking Portuguese! I'm from Viana do Castelo...”
This is her first time in Hydra and she knows everything about his idol, she has been attending Roloi like a church; she must be in her late thirties, she's foul-mouthed, she's overflowing, and when I reveal that one of the things Cohen wrote in Hydra was the poem of "Alexandra Leaving," she surprises me with an:
“Oh, don’t talk to me about other bitches! For me it all comes down to Marianne, I don't want to know anymore...”
“Well, I must be going,” I say, “I don’t want to be late for the show and I still want to stop at the hotel before dinner...”
“Wait, don’t go yet,” she begs, “I want to introduce Henning to you.” He's German and has some fantastic stories about Leonard...”
And while she moves among the people present, looking for Henning, I walk away at a leisurely pace, without looking back, as Bob Dylan advises.
![]() |
Leonard Cohen's bench at Hydra. |
They chose for the concert the spontaneous square marked by the facade of the museum and the Port pier, right next to the place where, every hour, the ferries arrive from Athens and the other islands of the Saronic Gulf. Nowadays, the trip to Athens takes just over an hour, but when Mr. Cohen came here to visit for the first time, there was a boat twice a week and the connection took five hours.
The night is full and the moon continues to be full. As I climb the 149 steps that take me from Porto to the hotel, the same ones that the honoree descended every day to come from home to the town center, I can't help but hear the music clearly, as if I were still at the concert. The town of Hydra stands in an amphitheater, in a cascade, wedged between the sea and the hills, and this configuration gives it wonderful acoustics. I now finally identify a song by Mr. Cohen. It's “Hallelujah” and the young musicians didn't give up on twisting it to their personal taste, they finish it off in the reinterpretation. Anyway... I arrived at the street where my hotel is located, I stopped to catch my breath, the music continued to reach me clearly: “First We Take Manhattan”. Mr. L. Cohen greek house is located just a hundred meters from where I am staying and just as it happened in 1967 — when he listened from his window to the sounds being played at Dusko — today I can hear the songs he wrote then, rising in the air like the singing of a drunk at midnight.
![]() |
Port of Hydra by dawn. |
© With the exception of the third photo (Marianne and Leonard & friend), all photographs by Pedro Serrano, Hydra (Greece), 2017.