23 dezembro 2021

SURYA E A POEIRA AOS PÉS DE BRAMA

Surya
Oficialmente, o sistema de castas terminou em 1950, ao ser aprovada a primeira Constituição indiana após o domínio britânico. Mas estamos todos cheios de saber a diferença entre a letra da lei e a realidade, sobretudo se este sistema se alicerçou em regras e práticas com mais de três milénios de existência.

Uma casta é um grupo social hereditário, no qual a condição do indivíduo transita de pais para filhos, marcando a sua existência com tal determinismo que cada um só se pode casar e constituir família com pessoa do próprio grupo. Na Índia, os quatro grupos principais eram (ainda são, mormente em zonas rurais) os brâmanes (sacerdotes e letrados), os xátrias (militares), os vaixás (comerciantes) e os sudras (os camponeses e operários). Esta divisão apoia-se no corpo de Brama, o primeiro Deus da trindade do hinduísmo: assim, os brâmanes teriam nascido da cabeça de Brama, os xátrias dos braços, os vaixás das pernas e os sudras dos pés. Mas restava ainda a poeira por baixo dos pés do Deus e aí, tão baixo que nem um grupo constituem, estariam os dalits, os intocáveis, intocáveis pois o facto de serem tocados conspurca quem os toca... Como é natural, uma das profissões mais associadas a esta sub-gente é a de limpar a merda dos outros e a função vai também passando de pais para filhos. Se eu limpo latrinas, o meu filho há-de escarafunchar retretes, assim como o meu neto e as respectivas mulheres, e assim seja até ao final dos tempos. Um destino de merda. 

Em 1997 um senhor chamado Abraham George resolveu arregaçar mangas e fazer algo que pudesse mudar e, sobretudo, demonstrasse a falta de fundamentação de um destino previamente estabelecido e contornasse a aparente impossibilidade de quebrar este círculo de pobreza e de miséria. Apesar do nome, Abraham George é um nativo do sul da Índia que fez a sua vida e a sua fortuna em Wall Street, nos Estados Unidos. Um dia, já nos seus cinquenta e tais, George vendeu a companhia, fez as malas, regressou à Índia e aplicou a sua fortuna e experiência de organização e gestão a um projecto chamado Shanti Bavhan. 

Não é assim tão fácil definir Shanti Bavhan, pois não é um daqueles projectos beneméritos condescendentes, que deixa cair umas migalhas, faz uns cursos rápidos em inglês e vai embora, deduções nos impostos incluídas. A própria concepção de Shanti Bavhan tornou a ligação dos promotores aos beneficiários definitiva. A ver se consigo explicar.

A primeira escola de Shanti Bavhan está sediada em Tamil Nadu, no Sul da Índia, e destina-se a acolher crianças oriundas de famílias intocáveis. Recebe-as, por candidatura dos pais, aos quatro ou cinco anos de idade e só as larga quando elas conseguem o seu primeiro emprego, uns dezassete ou dezoito anos mais tarde. Um projecto de longo fôlego e compromisso, portanto. As crianças começam por viver nas instalações da organização, onde frequentam o jardim de infância, depois a escola primária e depois o liceu. Vivem lá, em regime de internato, mas, pelo menos duas vezes ao ano, nas férias, regressam a casa dos pais, para que mantenham contacto com a família e a comunidade de onde provêm. Mais tarde ingressam nas universidades que existem na Índia, e às quais se candidataram pelo método nacional do costume, continuando os estudos e a estadia nas grandes cidades a ser pagos e acompanhados por Shanti Bavhan. Quando se graduam e começam a voar pelas próprias asas, o organização espera que devolvam o capital humano e de conhecimentos acumulado à aldeia de onde são originários, ajudando a elevar o nível de vida da sua gente. 

Tomei contacto com tudo isto através de um documentário (minissérie) da Netflix chamado As Filhas do Destino. Esse documentário, muitíssimo ilustrativo e bem conseguido, acompanha a vida de umas quatro ou cinco raparigas, desde pequeninas até ao dia em que terminaram os estudos universitários e começaram a trabalhar, uma como advogada, outra como jornalista, uma outra como enfermeira. Mostra tudo quanto é importante e, por vezes, é duro assistir ao que os nossos olhos veem, pois não é uma daquelas cenas lamechas que a TV gosta de nos impingir, seja para vender rações para cães, hambúrgueres ou assinaturas de fibra óptica de última geração. Ali há esperança de um amanhã que cante, sim, mas o cantar é às vezes rouco, grasnado e triste e se a criancinha falha no aproveitamento de forma repetida é posta a andar para dar lugar a outro. Todos eles têm direito a uma oportunidade, mas é uma oportunidade única. É um percurso duro, bem duro e um dos filhos do Dr. Kennedy, já nascido na América e no bem-estar, que se prepara para tomar conta do que o pai iniciou, queixa-se da dureza das regras, tem dúvidas... Uma ou outra das raparigas, na tal série, tem igualmente dúvidas, sente que o projecto a partiu ao meio, a dividiu, já não consegue regressar à aldeia e à família de onde veio e sabe que a escola, em Shanti Bavhan, não lhe pode dar guarida para sempre: uma deles desenvolve até raiva ao Dr. George. É difícil crescer, é difícil viver, a ração é, por vezes, amarga. Mas, aos nossos olhos atentos e comovidos, ficou demonstrado o valor da iniciativa e o seu sucesso global e, de facto, no final, um intocável pode chegar tão longe como outro ser humano qualquer; é tudo uma questão de oportunidade, como afirmava o Dr. Abraham George quando decidiu comprometer-se com tudo isto. 

Conheço a Índia razoavelmente (embora me custe usar o termo, pois, na sua grandeza e diversidade, nunca se fica a conhecer a Índia, nem sequer razoavelmente) e a visão do documentário afectou-me o suficiente para, nos dias seguintes, ir espiolhar à Net as páginas da organização. Como poderia dar algum contributo a uma coisa tão bem pensada, tão séria e tão útil? O site de Shanti Bavhan dá resposta a todas as dúvidas que possamos ter, pois também ele está muito bem pensado e apresentado. O interessado pode dar dinheiro da forma que mais lhe interessar: pode contribuir para o equipamento de uma sala de aula, pode contribuir para pagar os geradores solares que aquecem a água dos edifícios, pode ajudar a comprar atoalhados para um dormitório ou, se preferir pode dedicar o seu contributo à educação e manutenção (comida, roupa, etc.) de uma criança. De igual modo aceitam voluntários para trabalho, mas vão alertando que serão implacavelmente seleccionados e que a vida é dura por lá: também eles conhecem bem a praga da solidariedade instantânea, que se esgota ao fim de dois dias ou quando é percebido que não há cabide para pendurar o casaco de peles...

Acabei por optar pela contribuição dedicada a uma criança: o preço era de cerca de 1.600 euros/ano e isso incluía tudo: a alimentação diária, os cuidados médicos, o material escolar, a roupa, o ensino de todas as disciplinas (desde o inglês à matemática, passando pelas ciências, a informática e a música). Tudo! Cerca de 140 euros por mês. Uns dias depois fui informado por mail que a minha dádiva ficara ligada a um menino chamado Surya. Mandaram-me a fotografia de um rapazinho bonito e sorridente, que me abria as palmas das mãos em jeito de boas-vindas e agradecimento. Juntamente com a foto, vinham umas linhas sobre Surya: tinha cinco anos, acabara de entrar em Shanti Bavhan, era de uma aldeia das proximidades de Bangalore, o pai cavava poços e a mãe estava em casa com a irmãzita mais nova. Quanto ao Surya, aluno do infantário, tinha algumas dificuldades com a matemática e o inglês e gostava muito de desenhar elefantes, peixes e bananas; gostava também de brincar com cachorros. Escrevi de volta, a agradecer as informações recebidas, enviando várias fotografias de elefantes, que tirara na Índia, e perguntando se poderiam ser entregues a Surya. Foi-me respondido que não, pelo menos não directamente. Por uma questão de protecção das crianças é interdita a comunicação directa entre elas e as pessoas que contribuem para a sua formação; de qualquer modo, as fotos seriam mostradas, pela professora, à classe onde Surya anda. Achei bem, o dia a dia daquelas meninas e meninos tem de ser protegido da invasão do exterior, de outro modo aquilo pode transformar-se num circo de exposição, de vaidades, etc.

Agora Surya tem já seis anos e iniciou o ensino primário. De vez em quando enviam-me um pequeno relato dos seus progressos, uma fotografia dele ou um desenho que ele fez. Já passou um ano e, recentemente, enviei contribuição para apoiar por mais um ano a estadia de Surya em Shanti Bavhan. Não que o meu dinheiro seja imprescindível para que ele lá continue e seja apoiado até que se torne adulto e alcance o seu primeiro emprego, pois, felizmente, a organização não está dependente de mim! Mas gosto de o fazer e dou por mim a torcer para que os ventos corram de feição a Surya e que um dia mais tarde, confiante, ele possa soprar das mãos a poeira que lhe restar dos pés de Brama.

 

Nota: As Filhas do Destino pode ser visto na Netflix; o site de Shanti Bavhan está no endereço: https://www.shantibhavanchildren.org

© fotografia do elefante: pedro serrano, Udaipur (Índia), 2013.