23 maio 2014
22 maio 2014
14 maio 2014
HOMOFOLIA
A FNAC, a multinacional francesa com
nome de sindicato, tem, na sua loja do Chiado, em Lisboa, uma área reservada a
livros picantes. Essas estantes são encimadas por uma tabuleta, antecedida pela
bolinha vermelha que na TV alerta o espectador para conteúdos chocantes ou
linguagem extrema, onde se lê: GAY/ERÓTICO.
Não sei o que outros pensarão, mas,
para além do provincianismo mal disfarçado em ousadia comercial, esta mistura
no mesmo promíscuo saco de uma certa orientação sexual + conteúdos entesoantes,
traz-me à memória a reacção inicial do mundo em relação à SIDA no início dos
anos 80. Nessa época, se bem se recordam, a SIDA era coisa de panascas, uma
moléstia ligada a práticas indecentes e de que estavam a salvo todos aqueles
que se contentavam com uma posição de missionário sobre a patroa. Os resultados
desse preconceito ignorante depressa se fizeram notar nas tendências da
epidemia que alastrou mundo fora. Assim, e pela mesma bitola, a FNAC parece
considerar que o ser gay é pose que se resume exclusivamente a uma prática
sexual e, simultaneamente, matéria muito excitante e pecaminosa. Dito de outro
modo: essa gente não é bem gente, apenas caricaturas sexuais como os livros
eróticos para donas de casa, agora tão na moda, que incluem sempre, para grande
excitação das glândulas salivares, roupas de couro e umas chicotadas no tutu.
Eu já achava mau, nas livrarias em
geral, as estantes LGBT (acrónimo de Lésbicas-Gays-Bissexuais-Transgéneros), onde,
sob esse estandarte, se passaram a alinhar as lombadas dos livros sobre a
“temática” e, por arrasto, todos os livros de escritores que pertenciam ao
clube! E, então, de repente, e por exemplo, o magnífico As Horas (de Michael Cunningham) desapareceu das estantes comuns e
da antiquada ordem alfabética por autor, para aparecer na secção gayzola. E a arrumação
não mais parou e os autores passaram a
ser catalogados pela sua orientação sexual, mesmo que os seus livros falassem
apenas do que acontece às pessoas nesta breve passagem pela terra.
Ainda por cima, diga-se, o trabalho
dos livreiros deixa muito a desejar, pois a catalogação está a revelar-se
grosseiramente incompleta! Então o que ainda fazem nas prateleiras “normais”
nomes como Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Jane Bowles, Djuna Barnes,
Edith Warton, Susan Sontag, Marguerite Yourcenar e Patricia Highsmith (para
começar pelas senhoras) ou Eurípides,
Sófocles, Sócrates, Platão, Aristóteles, Virgílio, Ovídio, Montaigne, Molière,
Lord Byron, D. H. Lawrence, Oscar Wilde, Thomas Mann, Voltaire, Paul Verlaine,
Arthur Rimbaud, Jean Cocteau, Jean Genet, Andre Gide, Marcel Proust, Federico
García Lorca, Henry James, Herman Melville, Walt Whitman, Tennesse Williams,
Truman Capote, Yukio Mishima, Yasunari Kawabata, E.M. Forster, Somerset
Maugham, Paul Bowles ou os nossos Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e
Frederico Lourenço? Embora já sair da prateleira!
© Fotografia de Pedro Serrano, Lisboa, Abril 2014.
08 maio 2014
O EMPRÉSTIMO
Numa tarde do Outono de 1977, tinha
então vinte e quatro anos, fui procurar um amigo de quem era visita quase
diária. Ele não estava e a mulher, de saída para compras, mandou-me entrar para
que o esperasse na sala de estar, um compartimento um pouco soturno, com uma
janela comprida e alteada de cave.
Por ali me sentei e, demorando-se o
dono da casa, comecei a sentir-me enfartado com a espera pelo que me pus a
olhar em volta à procura de algo com que me entreter. Mas o pequeno móvel de
leitura que havia ao lado direito do sofá continha só revistas de malhas e crochet
e um exemplar, de capa vermelha a imitar pelúcia, de Os Maias, o chorudo romance de Eça de Queirós.
Á época, o livro despertava-me o mesmo
grau de interesse que uma revista de bordados e, para um tipo que gostava de
ler como eu, esta aversão era herança directa do modo como no liceu me tinham
feito a apresentação e o cultivo da literatura portuguesa. O que pode
interessar a um rapaz de quinze anos uma epopeia, em verso, do século XVI, como
Os Lusíadas, ou um secante drama de sacrifício
e espessa honra como o Frei Luís de Sousa?
Nada, zero: a única parte potencialmente picante dos Lusíadas (o Canto IX) ninguém nos a explicava ou, sequer, deixava
ler e quanto ao Frei Luís de Sousa o
nosso apetite ficava satisfeito com a passagem do “Romeiro, romeiro, quem és
tu?”, a qual nos provocava um “Ninguém!” entremeado de barrigadas de riso. Exemplos
destes multiplicavam-se, num bocejo permanente, ao longo da Selecta Literária, tomo onde se
enfileiravam as pérolas da literatura portuguesa destinadas a cativar
estudantes do liceu para a prosa doméstica.
Assim, foi por o meu amigo Carlos se
estar a demorar para além do razoável e por absoluta falta de alternativa que
peguei no livro do Eça e o abri na primeira página:
“A casa que os Maias vieram habitar em
Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco
de Paula...”
Quando o Carlos chegou, tardiamente e
sem remorsos, o meu primeiro gesto foi pedir-lhe o livro emprestado e raspar-me
para casa logo que pude, a continuar a leitura. Dessa tarde à de hoje reli Os Maias umas vinte vezes (não exagero)
e tenho por costume fazê-lo
pelo mês de Abril, uma espécie de leitura de primavera, um equivalente mental ao
abrir as janelas à casa, pôr os colchões e fronhas a apanhar sol; trocar a
roupa de inverno pela de verão, que entristecia, encaixotada, na companhia da
lavanda anti-traça.
Conheço Os Maias tão intimamente que, para além de saber o enredo de cor, trato
por tu todos os personagens, dos principais (Carlos e Afonso da Maia, João da
Ega) àqueles que sendo seres humanos diversos, como as três gerações de
administradores Vilaça, se fundem na nossa mente num único personagem, à
semelhança do que Gabriel Garcia Márquez viria a fazer com os Buendia e os
Arcadio, quase oitenta anos depois, em Cem
Anos de Solidão. Dou-me ainda com os sub-humanos como o gato de Afonso (o
reverendo Bonifácio, que nas 600 páginas do livro dura muito mais do que é
gatamente possível a um tareco) ou Niniche, a cadelinha de luxo de Maria
Eduarda. Por o ter desfolhado tantas vezes consigo também aperceber o modo como
Eça montou os andaimes que suportam a estrutura do romance e conduzem a
história ao seu desfecho e identifico os termos que o escritor prefere para
para dar o tom exacto ao cenário ou ao estado de espírito dos heróis: azul-ferrete,
azeviche, faiscante, desmaiando, severo, fino, lânguido, sombrio, cavo,
ebúrneo...
Que felicidade e engenho ter escrito
uma coisa daquelas. Redigido ao longo de quase dez anos, Os Maias foram publicados (em dois
grossos volumes) em 1888 por uma editora do Porto. Cento e vinte e cinco
anos depois não perderam pitada de actualidade, tão bem o livro pinta as
emoções, virtudes e defeitos comuns aos seres humanos e tão certeiramente
retrata a maneira de ser portuguesa, muito dada, então como agora, a
tempestades em pouca água, ao gosto por muita conversa e pouca acção, à inveja
paralisante e maldizente perante os feitos dos outros.
Vou-me, mas deixo-vos com uma passagem
que, estou certo, acharão aterradoramente actual e prova de que, na essência,
os tempos não mudaram assim tanto (o personagem Jacob Cohen, para aqueles que
não lhe conhecem a fronte altiva ou a mulher, é equivalente ao actual director
do Banco de Portugal):
- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá...
O empréstimo faz-se ou não se faz?
E
acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão do empréstimo
era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!...
O
Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade,
que o empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de
receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única
ocupação mesmo dos ministérios era esta – cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim havia de se continuar...
Classificação:
LIVRO
03 maio 2014
PRIMAVERA
Por uma razão concreta, a Primavera
faz-me recordar o meu pai. Esta lembrança está directamente relacionada com um
acontecimento doméstico que ele presenciou e sobre o qual, daí em diante,
queria sempre saber o ponto da situação.
Na parede mais protegida e ensolarada
do alpendre de minha casa, numa latitude já vizinha do tecto, uma andorinha
estrangeira construiu um dia – são passados bons anos sobre esse dia – um
ninho, um daqueles abrigos arquitectados com rodriguinhos de lama justapostos
que mais fazem lembrar uma colmeia do que um ninho. Após a postura e a migração
para outras paragens nunca mais a andorinha retornou e o ninho quedou-se vazio
no alpendre.
Anos passados, numa outra primavera,
surpreendi um pequeno pássaro, de um castanho-fulvo que ganha brilhos canela
quando a luz do sol lhe incide em pleno voo, peito generoso e bico fino e comprido
de quem catrapisca insectos, numa actividade de sub-aluga, atarefado a
acrescentar os rebordos terrosos do ninho com pequenos fragmentos de vegetação.
Uns dias mais tarde, espreitava do ninho a cabeça de uma avezita que,
plausivelmente, chocava ovos – pois que dali não arredava asa – e um parceiro
fazia cautelosas trajectórias entre o quintal e o ninho por sobre o pescoço da
Mia que, cá em baixo, vigiava atentamente a azáfama.
Foi a essa fase de instalação que o
meu pai, passando uns dias aqui em casa, assistiu com prazer, prazer que se
transformou em deleite quando quatro ou cinco bocas piantes eclodiram no ninho,
reclamando o dia inteiro por sustento. E os pais não mais tiveram sossego, batendo
as redondezas em busca de vermes e pequenos insectos para alimentar aquela
corja uivante que me pejava a tijoleira de abundante merda fresca, despojos que
a Carlota, no seu amor por animais, mangueirava sem se queixar.
A partir desse ano, de cada vez que ia
ao Porto por Abril ou Maio, o meu pai, da sua poltrona na sala de estar,
perguntava:
“Então, já tens inquilinos no ninho
este ano?”
E agora, mesmo nos anos em que nenhum
pássaro vem chocar no velho ninho, a primavera me faz lembrar o meu pai.
© Fotografias de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Maio 2014.
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ANIMAIS
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