Numa tarde do Outono de 1977, tinha
então vinte e quatro anos, fui procurar um amigo de quem era visita quase
diária. Ele não estava e a mulher, de saída para compras, mandou-me entrar para
que o esperasse na sala de estar, um compartimento um pouco soturno, com uma
janela comprida e alteada de cave.
Por ali me sentei e, demorando-se o
dono da casa, comecei a sentir-me enfartado com a espera pelo que me pus a
olhar em volta à procura de algo com que me entreter. Mas o pequeno móvel de
leitura que havia ao lado direito do sofá continha só revistas de malhas e crochet
e um exemplar, de capa vermelha a imitar pelúcia, de Os Maias, o chorudo romance de Eça de Queirós.
Á época, o livro despertava-me o mesmo
grau de interesse que uma revista de bordados e, para um tipo que gostava de
ler como eu, esta aversão era herança directa do modo como no liceu me tinham
feito a apresentação e o cultivo da literatura portuguesa. O que pode
interessar a um rapaz de quinze anos uma epopeia, em verso, do século XVI, como
Os Lusíadas, ou um secante drama de sacrifício
e espessa honra como o Frei Luís de Sousa?
Nada, zero: a única parte potencialmente picante dos Lusíadas (o Canto IX) ninguém nos a explicava ou, sequer, deixava
ler e quanto ao Frei Luís de Sousa o
nosso apetite ficava satisfeito com a passagem do “Romeiro, romeiro, quem és
tu?”, a qual nos provocava um “Ninguém!” entremeado de barrigadas de riso. Exemplos
destes multiplicavam-se, num bocejo permanente, ao longo da Selecta Literária, tomo onde se
enfileiravam as pérolas da literatura portuguesa destinadas a cativar
estudantes do liceu para a prosa doméstica.
Assim, foi por o meu amigo Carlos se
estar a demorar para além do razoável e por absoluta falta de alternativa que
peguei no livro do Eça e o abri na primeira página:
“A casa que os Maias vieram habitar em
Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco
de Paula...”
Quando o Carlos chegou, tardiamente e
sem remorsos, o meu primeiro gesto foi pedir-lhe o livro emprestado e raspar-me
para casa logo que pude, a continuar a leitura. Dessa tarde à de hoje reli Os Maias umas vinte vezes (não exagero)
e tenho por costume fazê-lo
pelo mês de Abril, uma espécie de leitura de primavera, um equivalente mental ao
abrir as janelas à casa, pôr os colchões e fronhas a apanhar sol; trocar a
roupa de inverno pela de verão, que entristecia, encaixotada, na companhia da
lavanda anti-traça.
Conheço Os Maias tão intimamente que, para além de saber o enredo de cor, trato
por tu todos os personagens, dos principais (Carlos e Afonso da Maia, João da
Ega) àqueles que sendo seres humanos diversos, como as três gerações de
administradores Vilaça, se fundem na nossa mente num único personagem, à
semelhança do que Gabriel Garcia Márquez viria a fazer com os Buendia e os
Arcadio, quase oitenta anos depois, em Cem
Anos de Solidão. Dou-me ainda com os sub-humanos como o gato de Afonso (o
reverendo Bonifácio, que nas 600 páginas do livro dura muito mais do que é
gatamente possível a um tareco) ou Niniche, a cadelinha de luxo de Maria
Eduarda. Por o ter desfolhado tantas vezes consigo também aperceber o modo como
Eça montou os andaimes que suportam a estrutura do romance e conduzem a
história ao seu desfecho e identifico os termos que o escritor prefere para
para dar o tom exacto ao cenário ou ao estado de espírito dos heróis: azul-ferrete,
azeviche, faiscante, desmaiando, severo, fino, lânguido, sombrio, cavo,
ebúrneo...
Que felicidade e engenho ter escrito
uma coisa daquelas. Redigido ao longo de quase dez anos, Os Maias foram publicados (em dois
grossos volumes) em 1888 por uma editora do Porto. Cento e vinte e cinco
anos depois não perderam pitada de actualidade, tão bem o livro pinta as
emoções, virtudes e defeitos comuns aos seres humanos e tão certeiramente
retrata a maneira de ser portuguesa, muito dada, então como agora, a
tempestades em pouca água, ao gosto por muita conversa e pouca acção, à inveja
paralisante e maldizente perante os feitos dos outros.
Vou-me, mas deixo-vos com uma passagem
que, estou certo, acharão aterradoramente actual e prova de que, na essência,
os tempos não mudaram assim tanto (o personagem Jacob Cohen, para aqueles que
não lhe conhecem a fronte altiva ou a mulher, é equivalente ao actual director
do Banco de Portugal):
- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá...
O empréstimo faz-se ou não se faz?
E
acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão do empréstimo
era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!...
O
Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade,
que o empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de
receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única
ocupação mesmo dos ministérios era esta – cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim havia de se continuar...
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