A FNAC, a multinacional francesa com
nome de sindicato, tem, na sua loja do Chiado, em Lisboa, uma área reservada a
livros picantes. Essas estantes são encimadas por uma tabuleta, antecedida pela
bolinha vermelha que na TV alerta o espectador para conteúdos chocantes ou
linguagem extrema, onde se lê: GAY/ERÓTICO.
Não sei o que outros pensarão, mas,
para além do provincianismo mal disfarçado em ousadia comercial, esta mistura
no mesmo promíscuo saco de uma certa orientação sexual + conteúdos entesoantes,
traz-me à memória a reacção inicial do mundo em relação à SIDA no início dos
anos 80. Nessa época, se bem se recordam, a SIDA era coisa de panascas, uma
moléstia ligada a práticas indecentes e de que estavam a salvo todos aqueles
que se contentavam com uma posição de missionário sobre a patroa. Os resultados
desse preconceito ignorante depressa se fizeram notar nas tendências da
epidemia que alastrou mundo fora. Assim, e pela mesma bitola, a FNAC parece
considerar que o ser gay é pose que se resume exclusivamente a uma prática
sexual e, simultaneamente, matéria muito excitante e pecaminosa. Dito de outro
modo: essa gente não é bem gente, apenas caricaturas sexuais como os livros
eróticos para donas de casa, agora tão na moda, que incluem sempre, para grande
excitação das glândulas salivares, roupas de couro e umas chicotadas no tutu.
Eu já achava mau, nas livrarias em
geral, as estantes LGBT (acrónimo de Lésbicas-Gays-Bissexuais-Transgéneros), onde,
sob esse estandarte, se passaram a alinhar as lombadas dos livros sobre a
“temática” e, por arrasto, todos os livros de escritores que pertenciam ao
clube! E, então, de repente, e por exemplo, o magnífico As Horas (de Michael Cunningham) desapareceu das estantes comuns e
da antiquada ordem alfabética por autor, para aparecer na secção gayzola. E a arrumação
não mais parou e os autores passaram a
ser catalogados pela sua orientação sexual, mesmo que os seus livros falassem
apenas do que acontece às pessoas nesta breve passagem pela terra.
Ainda por cima, diga-se, o trabalho
dos livreiros deixa muito a desejar, pois a catalogação está a revelar-se
grosseiramente incompleta! Então o que ainda fazem nas prateleiras “normais”
nomes como Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Jane Bowles, Djuna Barnes,
Edith Warton, Susan Sontag, Marguerite Yourcenar e Patricia Highsmith (para
começar pelas senhoras) ou Eurípides,
Sófocles, Sócrates, Platão, Aristóteles, Virgílio, Ovídio, Montaigne, Molière,
Lord Byron, D. H. Lawrence, Oscar Wilde, Thomas Mann, Voltaire, Paul Verlaine,
Arthur Rimbaud, Jean Cocteau, Jean Genet, Andre Gide, Marcel Proust, Federico
García Lorca, Henry James, Herman Melville, Walt Whitman, Tennesse Williams,
Truman Capote, Yukio Mishima, Yasunari Kawabata, E.M. Forster, Somerset
Maugham, Paul Bowles ou os nossos Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e
Frederico Lourenço? Embora já sair da prateleira!
© Fotografia de Pedro Serrano, Lisboa, Abril 2014.
Deixa-me só corrigir que o T de LGBT não é de travestis, mas sim de transgénero. Pode até parecer que estas duas palavras são sinónimos, mas uma coisa é- um homem que gosta de se vestir de mulher e encenar um personagem, outra coisa é uma pessoa que nasce com o sexo feminino, mas que se sente homem ou vice versa.
ResponderEliminarFeito este reparo, gostei muito deste post!
Beijos
@ Right, semi. Bj
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