31 dezembro 2011

AS NOITES BRANCAS DO SENHOR DA ROSA


Quando a Luz nos deixou ao portão da embaixada eram quase quatro da tarde! No trajecto até à porta dos nossos apartamentos estripei a gravata, disse à Ana Cristina:
“Vou fazer a mala e esticar-me um bocado em cima da cama, estou roto. De outro modo vamos passar mal logo à noite...”
Dali a meia-dúzia de horas teríamos de estar no aeroporto e uma exposição de objectos, dispersos pelo apartamento ao longo de três semanas, esperava ser enfiada numa mala que, mirando-me do canto do quarto, já se ia recusando a acumular dentro de si tanto despojo.
Na hora seguinte abri e fechei portas de armários, indaguei fundos de gaveta, decidi que era um disparate transportar comigo o que restara do sabonete que comprara no Kalu e Ângela, o pacote de bolachas torradas. Escrevi um bilhete à Ita, a agradecer as limpezas, as doses generosas de toalhas novas, deixando dito que podia levar as maçãs do minibar, os iogurtes, o pacote de bolachas.
Depois, com a sensação de ter tudo sob controlo, semicerrei os estores e estendi-me na cama para a sesta antes do jantar, a acumular uns átomos de sono que seriam preciosos na dissipação das horas de espera no aeroporto, na noite, sempre mal dormida, a voar sobre o Saara. E em Lisboa, que estavam menos de dez graus, um frio de rachar!
Eram agora cinco e meia. Para o que desse e viesse, configurei o telemóvel para  despertar às sete: teria assim o tempo necessário para me vestir, deixar as malas no apartamento da Ana Cristina, chegar a horas ao jantar com as ministras e os outros importantes todos. Fechei os olhos.
De imediato, desfilou na tela interior dos meus olhos a cerimónia de encerramento do Curso, o discurso do Paulo, as fotografias de despedida com os alunos – a Domingas como fotógrafa –, o almoço volante no andar de cima do Centro de Formação... Que bem se tinha comido: apesar do calor que reconfortante aquela sopa de farinha de milho grosso com pedacinhos de peixe a flutuar, o atum assado, o ensopado de cabrito (não falta nunca cabrito aos almoços especiais de Cabo Verde) e, soberbos, o doce de papaia com queijo de cabra e...
“Já provou o pudim de coco, Ana Cristina?”
“Estava a preparar-me agora para isso”, respondeu, “estou apenas indecisa entre o de coco e o de queijo...”
“Ah!, não hesite”, esclareci, veemente, “vá pelo de coco, está divino! Sabe o que é divino?!”
Garantiu-me que sabia, afinal é católica praticante.
As pálpebras descaíram um pouco mais, a mente deslizou por entre imagens soltas, o sono começou a invadir-me como uma névoa benévola... Foi então que o telemóvel tocou.
“Professor? Aqui José da Rosa. Hoje à tarde não tive a oportunidade de me despedir convenientemente... Tinha muito gosto em convidá-los para ir tomar uma bebida ao meu bar...”
(Em África toda a gente nos chama ‘professor’, já desisti de explicar que, embora passe parte razoável do tempo a dar aulas, não sou um académico encartado).
O Dr. José da Rosa, médico e solteirão inveterado, foi nosso aluno no Curso Internacional de Especialização em Saúde Pública, ao qual chegava, diariamente, levemente atrasado, nada de muito grave, nada que o impedisse de participar empenhadamente no decorrer das sessões. A mim, ele lembrava-me sempre um daqueles personagens que aparecem nas telenovelas brasileiras, passadas nos anos 30 ou 40 em cidades do interior; aquele senhor muito delicado, impecavelmente vestido, com uma pose entre o tímido e o esquivo, solteirão pétreo que vive com uma mãe idosa para não ser asfixiado por alguma mulher mais perigosa. Para além de todas estas virtudes, o Zé da Rosa toca violão, canta, tem um bar (gerido pela irmã) com o seu nome numa das ruas principais do Plateau, bar onde, em noites inspiradas, se fecha a porta e se fazem serenatas... O Jorge Amado poderia inspirar-se nele, no jeito pausado de articular as palavras, de acentuar as sílabas como se as declamasse num português sul-americano que ecoa a toada do castelhano cubano; de iniciar a resposta a qualquer questão, ainda que de sentido afirmativo, com um “não”.
Sim, era verdade, o Zé da Rosa não se despedira convenientemente de nós. Chegara um pouco atrasado à cerimónia de encerramento do Curso e desaparecera, misteriosamente, durante o almoço; quando saímos não o conseguimos encontrar para dizer um adeus.
“Ah, não se preocupe, professor”, atirou a Luz, com o seu ar de menina travessa, “deve ter ido por aí fazer alguma visitinha...”
Desliguei o telefone, sentei-me na borda da cama, cocei a cabeça.
“Ana Cristina”, disparei mal ela abriu a porta, “o Zé da Rosa quer que a gente vá ao bar dele, ver a Noite Branca no Plateau...”
“Agora?!”, exclamou ela, arregalando os olhos ensonados.
Foi ela que ligou ao homem, a esclarecer a coisa, tentando dissuadi-lo, pois tínhamos pouco mais de três quartos de hora para todo o programa proposto: chegar ao Plateau, ir ao bar, ver a Noite Branca, estar no jantar de gala às oito em ponto. Mas o Zé da Rosa achou toda aquela argumentação pouco impressionante, garantiu-nos que havia tempo para tudo, dentro de dez minutos estaria à porta da embaixada à nossa espera.
Aproveitei os dez minutos e fui ao meu quarto buscar a mala, transbordei-a para o apartamento da Ana Cristina. Depois, olhei uma última vez o meu quarto, verifiquei que não esquecera nada e bati a porta com a chave lá dentro, que são as regras de quem parte.
“Dr. Zé da Rosa, acha mesmo que temos tempo de ir lá em cima?”, disparei mal nos abriu a porta do jipe, “não era melhor ficarmos aqui pelo Poeta?”
“Não, temos muito tempo; em cinco minutos estamos lá em cima...”
“Olhe que, às oito em ponto tenho de estar no hotel Praia-Mar...”
“Não, professor, não vai haver problema, às oito deixo-o lá...”
A cidade da Praia, capital da ilha de Santiago e do arquipélago de Cabo Verde, também se recorta em colinas e a nossa vida por lá consistia em descer do morro da Achada de Santo António, onde se situa a embaixada de Portugal, e subir até ao Plateau (como o nome sugere, a parte alta da cidade), onde ficava o nosso local de trabalho. Entre colinas, tem-se o mar aos pés e, no cimo delas, uma vista cheia sobre o Atlântico, em azul, verde ou prateado conforme as horas.
O trânsito começou a emperrar no começo da subida para o Plateau e o meu sentido do tempo fez-me mover, inquieto, no assento, enquanto, ao volante, o Zé da Rosa falava da vida de Cesária Évora, que morrera nessa tarde. Andámos mais uns metros e começou a ouvir-se o som profundo de tambores, uma massa de som como o dos nossos Zés Pereiras, mas com uma batida que lembrava a do carnaval brasileiro. Abri a janela, senti entrar o cálido da noite, esqueci o tempo e perguntei:
“Afinal o que se passa no Plateau?”
“Não”, respondeu o nosso guia, “são as festas da cidade, a Noite Branca...”
Dei-me então conta que o homem estava vestido de branco... Pensei em neve...
“Mas tem a ver com o Natal? É uma tradição de Dezembro?”
“Não, tem a ver, sim, com o Natal, mas é a primeira vez que as festas se fazem na cidade; estão a assistir a isto pela primeira vez”, respondeu ele, extasiado por estarmos a assistir com ele ao nascimento de um fenómeno.
A culpa daquilo tudo era do novo presidente da Câmara de Santiago. Nós já tínhamos reparado que, nos últimos dias, uma azáfama especial se apoderara calmamente da cidade: muros estavam a ser caiados, passeios reconstruídos a alta velocidade; ao lado da esplanada do Morabeza nascera uma feira do livro que se espraiava pela rua pedonal, palcos eram carpinteirados...
“Não, o homem teve uma ideia genial e cada local do Plateau vai ter uma animação, toda feita pelo povo: numa praça vai dizer-se poesia, noutra faz-se teatro, noutras ruas vai ter música... E foi pedido que toda a gente saísse vestida de branco.”
E era tudo isso, com uma passagem rápida pelo Bar José da Rosa, que ele nos queria mostrar entre as sete e meia e as oito.
O nosso guia estacionou o carro num sítio meio proibido e deslizámos por entre gente vestida de branco. A cada cinquenta metros uma pessoa cumprimentava o Dr. José da Rosa e, a cada cem, ele parava para nos apresentar alguém com quem trocava saudações de Natal, com quem comentava que linda e animada estava a cidade. E até a nós, olhos recentes no Plateau e em Santiago, tudo nos parecia transfigurado. Na praça vizinha da loja de discos, um tipo fazia um monólogo cómico em crioulo, para logo passar a apresentar um coro que tomou conta do palco e da noite a cantar clássicos de Natal.
Começou a apetecer-nos abrandar o passo, ficar a olhar o que se passava e agora era o próprio Zé da Rosa que olhava pelo nosso relógio. Avançámos e na rua principal, mesmo ao lado do mercado, um palhaço interpelava um cacho de miúdos pequenitos a imitar os gestos e as vozes de animais: gatos, galinhas, cães e, suspense maior, o rugido e o avançar perigoso de um tigre. Em volta, pais e mães sorridentes, gargalhavam, batiam palmas. Mais à frente, já não distante da esplanada do Morabeza, uma roda compacta de assistentes não deixava ver o que se passava no seu centro, apenas nos chegava um batucar incessante. Furámos, esfuracámos entre cabeças e ombros até termos um vislumbre do miolo: eram batucadeiras, algo que já ouvira em CD mas nunca vira. Um rancho de mulheres sentava-se em círculo com um pequeno tambor entre as pernas e produzia um som contínuo que nos atingia directamente no plexo solar. No meio da roda, seis ou sete mulheres dançavam ao ritmo da percussão. De tempos a tempos, as instrumentistas aceleravam o ritmo para uma batida frenética e as dançarinas acompanhavam o frenesi sonoro com um movimento de corpo vizinho próximo da possessão, mexida que contagia quem vê, e passei a sentir o coração bater directo na garganta.
“Temos de ir...”, soprou a Ana Cristina a meu lado, depois de se conseguir arrancar daquela visão e ter olhado o relógio.
Regressámos ao carro, o olhar ainda preso nas manifestações que se desdobravam em cada canto, na multidão passeando-se de lá para cá numa festa de Natal que tinha algum tempero das celebrações dos santos populares portugueses.
“Ainda bem que insistiu para que viéssemos, Dr. José”, a Ana Cristina dava corpo ao que era exactamente o meu pensamento nesse momento.
“Não, tenho pena é de não termos podido passar pelo meu bar, mas, de facto...”
De facto já eram oito menos cinco e o jipe ainda gincanava entre gente, mas porque estávamos em pleno milagre de Natal o José da Rosa, guiando de forma algo destemperada, conseguiu pôr-nos no nosso destino à hora marcada.

© Fotografias de Pedro Serrano, cidade da Praia, Santiago, Cabo Verde, 2011.
   



27 dezembro 2011

SAUDOSAMENTE


Como todas as mulheres cabo-verdianas, a Ministra Adjunta e da Saúde é uma mulher bonita, particularmente quando lhe é permitido relaxar da pose fechada dos momentos oficiais e nos brinda com um sorriso expressivo e um olhar inteligente e incisivo.
A senhora chama-se Cristina Fontes e aquele ‘Adjunta’ que antecede o  cargo de ‘Ministra da Saúde’ quer dizer que é também adjunta do primeiro ministro do país. Mas, afinal, que é isso para quem já foi Ministra da Reforma do Estado e da Defesa ou seja, para quem já mandou em todos os homens armados do arquipélago?
No dia 17 de Dezembro, enquanto por aqui se batia o dente, a cidade da Praia amanheceu azul e quente e, ainda não batiam as dez da manhã, já eu suava em bica, estrangulado pela gravata de cerimónia que o encerramento do Curso, de que era um dos responsáveis, aconselhava e a presença de duas ministras e meia (duas da Saúde, mais o tal acrescento de ‘Adjunta’) tornava obrigatório.
Durante a tarde soubemos da morte de Cesária Évora e pensei até que o jantar para que a Ministra, gentilmente, nos tinha convidado poderia ser cancelado perante tal desgosto nacional e a perspectiva de três dias de luto.
Quando a Ministra chegou ao hotel onde decorreria o jantar, meia-dúzia de portugueses comentavam o emblemático e recém-cometido gesto do Futebol Club do Porto: no início do jogo dessa noite fizera-se um minuto de silêncio no Estádio do Dragão e as dezenas de milhares  de pessoas que enchiam o recinto puseram-se de pé e entoaram o “Saudade”. Juntando-se ao pequeno grupo, a Ministra ouviu a história e vi, pela sua expressão e pelo pedido de repetição de alguns detalhes, que a homenagem portuguesa a tinha impressionado.
Mais tarde, já durante o jantar, o grupo musical que abrilhantava o fundo sonoro, tocou o “Saudade” e a Ministra, mal eles terminaram a canção, pediu o microfone ao cantor e falou o que lhe ia na alma. Sobre Cesária, fundamentalmente, e o que ela acabara por ser ao tornar-se, pela música, embaixatriz de Cabo Verde no mundo. Não deixou, como eu sabia que aconteceria, de referir o que se tinha passado, escassas horas antes, num estádio de futebol português e o quanto isso lhe fora grato conhecer.  Encaixado entre benfiquistas e sportinguistas, que os meus comparsas portugueses no jantar eram todos do Sul, senti o quentinho que subia em todos nós daquela salva de palmas e, adjunto, um suplemento de brilho pela iniciativa mais bonita daquele dia ter brotado em gente da cidade onde nasci.   

© Fotografias: (1) Expresso das Ilhas, Cabo Verde; (2) Pedro Serrano, sobre convite do Ministério da Saúde de Cabo Verde, 2011.

26 dezembro 2011

O CASTELO NAS NUVENS


Estávamos a repousar num amplo terraço verdejante, o qual podia muito bem ser o espaço comum de um hotel nas margens de um lago suíço. Eu sentava-me, meio de través, numa daquelas cadeiras desdobráveis de lona e madeira, cujo assento e encosto das costas são em tecido branco, e olhava uma mesa onde repousava uma coruja empalhada, encarrapitada num ramo de árvore artificial, atarraxado a uma base de jade. Ao lado da coruja, sobre o tampo de vidro da mesa, um livro aberto, com uma caneta a servir de marca, um daqueles canhenhos volumosos onde se deixam mensagens de presença em casamentos e funerais.
“Bonita coruja”, comentei, “será que está à venda?”
A meu lado, reclinado numa cadeira de convés, o Juca esclareceu:
“Não é para venda! Está aí para anunciar as visitas guiadas aos ninhos dos mochos do castelo, o livro é para registar as inscrições...”
E estendeu um dedo entediado, indicando onde tudo isso se passava. Olhei: ao fundo, recortado contra o céu azul-claro de uma tarde que se esfriava, destacava-se uma enorme construção, com vários corpos, recordando o Castelo Howard, em Inglaterra, onde foi filmado grande parte da série Brideshead Revisited.
Sim, pensei, podia haver muita coruja, muito mocho, acoitado naquelas cúpulas todas, em todas aquelas cornijas... Por uma feliz coincidência ou por um qualquer acaso significativo, no preciso intervalo em que o meu olhar ainda se detinha nos telhados do palácio, uma das alas superiores da imensa mole de pedra destacou-se do edifício e voou, perfeita, no céu, dirigindo-se na nossa direcção e ganhando altitude.
“Como é possível?”, balbuciei alto, vendo deslocar-se, íntegra, sem uma pedra que desmoronasse, um vaso de rocha que oscilasse, uma gárgula que tremesse, uma esquina que esfarelasse, aquele pedaço do edifício.
O Juca, uma mão em pala sobre a testa, manteve-se em silêncio, observando fascinado aquele fenómeno aeronáutico de invulgar arrojo, até que, ao passar sobre nós a caminho da linha do horizonte, a ala do castelo se volveu num avião de grande porte que, ao curvar graciosamente, expeliu duas linhas de fumo branco das traseiras mas manteve, até que o perdemos de vista, todos os contornos distintivos de um castelo-palácio inglês do século XVIII.
“Este gajos do Brideshead fazem tudo em grande estilo”, exclamou o Juca, “olha-me só o cunho personalizado que imprimem aos seus aviões... Nunca tinha visto nada parecido!”
O Juca ainda lá ficou, no relvado, esparramado na sua cadeira de convés, eu, contudo, acordei logo a seguir.

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Porto, Junho 2011; (2) Leipzig, Novembro 2011.

21 dezembro 2011

O CANTAR DAS CHÁVENAS


Da direita para a esquerda: Domingas, Chitungo, Ana Cristina.
O encerramento do curso teve lugar no Sábado, mas já quinta-feira lhe nascia uma lágrima ao canto do olho.
“Então, Domingas...?”, repreendia-a carinhosamente a Ana Cristina.
“Já viu, doutora”, lamentava-se ela, “prá semana já não vai estar cá ninguém...”
E enquanto nós e os alunos rodopiávamos de azáfama, achando o tempo curto para o muito que ainda faltava concluir, ela antecipava uma eternidade silenciosa e solitária.
A Domingas é uma mulher jovem, baixinha e tímida, apagando-se na modéstia da sua função e, na soma disso tudo, demorei a dar-me conta da dimensão daquela pessoa que me saudava com um sorriso envergonhado todas as manhãs quando, ao bater das oito e meia, eu atravessava o átrio, enfeitado com plantas a crescer em garrafas de plástico cortadas ao meio, que levava à cave onde decorriam as aulas. Por volta das dez e um quarto ela descia contidamente as escadas e, pouco depois, ouvia-se um discreto tilintar de chávenas por trás do biombo azul que separa a sala da mesa redonda onde era posto o lanche do meio da manhã. Café, chá, sumos de fruta e, consoante os dias e as subscrições, bananas, bolachas, mel, cuscuz de milho com manteiga, ou rissóis de atum, pizza de atum, pastéis de atum, que o atum é um peixe popular e abundante em Cabo Verde.
“Domingas”, dizia eu, brincalhão, “corta-me uma fatia de bolo de atum?”
Ela ria, transformando os olhos amendoados e inteligentes numa fresta, devolvendo-me a piada na próxima oportunidade. Depois, a cada dia que passava, fui notando a presença daquela rapariga que, no intervalo dos lanches e das limpezas, se sentava no topo da mesa da biblioteca, compenetrada num dos abundantes portáteis do Centro de Formação e Especialização Médica.
“Que é que você procura aí?”, perguntava, curioso.
Ela encolhia os ombros, acanhada e modesta, mas traindo-se no à vontade com que usava o rato.
“Coisas... Notícias, o Messenger...”
“Nunca pensou em estudar?”, queria eu saber, achando que lhe calhava bem aquele fundo de estantes de livros e a atenção dedicada à tarefa de navegar no éter, tão distinta da pose com que nos servia o café e os bolos, com que nos ia cumprir um recado.
Acenou que sim. Tinha estudado até ao sexto ano, depois interrompera, tivera dois filhos, inscrevera-se outra vez nas aulas mas desistira por falta de tempo, de estímulo.
“Aproveite agora, pense nisso”, insistia, pois ia percebendo como era sagaz aquela pequena mulher que, com o assentimento amistoso de todos os alunos do Curso, iniciava a preparação dos nossos lanches pela reserva de uma porção do mesmo para os filhos pequenitos que a esperavam em casa.
No Sábado de manhã, lá andava ela, impecável na sua camisa branca debruada a anil, na saia azul do seu uniforme de servente, apagando-se naquela multidão de ministros, embaixadores, directores, representantes, a TV de Cabo Verde, mas sempre desperta para os pormenores e pequenas necessidades.
Antes da debandada, todos quisemos tirar fotos com ela, o Chitungo (um médico angolano, do Huambo), na seu jeito generoso, não a esqueceu nos embrulhos de Natal que distribuiu por todas as colegas do Curso. Depois das fotos tiradas, ela continuou junto de nós, servindo de fotógrafa a todas as possíveis poses do grupo, pegando, à vez, em cada uma das cinco máquinas digitais enfileiradas sobre o gerador com o à vontade de uma profissional, disparando sem hesitação e vindo-nos mostrar cada um dos enquadramentos a que chegara.
No último beijo, no último abraço, ela voltou à sua ideia fixa:
“Ai, doutor, já viu como vai ser na segunda-feira? Nem vou ter que fazer, aqui sem ninguém na sala lá em baixo...”
Sim, saudade era uma palavra e um sentimento que todos os presentes conseguiam partilhar, e cada um no seu jeito angolano, português, cabo-verdiano, guineense, são tomense, ia ter saudades daquele ano passado junto, mas ninguém as iria sentir morder na pele como ela quando, por volta das dez e um quarto da manhã, lhe faltasse o tilintar das chávenas na sala lá de baixo.

© Fotografias: (1) Almeida Chitungo; (2) Pedro Serrano. Praia (Cabo Verde), Dezembro 2011.

15 dezembro 2011

PRIMEIRO BEIJO (ao vivo)



Canção: "Dor Di Nha Alma"; autor Betù. Cantora: Lucy; pianista: Manuel Candinho. Ao vivo no Nice's CachitoPraia (Cabo Verde), 10 de Dezembro 2011© Video de Pedro Serrano, filmado em câmara Leica V Lux-20. Veja também no YouTube em: http://youtu.be/qNZoVgoI9gQ


Duem tcheu
Alma pertam ta tchora
Bo nha rainha c'ainda onte
Juram bo amor

Pa ba na kel mesmo lugar
Cum prova mam'crebô tcheu
Cai na braços ki ka di meu
Ki ka di meu

Magoam la na fund’ do coraçon
Corpo derretem
Solvê na mar d'ingratidão

M'ta lembra nos primero beijo
Era segredo d'nos paixão
Pa caba'sim di note pa dia
Note pa dia

Hoje pa bô, mim m'ka nada
Um indiferença
Bo ta spiam
Ka t'odjam
Pior ki morte

Ma disilusão ta dué
Ta quema ki nem lume
Ta foga ki nem agua
T'arasa ki nem vente
Nha amor
Nha fantasia
                                   

10 dezembro 2011

O TÁXI HUMANO

Aqui, na cidade da Praia, vou todos os dias tomar o pequeno-almoço ao Pão Quente, um café-pastelaria de índole fortemente caseira, onde me sento e peço, em português sonolento, a uma das empregadas de turbante cor-de-laranja: "Queria uma carcaça com queijo, sem manteiga, e um Ucal de chocolate fresco..." No estrangeiro, melhor do que isto, é difícil de imaginar, não?
Pois o Pão Quente do Plateau, aquele que frequento de manhãzinha antes de começar o trabalho, está pujante e abriu agora duas filiais na cidade: uma no Palmarejo, lá para os lados do Palácio do Governo, e outra na Achada de Santo António, mesmo em frente aos nossos apartamentos da Cooperação Portuguesa.
Hoje, que é Sábado, fui lá tomar o meu pequeno-almoço tardio e, enquanto esperava, fui reparando que, por cima da caixa, havia uma fotografia emoldurada de um velho senhor sorridente, na qual, como legenda, se lia "DÁTI, Táxi humano". Curioso, como sou, não demorei a perguntar quem era e porque ali estava aquele retrato. 
A moça do turbante cor-de-laranja de serviço aos trocos explicou que Dáti era um homem que transportava, fosse o que fosse, de um local para qualquer outro local, cobrando sempre a quantia de 2$00 escudos (cerca de 17 cêntimos), independentemente da distância percorrida e da carga ser um bidão de água, uma bilha de gás ou um saco de cimento.
Dáti morava numa casinha modesta, situada no local onde agora inauguraram o Pão Quente da Achada de Santo António, e, embora já falecido, continua a ser um personagem querido na zona.
"Ah, então foi uma espécie de homenagem que vocês lhe resolveram fazer..."
Ela abanou o turbante afirmativamente e fechou a gaveta da caixa registadora sobre o troco que pousara na palma da minha mão.






Fotografias de Pedro Serrano: (1) Praia, Santiago, Dezembro 2011; (2) Pão Quente do Plateau, Praia, Santiago, Setembro 2011.

08 dezembro 2011

ASSENTO ORTOGRÁFICO

Pombas acentuáveis

© Foto: Pedro Serrano, Cabo Verde, Dezembro 2011.

04 dezembro 2011

ENTRETANTO EM CABO VERDE...

Já se prepara afanosamente o Natal
Mas continua a saber bem uma boa sombra...
© Fotografias: Pedro Serrano, Cabo Verde, Dezembro 2011.

03 dezembro 2011

Contigo en la distancia (2.º andamento)


Em termos musicais julgava que Cuba era caso único, que não existia outro país no mundo onde, sem mexer um dedo, uma pessoa passasse o dia imerso em música, em que a música fosse tão inseparável do batimento vital dos habitantes.
Até escrevi por aqui um texto sobre isso (Contigo en la distancia), mas enganei-me na exclusividade do território e a palmatória chegaria à minha mão sete anos depois, num frio dia de fim de Outono...
Numa gelada noite de Novembro, saído de um avião a hélice que me trouxera de Munique, apanhei um táxi para o centro de Leipzig onde iria passar o fim de semana. Leipzig é uma cidade da antiga Alemanha de Leste e é impossível passear pelas suas ruas, sobretudo ao cruzar a antiga sede da Stasi (a terrível e eficaz polícia política do regime comunista da defunta Alemanha Democrática), sem sentir um calafriozinho e dirigir uma prece a John Le Carré.
Leipzig é uma urbe tranquila, lembrando um pouco o Porto no seu tom geral acinzentado, nos seus edifícios de pedra inteira. O trânsito, pelos padrões europeus, é escasso e silenciosos eléctricos atravessam a cidade a toda a hora, ao minuto previsto no horário. E, a pouco e pouco, a gente começa a reparar: ponte Beethoven, avenida Gustav Mahler, escola de música Félix Mendelssohn... Tal como já sucedia nos séculos XVII e XVIII, em Leipzig as igrejas continuam a ser o grande centro musical da cidade, eu que o diga que em dois dias assisti a dois concertos em duas igrejas e, se tivesse ficado mais tempo, poderia continuar nesse regime de modo indefinido, pois todas as semanas há um programa musical diferente.
Nesta época do ano às quatro e meia já é noite e a foto da ponte Beethoven (aqui ao lado) foi tirada às cinco da tarde por umas mãos que ficaram geladas só pelo breve minuto que ficaram fora das luvas de lã polar. Depois, fomos à missa das seis da tarde na igreja de São Tomás, um edifício tão descomunal que, pelas nossa bitola arquitectónica, mais parece uma catedral e onde, entre 1727 e até à sua morte em 1750, João Sebastião Bach foi o mestre da música que se organizava pela cidade e principal instrumentista do órgão que ainda existe em São Tomás.
Apesar de duraram uma hora, as missas luteranas são menos chatas do que as nossas e bastante mais inspiradoras. De todo o tempo da cerimónia, o padre fala, no máximo, uns quinze minutos, alguns dos quais para enquadrar e anunciar as peças musicais que vamos ouvir de seguida. Durante o resto do tempo os fiéis escutam música pura e se uns rezarão com a banda sonora ideal, outros perder-se-ão em pensamentos vários e vagos e os restantes ouvirão apenas música. Música de Bach, naturalmente, algumas daquelas cantatas que ele produzia ao ritmo de uma por semana, mas também peças de colegas seus da época e, ainda, autores contemporâneos, interpretadas nesse dia por um coro de rapazitos cujas vozes angelicais e os agudos desumanos nos transportavam para um reino que não é decididamente deste mundo.

Confortados, percorríamos, silenciosos, as antigas ruas da cidade em direcção ao nosso jantar quando reparei num cartaz afixado na frontaria da igreja de S. Nicolau.
“Que engraçado! A semana passada comprei em Lisboa a Missa de Requiem do Verdi – apeteceu-me ver como seria um requiem do século XIX – e agora olha para ali...”
Ele observou com cuidado o cartaz que anunciava, para o dia seguinte, a Missa de Requiem de Giuseppe Verdi, às dezassete horas, na igreja de S. Nicolau.
“Queres ir, pai?”, perguntou.
Fomos. Aquilo durou duas horas, que passaram sem se dar conta, e na nave da igreja, invadindo a zona do altar, uma multidão de mais de cem pessoas, entre músicos, maestro e cantores, derramou sobre a igreja cheia a obra italiana que, aqui e ali, faz lembrar uma ópera. E, às nove e meia da noite, estávamos já a descer as escadas de uma cave onde assistimos a um belo concerto de jazz dado pelos Apfelkomp(l)ott Compota de Maçã, um trio de saxofone-contrabaixo-bateria formado por colegas do Zé João na escola de música Felix Mendelssohn.
No dia seguinte, a meio de um domingo que já anoitecia, despedi-me dele à porta da gigantesca estação de comboios de Leipzig. Pouco depois estava no aeroporto, a aguardar o meu avião para Frankfurt, de onde teria voo de regresso a casa.
Quando o avião levantou voo, colei a cara ao vidro crescentemente esfriado da janelita, vendo as luzes de Leipzig cada vez mais ao longe e o negrume da noite fechando-se sobre aquele lugar perdido no mundo onde ficava, entregue a si próprio, o meu filho.

© Fotografias: De cima para baixo: (1) Máquina fotográfica usada pela Stasi, fotógrafo desconhecido; (2) (3) (4) (5), Pedro Serrano, Leipzig, Novembro 2011.






30 novembro 2011

Um Novembro como esse

   Entretanto, na Prainha, o tempo continua de banhos.

© Foto: Pedro Serrano, Cabo Verde, 2011

23 novembro 2011

LUZ DO SOL


Afinal
Aquelas tais estrelas cintilantes
D’outrora
Não são mais que mica brilhante
Agora.
Recamavam o banco de granito
Onde me empoleirava a espreitar
A procissão oscilante sobre pétalas
D’outrora
E onde me sento a descansar
Agora,
Friorento, semicerrado e mole.
Sobrevivem-nos as pedras e
A luz do sol

© Fotografia: Pedro Serrano, Leipzig, Novembro 2011.

22 novembro 2011

Cantai uma canção nova ao Senhor*


© Fotografia: Pedro Serrano, Leipzig, Novembro 2011.
Sentada na fila à nossa frente, a menininha da foto, mal o primeiro acorde do órgão se fez ouvir na imensa nave, não teve hesitação em olhar para cima, à procura da fonte daquele som.
Lá no alto, naquele mesmo balcão, há 260 anos atrás, o homem que pedalava o instrumento dava pelo nome de João Sebastião Bach e todas as semanas gostava de estrear naquela igreja, de que era mestre-cantor, uma composição sua dedicada ao Senhor, pois era o modo de garantir que lhe pagavam o ordenado ao fim do mês.
Quem mais lucrou com isso fomos todos nós, os que viemos a seguir, inclusive a menininha do casaco vermelho.




*J.S. Bach: "Singet dem Herrn ein neues Lied", BWV 225.