Quando a Luz nos deixou ao portão da embaixada eram quase
quatro da tarde! No trajecto até à porta dos nossos apartamentos estripei a
gravata, disse à Ana Cristina:
“Vou fazer a mala e esticar-me um
bocado em cima da cama, estou roto. De outro modo vamos passar mal logo à
noite...”
Dali a meia-dúzia de horas teríamos de
estar no aeroporto e uma exposição de objectos, dispersos pelo apartamento ao longo de três semanas,
esperava ser enfiada numa mala que, mirando-me do canto do quarto, já se ia
recusando a acumular dentro de si tanto despojo.
Na hora seguinte abri e fechei portas de armários, indaguei fundos de
gaveta, decidi que era um disparate transportar comigo o que restara do sabonete
que comprara no Kalu e Ângela, o
pacote de bolachas torradas. Escrevi um bilhete à Ita, a agradecer as limpezas,
as doses generosas de toalhas novas, deixando dito que podia levar as maçãs do
minibar, os iogurtes, o pacote de bolachas.
Depois, com a sensação de ter tudo
sob controlo, semicerrei os estores e estendi-me na cama para a sesta antes do
jantar, a acumular uns átomos de sono que seriam preciosos na dissipação das
horas de espera no aeroporto, na noite, sempre mal dormida, a voar sobre o Saara.
E em Lisboa, que estavam menos de dez graus, um frio de rachar!
Eram agora cinco e meia. Para o que desse e viesse, configurei o
telemóvel para despertar às sete: teria
assim o tempo necessário para me vestir, deixar as malas no apartamento da Ana
Cristina, chegar a horas ao jantar com as ministras e os outros importantes
todos. Fechei os olhos.
De imediato, desfilou na tela interior dos meus olhos a cerimónia de
encerramento do Curso, o discurso do Paulo, as fotografias de despedida com os
alunos – a Domingas como fotógrafa –, o almoço volante no andar de cima do
Centro de Formação... Que bem se tinha comido: apesar do calor que
reconfortante aquela sopa de farinha de milho grosso com pedacinhos de peixe a
flutuar, o atum assado, o ensopado de cabrito (não falta nunca cabrito aos
almoços especiais de Cabo Verde) e, soberbos, o doce de papaia com queijo de
cabra e...
“Já provou o pudim de coco, Ana Cristina?”
“Estava a preparar-me agora para isso”, respondeu, “estou apenas
indecisa entre o de coco e o de queijo...”
“Ah!, não hesite”, esclareci, veemente, “vá pelo de coco, está divino!
Sabe o que é divino?!”
Garantiu-me que sabia, afinal é católica praticante.
As pálpebras descaíram um pouco mais, a mente deslizou por entre imagens
soltas, o sono começou a invadir-me como uma névoa benévola... Foi então que o
telemóvel tocou.
“Professor? Aqui José da Rosa. Hoje à tarde não tive a oportunidade de me
despedir convenientemente... Tinha muito gosto em convidá-los para ir tomar uma
bebida ao meu bar...”
(Em África toda a gente nos chama ‘professor’, já desisti de explicar
que, embora passe parte razoável do tempo a dar aulas, não sou um académico
encartado).
O Dr. José da Rosa, médico e solteirão
inveterado, foi nosso aluno no Curso Internacional de Especialização em Saúde
Pública, ao qual chegava, diariamente, levemente atrasado, nada de muito grave,
nada que o impedisse de participar empenhadamente no decorrer das sessões. A
mim, ele lembrava-me sempre um daqueles personagens que aparecem nas
telenovelas brasileiras, passadas nos anos 30 ou 40 em cidades do interior; aquele
senhor muito delicado, impecavelmente vestido, com uma pose entre o tímido e o
esquivo, solteirão pétreo que vive com uma mãe idosa para não ser asfixiado por
alguma mulher mais perigosa. Para além de todas estas virtudes, o Zé da Rosa
toca violão, canta, tem um bar (gerido pela irmã) com o seu nome numa das ruas
principais do Plateau, bar onde, em noites inspiradas, se fecha a porta e se
fazem serenatas... O Jorge Amado poderia inspirar-se nele, no jeito
pausado de articular as palavras, de acentuar as sílabas como se as declamasse
num português sul-americano que ecoa a toada do castelhano cubano; de iniciar a
resposta a qualquer questão, ainda que de sentido afirmativo, com um “não”.
Sim, era verdade, o Zé da Rosa não se
despedira convenientemente de nós. Chegara um pouco atrasado à cerimónia de
encerramento do Curso e desaparecera, misteriosamente, durante o almoço; quando
saímos não o conseguimos encontrar para dizer um adeus.
“Ah, não se preocupe, professor”,
atirou a Luz, com o seu ar de menina travessa, “deve ter ido por aí fazer
alguma visitinha...”
Desliguei o telefone, sentei-me na
borda da cama, cocei a cabeça.
“Ana Cristina”, disparei mal ela abriu
a porta, “o Zé da Rosa quer que a gente vá ao bar dele, ver a Noite Branca no Plateau...”
“Agora?!”, exclamou ela, arregalando
os olhos ensonados.
Foi ela que ligou ao homem, a
esclarecer a coisa, tentando dissuadi-lo, pois tínhamos pouco mais de três
quartos de hora para todo o programa proposto: chegar ao Plateau, ir ao bar,
ver a Noite Branca, estar no jantar de gala às oito em ponto. Mas o Zé da Rosa
achou toda aquela argumentação pouco impressionante, garantiu-nos que havia
tempo para tudo, dentro de dez minutos estaria à porta da embaixada à nossa
espera.
Aproveitei os dez minutos e fui ao meu
quarto buscar a mala, transbordei-a para o apartamento da Ana Cristina. Depois,
olhei uma última vez o meu quarto, verifiquei que não esquecera nada e bati a
porta com a chave lá dentro, que são as regras de quem parte.
“Dr. Zé da Rosa, acha mesmo que temos
tempo de ir lá em cima?”, disparei mal nos abriu a porta do jipe, “não era
melhor ficarmos aqui pelo Poeta?”
“Não, temos muito tempo; em cinco
minutos estamos lá em cima...”
“Olhe que, às oito em ponto tenho de
estar no hotel Praia-Mar...”
“Não, professor, não vai haver
problema, às oito deixo-o lá...”
A cidade da Praia, capital da ilha de
Santiago e do arquipélago de Cabo Verde, também se recorta em colinas e a nossa
vida por lá consistia em descer do morro da Achada de Santo António, onde se
situa a embaixada de Portugal, e subir até ao Plateau (como o nome sugere, a
parte alta da cidade), onde ficava o nosso local de trabalho. Entre
colinas, tem-se o mar aos pés e, no cimo delas, uma vista cheia sobre o Atlântico,
em azul, verde ou prateado conforme as horas.
O trânsito começou a emperrar no
começo da subida para o Plateau e o meu sentido do tempo fez-me mover,
inquieto, no assento, enquanto, ao volante, o Zé da Rosa falava da vida de
Cesária Évora, que morrera nessa tarde. Andámos mais uns metros e começou a
ouvir-se o som profundo de tambores, uma massa de som como o dos nossos Zés
Pereiras, mas com uma batida que lembrava a do carnaval brasileiro. Abri a
janela, senti entrar o cálido da noite, esqueci o tempo e perguntei:
“Afinal o que se passa no Plateau?”
“Não”, respondeu o nosso guia, “são as
festas da cidade, a Noite Branca...”
Dei-me então conta que o homem estava
vestido de branco... Pensei em neve...
“Mas tem a ver com o Natal? É uma
tradição de Dezembro?”
“Não, tem a ver, sim, com o Natal, mas
é a primeira vez que as festas se fazem na cidade; estão a assistir a isto pela
primeira vez”, respondeu ele, extasiado por estarmos a assistir com ele ao
nascimento de um fenómeno.
A culpa daquilo tudo era do novo presidente
da Câmara de Santiago. Nós já tínhamos reparado que, nos últimos dias, uma
azáfama especial se apoderara calmamente da cidade: muros estavam a ser
caiados, passeios reconstruídos a alta velocidade; ao lado da esplanada do Morabeza nascera uma feira do livro que
se espraiava pela rua pedonal, palcos eram carpinteirados...
“Não, o homem teve uma ideia genial e
cada local do Plateau vai ter uma animação, toda feita pelo povo: numa praça vai
dizer-se poesia, noutra faz-se teatro, noutras ruas vai ter música... E foi
pedido que toda a gente saísse vestida de branco.”
E era tudo isso, com uma passagem
rápida pelo Bar José da Rosa, que ele
nos queria mostrar entre as sete e meia e as oito.
O nosso guia estacionou o carro num
sítio meio proibido e deslizámos por entre gente vestida de branco. A cada
cinquenta metros uma pessoa cumprimentava o Dr. José da Rosa e, a cada cem, ele
parava para nos apresentar alguém com quem trocava saudações de Natal, com quem
comentava que linda e animada estava a cidade. E até a nós, olhos recentes no
Plateau e em Santiago, tudo nos parecia transfigurado. Na praça vizinha da loja
de discos, um tipo fazia um monólogo cómico em crioulo, para logo passar a
apresentar um coro que tomou conta do palco e da noite a cantar clássicos de Natal.
Começou a apetecer-nos abrandar o
passo, ficar a olhar o que se passava e agora era o próprio Zé da Rosa que
olhava pelo nosso relógio. Avançámos e na rua principal, mesmo ao lado do
mercado, um palhaço interpelava um cacho de miúdos pequenitos a imitar os
gestos e as vozes de animais: gatos, galinhas, cães e, suspense maior, o rugido
e o avançar perigoso de um tigre. Em volta, pais e mães sorridentes,
gargalhavam, batiam palmas. Mais à frente, já não distante da esplanada do Morabeza, uma roda compacta de
assistentes não deixava ver o que se passava no seu centro, apenas nos chegava um batucar incessante. Furámos, esfuracámos entre cabeças e ombros até termos um
vislumbre do miolo: eram batucadeiras, algo que já ouvira em CD mas nunca vira.
Um rancho de mulheres sentava-se em círculo com um pequeno tambor entre as
pernas e produzia um som contínuo que nos atingia directamente no plexo solar.
No meio da roda, seis ou sete mulheres dançavam ao ritmo da percussão. De
tempos a tempos, as instrumentistas aceleravam o ritmo para uma batida
frenética e as dançarinas acompanhavam o frenesi sonoro com um movimento de
corpo vizinho próximo da possessão, mexida que contagia quem vê, e passei a
sentir o coração bater directo na garganta.
“Temos de ir...”, soprou a Ana
Cristina a meu lado, depois de se conseguir arrancar daquela visão e ter olhado
o relógio.
Regressámos ao carro, o olhar ainda
preso nas manifestações que se desdobravam em cada canto, na multidão
passeando-se de lá para cá numa festa de Natal que tinha algum tempero das celebrações
dos santos populares portugueses.
“Ainda bem que insistiu para que
viéssemos, Dr. José”, a Ana Cristina dava corpo ao que era exactamente o meu
pensamento nesse momento.
“Não, tenho pena é de não termos
podido passar pelo meu bar, mas, de facto...”
De facto já eram oito menos cinco e o jipe ainda gincanava entre gente, mas porque estávamos em pleno milagre de Natal o José da
Rosa, guiando de forma algo destemperada, conseguiu pôr-nos no nosso destino à
hora marcada.
© Fotografias de Pedro Serrano, cidade da Praia, Santiago, Cabo Verde, 2011.