Da direita para a esquerda: Domingas, Chitungo, Ana Cristina. |
“Então, Domingas...?”, repreendia-a carinhosamente a Ana Cristina.
“Já viu, doutora”, lamentava-se ela, “prá semana já não vai estar cá ninguém...”
E enquanto nós e os alunos rodopiávamos de azáfama, achando o tempo
curto para o muito que ainda faltava concluir, ela antecipava uma eternidade
silenciosa e solitária.
A Domingas é uma mulher jovem, baixinha e tímida, apagando-se na
modéstia da sua função e, na soma disso tudo, demorei a dar-me conta da dimensão
daquela pessoa que me saudava com um sorriso envergonhado todas as manhãs quando,
ao bater das oito e meia, eu atravessava o átrio, enfeitado com plantas a crescer
em garrafas de plástico cortadas ao meio, que levava à cave onde decorriam as
aulas. Por volta das dez e um quarto ela descia contidamente as escadas e,
pouco depois, ouvia-se um discreto tilintar de chávenas por trás do biombo azul
que separa a sala da mesa redonda onde era posto o lanche do meio da manhã.
Café, chá, sumos de fruta e, consoante os dias e as subscrições, bananas, bolachas,
mel, cuscuz de milho com manteiga, ou rissóis de atum, pizza de atum, pastéis
de atum, que o atum é um peixe popular e abundante em Cabo Verde.
“Domingas”, dizia eu, brincalhão, “corta-me uma fatia de bolo de atum?”
Ela ria, transformando os olhos amendoados e inteligentes numa fresta,
devolvendo-me a piada na próxima oportunidade. Depois, a cada dia que passava,
fui notando a presença daquela rapariga que, no intervalo dos lanches e das
limpezas, se sentava no topo da mesa da biblioteca, compenetrada num dos
abundantes portáteis do Centro de Formação e Especialização Médica.
“Que é que você procura aí?”, perguntava, curioso.
Ela encolhia os ombros, acanhada e modesta, mas traindo-se no à vontade
com que usava o rato.
“Coisas... Notícias, o Messenger...”
“Nunca pensou em estudar?”, queria eu saber, achando que lhe calhava bem
aquele fundo de estantes de livros e a atenção dedicada à tarefa de navegar no
éter, tão distinta da pose com que nos servia o café e os bolos, com que nos ia
cumprir um recado.
Acenou que sim. Tinha estudado até ao sexto ano, depois interrompera,
tivera dois filhos, inscrevera-se outra vez nas aulas mas desistira por falta
de tempo, de estímulo.
“Aproveite agora, pense nisso”, insistia, pois ia percebendo como era
sagaz aquela pequena mulher que, com o assentimento amistoso de todos os alunos
do Curso, iniciava a preparação dos nossos lanches pela reserva de uma porção
do mesmo para os filhos pequenitos que a esperavam em casa.
No Sábado de manhã, lá andava ela, impecável na sua camisa branca debruada a anil, na
saia azul do seu uniforme de servente, apagando-se naquela multidão de
ministros, embaixadores, directores, representantes, a TV de Cabo Verde, mas
sempre desperta para os pormenores e pequenas necessidades.
Antes da debandada, todos quisemos tirar fotos com ela, o Chitungo (um
médico angolano, do Huambo), na seu jeito generoso, não a esqueceu nos embrulhos
de Natal que distribuiu por todas as colegas do Curso. Depois das fotos
tiradas, ela continuou junto de nós, servindo de fotógrafa a todas as possíveis
poses do grupo, pegando, à vez, em cada uma das cinco máquinas digitais
enfileiradas sobre o gerador com o à vontade de uma profissional, disparando
sem hesitação e vindo-nos mostrar cada um dos enquadramentos a que chegara.
No último beijo, no último abraço, ela voltou à sua ideia fixa:
“Ai, doutor, já viu como vai ser na segunda-feira? Nem vou ter que
fazer, aqui sem ninguém na sala lá em baixo...”
Sim, saudade era uma palavra e um sentimento que todos os presentes conseguiam
partilhar, e cada um no seu jeito angolano, português, cabo-verdiano, guineense,
são tomense, ia ter saudades daquele ano passado junto, mas ninguém as iria
sentir morder na pele como ela quando, por volta das dez e um quarto da manhã,
lhe faltasse o tilintar das chávenas na sala lá de baixo.
© Fotografias: (1) Almeida Chitungo; (2) Pedro Serrano. Praia (Cabo Verde), Dezembro 2011.
Linda Senhora, Bonito texto, belos momentos, professores admiráveis ... tudo bom.
ResponderEliminarQUE SAUDADES! Beijos
Luz
@ Luz, Obrigado pelo seu comentário. Também sinto saudades do curso e das pessoas e acho que aquilo foram momentos felizes! Beijo
ResponderEliminarLinda, a nossa Domingas, em todas as horas.
ResponderEliminarLuz, tomo a liberdade de acrescentar à sua frase "...magníficos alunos (...) tudo bom."
E concordo com todos: QUE SAUDADES!
Inesquecível (inesquecíveis)!
Beijos
Ana Cristina
@ Ana Cristina, Pois! As coisas boa merecer ser festejada! Bj
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