Em termos musicais julgava que Cuba
era caso único, que não existia outro país no mundo onde, sem mexer um dedo,
uma pessoa passasse o dia imerso em música, em que a música fosse tão inseparável
do batimento vital dos habitantes.
Até escrevi por aqui um texto sobre
isso (Contigo en la distancia), mas enganei-me na exclusividade do território e
a palmatória chegaria à minha mão sete anos depois, num frio dia de fim de Outono...
Numa gelada noite de Novembro, saído
de um avião a hélice que me trouxera de Munique, apanhei um táxi para o centro
de Leipzig onde iria passar o fim de semana. Leipzig é uma cidade da antiga
Alemanha de Leste e é impossível passear pelas suas ruas, sobretudo ao cruzar a
antiga sede da Stasi (a terrível e eficaz polícia política do regime comunista
da defunta Alemanha Democrática), sem sentir um calafriozinho e dirigir uma
prece a John Le Carré.
Leipzig é uma urbe tranquila,
lembrando um pouco o Porto no seu tom geral acinzentado, nos seus edifícios de
pedra inteira. O trânsito, pelos padrões europeus, é escasso e silenciosos
eléctricos atravessam a cidade a toda a hora, ao minuto previsto no horário. E,
a pouco e pouco, a gente começa a reparar: ponte Beethoven, avenida Gustav
Mahler, escola de música Félix Mendelssohn... Tal como já sucedia nos séculos
XVII e XVIII, em Leipzig as igrejas continuam a ser o grande centro musical da
cidade, eu que o diga que em dois dias assisti a dois concertos em duas igrejas
e, se tivesse ficado mais tempo, poderia continuar nesse regime de modo
indefinido, pois todas as semanas há um programa musical diferente.
Nesta época do ano às quatro e meia já
é noite e a foto da ponte Beethoven (aqui ao lado) foi tirada às cinco da tarde
por umas mãos que ficaram geladas só pelo breve minuto que ficaram fora das
luvas de lã polar. Depois, fomos à missa das seis da tarde na igreja de São
Tomás, um edifício tão descomunal que, pelas nossa bitola arquitectónica, mais
parece uma catedral e onde, entre 1727 e até à sua morte em 1750, João
Sebastião Bach foi o mestre da música que se organizava pela cidade e principal
instrumentista do órgão que ainda existe em São Tomás.
Apesar de duraram uma hora, as missas
luteranas são menos chatas do que as nossas e bastante mais inspiradoras. De
todo o tempo da cerimónia, o padre fala, no máximo, uns quinze minutos, alguns
dos quais para enquadrar e anunciar as peças musicais que vamos ouvir de
seguida. Durante o resto do tempo os fiéis escutam música pura e se uns rezarão
com a banda sonora ideal, outros perder-se-ão em pensamentos vários e vagos e
os restantes ouvirão apenas música. Música de Bach, naturalmente, algumas
daquelas cantatas que ele produzia ao ritmo de uma por semana, mas também peças
de colegas seus da época e, ainda, autores contemporâneos, interpretadas nesse
dia por um coro de rapazitos cujas vozes angelicais e os agudos desumanos nos
transportavam para um reino que não é decididamente deste mundo.
Confortados, percorríamos, silenciosos, as antigas ruas da cidade em direcção ao nosso jantar quando reparei num cartaz afixado na frontaria da igreja de S. Nicolau.
“Que engraçado! A semana passada
comprei em Lisboa a Missa de Requiem do Verdi – apeteceu-me ver como
seria um requiem do século XIX – e agora olha para ali...”
Ele observou com cuidado o cartaz que
anunciava, para o dia seguinte, a Missa
de Requiem de Giuseppe Verdi, às dezassete horas, na igreja de S. Nicolau.
“Queres ir, pai?”, perguntou.
Fomos. Aquilo durou duas horas, que
passaram sem se dar conta, e na nave da igreja, invadindo a zona do altar, uma
multidão de mais de cem pessoas, entre músicos, maestro e cantores, derramou
sobre a igreja cheia a obra italiana que, aqui e ali, faz lembrar uma ópera. E,
às nove e meia da noite, estávamos já a descer as escadas de uma cave onde
assistimos a um belo concerto de jazz dado pelos Apfelkomp(l)ott Compota de
Maçã, um trio de saxofone-contrabaixo-bateria formado por colegas do Zé
João na escola de música Felix Mendelssohn.
No dia seguinte, a meio de um domingo
que já anoitecia, despedi-me dele à porta da gigantesca estação de comboios de
Leipzig. Pouco depois estava no aeroporto, a aguardar o meu avião para
Frankfurt, de onde teria voo de regresso a casa.
Quando o avião levantou voo, colei a
cara ao vidro crescentemente esfriado da janelita, vendo as luzes de Leipzig cada vez mais ao longe e o negrume da noite fechando-se sobre aquele lugar
perdido no mundo onde ficava, entregue a si próprio, o meu filho.
© Fotografias: De cima para baixo: (1) Máquina fotográfica usada pela Stasi, fotógrafo desconhecido; (2) (3) (4) (5), Pedro Serrano, Leipzig, Novembro 2011.
Vê-se que ainda não foste a New Orleans.
ResponderEliminarNão conheço Cuba nem Leipzig e estive em New Orleans antes do Katrina.
Ao que sei o Bairro Francês voltou ao que era. E era um espectáculo diário de jaznas ruas e praças,para não falar da animação das noites de 6.ª e sábado.
Tens que lá ir.