A fotografia foi tirada em Leiria a 17
de Março de 1970, tinha 16 anos. Andava no sétimo ano do liceu e, nesse mesmo
ano, em Outubro, entraria para a Faculdade de Medicina.
Já nesses dias era usual, por altura
da Páscoa, os liceus organizarem aquilo que se chamava viagem de finalistas, o que, então, representava, no máximo, quatro
ou cinco dias passados não mais longe do que o Algarve. Mas o liceu em que eu
andava (D. Manuel II, que voltou ao seu antigo nome de Rodrigues de Freitas) ou
não organizou nada nesse ano ou, se o fez, foi uma saída de tal modo
desinteressante (talvez ida a Alcobaça ver os túmulos de Pedro e Inês) ou tão
açaimada de regras (estávamos no tempo em que tudo era interdito) que alguns
dos alunos do 7ºD, a minha turma, resolveram tomar a cargo a organização
privada de uma viagem de finalistas.
Iríamos a Lisboa, essa capital
distante e depravada, dois ou três dias, e o planeamento prévio que fizemos resumiu-se
a calcular o dinheiro que íamos gastar no aluguer de uma camioneta que nos
levasse e trouxesse. Algum de nós, que não recordo qual mas que já deveria ter
feito os 18 anos legais, tratou do aluguer do transporte e todos os outros (não
mais do que uma dúzia) foram para casa apetrechados com a cantilena comum de
que a excursão era organizada pelo liceu e que é claro que iriam professores
connosco.
De manhã cedo, num largo não demasiado
próximo do liceu para não dar nas vistas, lá apareceu o nosso veículo: uma
pequena camioneta que já vira melhores km, o escape vomitando fumo negro e a
estertorosa parte dianteira, onde morava o motor, prolongando-se por um nariz a
fazer lembrar um jacaré. Partimos, cheios de emoção e vontade de aventura, sem
sonharmos onde ficaríamos alojados em Lisboa ou como iríamos entreter as nossas
horas. Logo se veria!
Lisboa, nesses tempos, era longíssimo
do Porto, a viagem demorava quase meio-dia, a autoestrada desaparecia entre os
dedos logo ao sul de Gaia para apenas se voltar a reencontrar já após Vila
Franca de Xira; o resto do tempo vogava-se por um país de maravilhas, cheio de meandros
bucólicos e contracurvas.
Nova pausa em Leiria para arrefecer o
motor, desentorpecer e bater umas fotos em que demos azo cénico ao cunho
libertário que nos incendiava; na foto de grupo pode ver-se em primeiro plano,
na pose aparentemente mais controversa, o João Fonseca (também conhecido como
“o Mexicano”), um tipo muito escuro e feio como um filhote de coruja, mas
atraentemente expedito, o suficiente para ter granjeado a admiração comum. Ao
lado, enquadrando o meu perfil escuro na sua dança, baila com ele o “Batata”
(também conhecido por “Batatinha”), um gordito de quem não recordo o nome usado
pelos professores durante a chamada nas aulas. Dos outros todos, só consigo
apontar o nome ao Jorge Polónia, hoje professor catedrático na Universidade
para onde iríamos entrar seis meses mais tarde.
À saída de Leiria, quando retomávamos
a estrada estreita que, como um fio de colar preguiçoso, ia enfiando as
terrinhas até à capital, quis a sorte que aparecesse à nossa frente uma
camioneta, um veículo de dimensões avultadas e atulhado exclusivamente por
elementos do sexo feminino, como muito rapidamente nos demos conta. Deus fosse
louvado! Era uma excursão de finalistas, das verdadeiras, com professoras e
tudo! Escassos Km foram percorridos até que no grande painel envidraçado das
traseiras da camionete desconhecida se juntasse um cacho de raparigas que nos
dizia adeus e mandava recados mudos e que, na nossa, para desespero vão do
motorista, se amontoasse no para-brisas, em granel, a totalidade dos
passageiros, trocando atrevidas saudações que incluíam beijos soprados da palma
da mão até além dos vidros e declarações de afecto ousadas a coberto da
distância. E um de nós, já não recordo quem, teve a luminosa lembrança de
ordenar ao motorista, desgraçadamente à nossa inteira disposição:
“Chauffeur, siga aquela camioneta...”
Em Lisboa, as nossas novas amigas
foram despejadas num lar de freiras que havia no exacto local onde a Avenida
António Augusto de Aguiar desemboca na Fontes Pereira de Melo, um sítio onde
hoje, ocupando o velho edifício a que apenas foi mantida a fachada, se espeta um
banco com centro comercial.
Pois muito retornámos àquele cruzamento
(logo acima do Marquês) durante a nossa estadia em Lisboa. Em frente, do outro
lado da rua, havia um café com esplanada e nós por ali nos demorávamos tentando
entrever as nossas beldades. Mas, ai de nós, o contacto era praticamente nulo,
pois elas estavam severamente guardadas e o máximo que nos aproximámos foi numa
visita de estudo que fizeram à Lisnave, do lado de lá do rio, destino que nos
tinha sido soprado clandestinamente por uma delas e nos levou a correr ao Campo
das Cebolas, onde o nosso motorista estacionava a camioneta durante aqueles
dias e local de encontro oficial para o que desse e viesse.
Da permanência em Lisboa nesses dias
pré-primaveris pouco recordo, para além da ida ao estaleiro e das vigílias no
café fronteiro ao Lar. Lembro que dormimos numa pensão, barata e terrível, da
baixa de Lisboa, um edifício degradado e escuro cujos quartos cheiravam a
cediço e a percevejo esmagado. Só depois de os termos alugado (dormimos aos
quatro ou cinco por quarto) me apercebi da conotação que então se associava ao
Intendente, a zona de Lisboa onde tínhamos ido parar por ser financeiramente
acessível, perto do Rossio e do tal Campo das Cebolas onde ruminava o nosso
jacaré sobre rodas.
Das fugidias trocas de palavras
trocadas com as raparigas da excursão fiquei com o conhecimento de que eram
alunas do liceu de Oliveira de Azeméis (ou seria S.
João da Madeira?) e guardei o papelinho onde assentara o nome e o telefone de
uma com quem chegara mais à fala: era morena, chamava-se Miriam e morava em
Cucujães, uma combinação de nome e endereço que tinham para mim um travo
exótico, como se ela, com aquele nome pouco comum à época, pudesse ser Americana
e residente num qualquer canto da América do Sul, que aquele Cu-cu-jães era onomatopaicamente
mais aparentado com um longínquo Cu-cu-ru-cu-cu Paloma do que com uma
localidade pacata dos arredores de Oliveira de Azeméis.
Nos meses seguintes visitei amiúde S.
João da Madeira e Oliveira de Azeméis, fui também a Cucujães. É engraçado
constatar – e só agora o faço – que, tendo arrastado amigos comigo até esse
novo polo de interesses, nenhum foi um dos colegas da excursão a Lisboa. Dá a
sensação que o entusiasmo deles pelo aprofundar dos conhecimentos que tínhamos
feito na capital com as jovens das margens do Vouga, morrera ali, no meio da
estrada.
E, no entanto, nesse sul tão próximo havia
festas de anos, bailes, aos fins-de-semana, mas ao contrário da clandestinidade
improvisada dos bailes de garagem do Porto, aquelas festas eram ricas e
espraiavam-se por toda a casa, dava comigo, de prato na mão, numa sala de
jantar preparada para o efeito, a conhecer os familiares da festejada, a puxar dos
meus modos mais educados.
Depois, sem aviso, ao de leve, os
contactos com Miriam e Cucujães esfumaram-se e cada um se perdeu no desenho ao
vivo do seu próprio percurso. Sim, lembro-me de manter alguma correspondência
com ela, mas dessas cartas não guardo nenhuma nem sei onde se perderam; recordo
vagamente que ia passar férias ao Algarve como todos nós fazíamos, a Olhão se a
memória... Penso que cheguei a ir lá visitá-la um Verão qualquer...
E, neste mês de Março, mais ou menos
pela data em que a conheci, por uma inesperada simpatia do acaso, eis que chega
um truz-truz ao Facebook, alguém que
se me dirige porque encontrou o meu rasto na net.
“Miriam etc. e tal?”, interroguei-me
ao ver o nome completo, pois não me fazia soar nenhuma campainha. “Miriam”,
voltei a olhar, isolando o nome dos apelidos de família... E, então, tudo o que
aqui conto veio à tona na sua clareza de um dia sem nuvens.
© Fotografas: Leiria, fotógrafo desconhecido, Março 1970.