O Fanan é o tolinho da terra. Fanan talvez seja um diminutivo de Fernando, não tenho a certeza. Toda a gente se lhe refere assim e duvido que alguém saiba o seu verdadeiro nome.
Cruzei-me com ele pela primeira vez há uns trinta e cinco anos atrás, quando me mudei para aqui. Na altura era um adolescente que se babava, sempre entre o pai e a mãe, que o mantinham muito limpo e bem-vestido e o olhavam com grande preocupação — temiam pelo seu futuro. Ele, por seu lado, não parecia temer por nada e tinha o aspecto geral do ser a quem tudo corre pelo melhor.
A mãe morreu primeiro e o Fanan passou a surgir no centro da vila de mão dada à do pai, que o olhava com grande preocupação. Que seria do Fanan quando Nosso Senhor, por sua vez, o chamasse? Quem tomaria conta do filho e o livraria da pobreza e da desgraça?
Um dia morreu-lhe o pai e sobre isso deve ter já decorrido uma boa dúzia de anos. Fanan andará agora pelos seus cinquenta anos, talvez mais, pois o ar permanentemente satisfeito e permeável ao mundo circundante rouba-lhe peso ao tempo, fá-lo mais novo. Ao que ouço, mora num lar onde o tratam bem, continua a andar limpo e bem-vestido e tem liberdade para se mover pela vila, não está confinado a quatro paredes. Passa as tardes no café Central, onde costumava ir pela mão dos pais, e sobe e desce a rua da Misericórdia, onde ficava a casa da sua infância. Toda a gente o conhece e se lhe dirige naquele tom, entre o condescendente e o brincalhão, que se usa com os tolinhos.
No café servem-lhe todos os dias um pingo, grátis, e se por lá estou come também um bolo, que pago à saída, dissolvido na minha conta — as empregadas já sabem. Não me lembro como isto do bolo começou, mas transformou-se numa rotina como o passar das estações. Se entra e estou sentado a uma mesa, procura a minha atenção e eu respondo com um aceno de cabeça ou ergo um polegar afirmativo. De imediato, dirige-se ao balcão e, babando-se de antecipação, exige a atenção das empregadas, espetando um dedo na vitrina onde estão os bolos - prefere sempre os de feijão, mas, não havendo, não desdenha uma areia branca. Em seguida aponta para mim, a garantir a cobertura da transacção. Sorrindo, respondonas, as funcionárias exigem:
"Como se diz?"
"Faz favor..."
"Ah! E vê se te limpas, estás todo cuspido..."
Fanan puxa um guardanapo de papel ao dispensador, devora o bolo em menos de um minuto e vai à casa de banho enxaguar a ponta dos dedos. Depois passa pela minha mesa a dar-me uma mãozada e sai para a esplanada, contente, senta-se à mesa dos outros marginais ou velhotes que por ali param a beber o seu copo de tinto de pacote ou o seu brandy Macieira.
Quase tudo isto se passa sem palavras. Fanan, como se costuma dizer, "não dá uma prá caixa", é incapaz de uma frase completa e limita-se a palavras soltas, meio balbuciadas, meio gaguejadas, mas sempre muito lubrificadas por saliva.
Ao fim da tarde regressa ao lar. Voltará no dia seguinte, parando a cada dois metros do passeio para olhar os próprios sapatos, talvez a verificar o estado de atado ou desatado dos cordões — quem sabe se, noutros dias, não seria uma recomendação persistente da mãe.
© Fotografia de pedro serrano, Cascais, 2018.